quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

PAULO FARIA: GENTE ACENANDO PARA ALGUÉM QUE FOGE


Iniciar a leitura de Gente Acenando para Alguém que Foge equivale, de certo modo, à entrada num território em movimento, um emaranhado de memórias e de referências que o leitor não consegue imediatamente situar. Quem é, por exemplo, esta viúva, Amália, tão cara ao narrador, e de quem ele fala sem no-la haver apresentado? Seu pai (outra personagem central na sua ausência) já morrera, quando ele conheceu Amália? Fernanda era mulher de um casamento anterior? Camila, de quem é filha? Do mesmo modo, não percebemos durante algum tempo (ou durante algumas páginas, alguns capítulos, enquanto processamos: um pouco como num jogo de várias entradas, tempos, universos, que alternam inesperadamente, mas acabarão por confluir numa construção harmónica) quem é o seu interlocutor: aquele "tu" a quem se dirige.

Posto assim, pensar-se-ia que estou a dizer mal. Ora trata-se, pelo contrário, de um extraordinário romance, e em grande parte por isso. Há uma lógica que se estranha, antes que se entranhe. Uma história que se ama porque nada nela nos é oferecido sem luta, porque tudo se reconstitui e se vai compreendendo lentamente, ao longo do processo. Desse mundo nebuloso, e a que no entanto nos ligamos desde o princípio por uma escrita emotiva, lindíssima (e, diga-se: por um começo que nos prende), vai acabando por se desenhar, poderíamos dizer por si própria, sem que o narrador precise de a explicitar ou impor, uma linha narrativa: uma história.

Um destino é Moçambique, aonde Carlos pretende ir conhecer a criança, agora um adulto, que seu pai deixara ficar: para mim, daí oriundo, o retrato de um Moçambique pós-colonial, pobre e degradado, não pode não tocar de uma profunda tristeza. São exibidos lugares que eu conheci bem e já nada são, e em tudo se sente uma decadência que não é possível esconder em nome de nenhuma ideologia. O trecho referente à visita ao Museu de História Natural, com a apresentação do tremendo combate entre o búfalo e as leoas, que me assustou e fascinou na infância, agora reduzido a uma luta entre bonecos em que o recheio de palha se deixa ver, as unhas artificialmente repintadas, é o exemplo dessa corrupção, desse abandono, desse desinteresse, ou dessa falta de dinheiro para manutenção, ou de uma mudança de prioridades a que a escassez obrigou. Estou longe de entoar, aqui, o fado do retornado, como, no romance, também se não assume qualquer posição crítica ou nostálgica: apenas a descrição crua e provavelmente real(ista) de uma cidade que se deixou decair.

Mantém-se magistralmente a tensão entre a ida a Moçambique, e um passado português vibrante de episódios, da qual vamos extraindo, aos poucos, a narrativa: uma narrativa não-linear, confrontando várias idades, diversos tempos, da infância à maturidade. São episódios contados com um sentido de humor e do trágico, do tragicómico na verdade, que nos desconcertam. Basta lembrar o primeiro almoço em que o narrador é convidado para casa dos pais da sua namorada (Fernanda): o elevador que pára, o pai do lado de fora, como um perdigueiro, os bombeiros que acorrem e a forma como, por fim, entraram todos "no apartamento quase a correr, como se a porta fosse automática e estivesse prestes a fechar-se sozinha." Ou, poucas páginas adiante, aquela passagem em que se nos conta como o narrador irá, com a família da namorada, em visita à casa que os senhores possuem em Salir, e de onde, contudo, regressarão inopinadamente a Faro, impelidos pela estranha doença da mãe de Fernanda. Ou ainda o próprio casamento; ou o suicídio do pai de Fernanda. Ou, mais tarde (outro tempo, outro universo) a compra dos lugares nas bichas, para tratar do passaporte, sob os auspícios de um sr. Almeida e de um sr. Santos (há sempre um sr. Almeida e um sr. Santos).

Vejo, aqui, sobretudo, um romance acerca da impossibilidade das relações (onde Djaimilia Pereira de Almeida, num «posfácio» absolutamente magnífico, vê um romance que tem como chave as dívidas e a fome); vejo um narrar cujo leitmotiv será a sensibilidade e o sentimento de perda e de culpa de que todas as relações estão contaminadas. Paulo Faria toca como ninguém esse nada que nunca preenchemos; essa consciência de uma falta permanente, de uma falha na capacidade de sermos felizes a dois. Dessa ordem é a tristeza que persiste, comovente, terrível, perante a sua filha Camila. (Ah, Camila, uma dor cravada na sensibilidade de um pai, a preocupação contínua, a expulsão de casa, o amor apiedado: "Amamos os outros o melhor que sabemos e fazemos-lhes mal.")

É também a necessidade de preencher a falha impreenchível que herda do pai, aquilo que o faz rumar a Moçambique. Como dirá outra personagem, «as pessoas, chegando a uma certa idade, parece que estão cheias de coisas que ficaram por acabar». Ou, como explica Djaimilia, «muitas vezes, somos chamados a reconstruir um lugar que não nos lembramos de ter deitado abaixo». Daí, pois, essa mágoa  perante as fotografias de um menino, entre tropas, que ficou para trás.  O dever de acabar o que seu pai deixara inacabado, de salvar o que, na verdade, já  não pode salvar - já não existe o "menino"; crescemos todos (o leitor também, é claro); o passado é impossível de resgatar. A falha é uma condição humana. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

CORTO MALTESE: AS CÉLTICAS

De facto, nem sempre gostei de Corto Maltese. Era um garoto de 13 ou 14 anos quando lhe fui apresentado, nas páginas do saudoso semanário Tintim, que formou tantos jovens portugueses na beleza clara da banda desenhada franco-belga. Abençoados sejam Vasco Granja e Dinis Machado, que conseguiram fazer-nos conviver com 3 personagens de 3 revistas diferentes (Tintim, do magazine belga "Tintim"; Lucky Luke, do belga "Spirou"; e Asterix, do francês "Pilote"). Aí me inspirei, para aí escrevi cartas em que dava conta do meu desejo de me tornar desenhador, aí vivi aventuras inesquecíveis e gloriosas, afoguei frustrações e esqueci amores dolorosos de uma adolescência vivida entre complexos e pouca confiança. Corto Maltese não veio logo. Apareceu nos últimos anos da revista. E não me rendi imediatamente. Havia explicações demasiado longas nas próprias pranchas, referências históricas e culturais que ainda me não despertavam, e um desenho a preto e branco, austero, esquemático, que não me atraía. Deixava Maltese para o fim. Lia todas as outras e, por fim, vá lá, entregava-me ao marinheiro-pirata. 

O que me foi conquistando? Sei perfeitamente. Primeiro, alguns diálogos, um certo sarcasmo de várias personagens, uma ironia constante de Corto Maltese. Depois, a história. Parecia-me confusa, labiríntica, perdia-me (como, mais tarde, em alguns romances russos), mas quando detectava o fio, e me agarrava a ele, como a uma melodia, era difícil não sentir que a minha curiosidade e a minha imaginação se viam preenchidas por uma matéria que as alargava, as esticava, rebentava com elas. Finalmente, devo dizer, o próprio desenho. Não era esquemático, mas deliberadamente reduzido ao essencial, a uma essência magnífica, por um trabalho genial sobre o claro e o escuro, o branco e o negro, a sombra e a luz. As figuras, os movimentos e as paisagens não se tornavam diminuídos, mas engrandecidos por essa concentração reveladora, esse dom de os tornar mais autênticos. 

Nesta fase de adulto sofisticado (hehe) confesso que as minhas predilectas são as mais complexas e fantásticas. Mas ando a reler os álbuns que a biblioteca da escola adquiriu, com o intuito de preparar uma actividade que desperte os alunos para esta personagem. E, neste caso, começo por "As Célticas". São mais simples, contêm um elemento de fantasia que desconcerta, mas, na verdade, algumas são brilhantes. Sempre com um traço de ambiguidade: o traidor que afinal o não é, o herói e mártir sob cuja imagem popular se oculta o verdadeiro traidor. 

Chamam a Corto Maltese um «anti-herói". Sei porquê. Hoje sei porquê. Em jovem, escapava-me o sentido do termo aplicado a quem, para mim, se tornava, paulatinamente, um herói. Mas o seu romantismo que nenhuma mulher preenche (as mulheres são aqui, por outro lado, de uma liberdade e de uma profundidade raras em histórias em quadrinhos), o seu gosto um tanto imoderado por riquezas (CM move-se frequentemente em busca de tesouros, por causa dos quais viaja e enfrenta perigos desmesurados), a sua humanidade excessivamente presente (ainda que se tratasse, em todos os casos, da humanidade no seu melhor), a sua fragilidade, mal disfarçada por uma ironia contínua, fazem de Maltese um ser com dúvidas, descrenças, corajoso, mas não poderoso de mais, eticamente íntegro, mas, pensando bem, imperfeito.

domingo, 4 de outubro de 2020

FERNANDO ARAMBURU: PÁTRIA

Meu amigo Jorge defende que, em rigor, Saramago não criou nenhuma forma de escrever: muito antes de José Saramago, não me lembro que Autor espanhol já inventara este estilo de prosa longa, oralizante, de pontuação reduzida ao essencial (a vírgula, o ponto) e diálogos captados num único parágrafo, sem travessões ou distinção gráfica dos interlocutores. 

 Os espanhóis escrevem bem e são originais. Lembro-me disto quando me embrenho em Pátria, porque a sintaxe é muito inovadora, com qualquer coisa de Saramago, embora seja mais do que um seu prolongamento e não certamente uma réplica. A "sintaxe inovadora" é, neste caso, uma lógica de construção deliberada e desafiadoramente errada, mas absolutamente genial. Querem um exemplo? Eis um exemplo. Fala-se de uma viúva, a Sra. Bittori. Os filhos aventam a hipótese de vender a casa onde já ninguém vivia, porque aí ocorrera o atentado que lhe tinha matado o marido. Escreve o narrador: "A Bittori cheirou-lhe que os dois se tinham combinado nas minhas costas." Sendo "as minhas", evidentemente, as costas de Bittori. Passa-se do ponto de vista do narrador para o da viúva, da 3a para a 1a pessoa, numa frase e sem aviso. Gramaticalmente inaceitável? Delicioso.

 Desde o princípio que a cena de abertura, com personagens que ainda não conhecemos e antecedentes que vamos descobrindo devagarinho, captura no entanto o leitor. É a arte de traçar, das personagens e de acontecimentos ainda inexplorados, aspectos decisivos, o esboço certo de personalidades, um esquema de expectativas: uma mulher que faz tudo para salvar um casamento sem chama; um homem narcisista, que parece nem nela reparar; uma viagem a Londres que não promete nenhuma remissão; a mãe dela, a tal Bittori, espreitando discretamente à janela e vendo-os partir num carro, profundamente condoída pela cedência taciturna da filha, sem esperança nem imposições; um marido morto, ou matado, Txato, mas omnipresente; as vizinhas. Este ponto de partida já nos envolveu, mal ainda despertaram ramificações, e o fantasma da ETA se agita em redor do assassínio do marido da viúva. 

 O que há de comum nos livros que me dizem muito é o raro dom de nos servir os pontos de vista em choque a partir da sua carne e das suas razões: a superação do maniqueísmo, o poder de nos mostrar que os humanos são igualmente frágeis e complexos e, atrever-me-ia a dizer, que todos têm razão: a guerra resulta sempre, simplificando abusivamente, de que a razão dos outros seja iniluminável para nós. Aqui, se não se defende a ETA da luta extrema, dos atentados, mostra-se o dilema das famílias dos terroristas, os dilemas dos dois lados e as condições políticas em que se gerou uma causa justa injustamente levada a cabo. Mas make no mistake: pronunciá-lo como um lugar-comum abstracto é uma coisa; conseguir mostrá-lo num romance que cria efectivamente raízes na verdade e na circunstância das consciências desavindas é sempre um prodígio. E, em Pátria, isso não se faz apressadamente. Uma história que compreende todos os lados tem de ser narrada com lentidão e possibilitar diferentes estados de espírito e graus de empatia do leitor em relação às diferentes personagens. Tem de nos dar tempo para simpatizar com a viúva Bittori, o seu homem assassinado, com quem ela fala ainda, o seu filho extraordinário ou a sua filha perdida num casamento impossível; e até para nos sentirmos incomodados com Miren, mãe de um terrorista, tão amiga inicialmente de Bittori, tão avessa, depois do crime, a que ela voltasse à terra como para a culpar, mulher dura e avó implacável. Este invólucro será muito mais difícil de penetrar: há-de fazer-se a entrada por via de sua filha, Arantxa, paralisada, completamente dependente da mãe agreste, essa filha que, antes daquilo em que se transformaria após o seu acidente, nunca pactuara com o modo de vida do irmão etarra e sempre se solidarizara com Bittori e a família dela. 

 É a história e a sociologia de um povo altivo, incompreendido, que usou o terrorismo mais vil como forma de luta, o que Aramburu nos expõe através destas famílias, da dor e da raiva que permanecem em redor de cada assassínio (mas dor e raiva de um lado e de outro), e da possibilidade, ou não, de alguma reconciliação entre pessoas que partilham memórias e se amaram.

domingo, 20 de setembro de 2020

WOODY ALLEN: A PROPÓSITO DE NADA

Neste tempo em que o predomínio de um "politicamente correcto" exacerbado e mal compreendido fez cair sobre Woody Allen uma verdadeira maldição, existe alguma razão para ler a sua autobiografia, e fazê-lo à luz do dia, comentando, ainda por cima, a leitura assumida? Existe, claro. Quanto mais não fosse, essa.

 Woody Allen é um dos mais geniais comediantes de sempre. Nem todos concordam, bem entendido, mas o humor é uma mansão com milhares de quartos, e pessoas diferentes habitam diferentes quartos. Já para não lembrar que há quem esteja absolutamente fora dessa mansão. Mas o tempo recordado por WA é importante: um judeu que foi criança nos anos da guerra e cresceu em bairros americanos que em nada se assemelham aos dos nossos dias tem uma memória única de que prestar testemunho. Não implica branquear a sua alegada pedofilia: implica saber que ela nunca foi provada (Mia Farrow acusou-o de atacar uma de suas filhas adoptivas, Dylan, então muito nova); que ter casado com outra filha "adoptiva" pode chocar, mas seria quando muito uma forma particular e discutível de incesto, e na verdade não era adoptada sua, era-o de Mia Farrow, namorada com quem ele não vivia, pelo que a relação com a rapariga nunca foi a de pai-filha; e sobretudo que somos seres complexos, lançados numa vida breve que a iminência da morte torna trágica, e que se é tão fácil fazer juízos e apontar o dedo, temos, no mínimo, de ser capazes de ouvir quem queremos julgar. 

  A Propósito de Nada é um caudal de lembranças, uma tentativa de revisitação, cheia de humor e angústia, de um tempo longo e de uma vida em que se busca um rumo, já que não o sentido em que Woody Allen não crê. O desnudamento é total, quase cruel. Nada que não esperássemos: WA ri-se de si, depreciativamente. Troça do que os outros julgam ver nele e, segundo o próprio, ele não é e nunca foi. O mesmo desprendimento em relação à família e às histórias de família, aos avós, aos tios, ao pai ou à mãe, fazem ranger o coração. Mas a condição da lucidez e da sinceridade totais é essa. Que não fique pedra sobre pedra. Somos isto, e as reverências são formas de idolatria. O humor é uma contra-idolatria. Não há humor que não seja má-língua, e expor até os mais próximos não é desrespeito, é enfrentar-se e à própria história. 

 O mais terrível - e menos engraçado - é a exposição da sua relação com Mia Farrow, e um relato dos acontecimentos que a destrói completamente: má mãe, vingativa, mentirosa, manipuladora. Mas atendendendo à terrível difamação que sobre ele ainda pesa - se o foi - poderíamos espantar-nos? Também não espanta porque se integra perfeitamente numa cultura da biografia e autobiografia norte-americanas: usam-se armas, contam-se os pormenores mais sórdidos, destroem-se caracteres, e passa-se adiante, entre advogados e contra-advogados. 

 Os filmes que Allen viu na infância e adolescência, os livros que leu na vida e, sobretudo, os que não viu e os que não leu (ou leu apenas para que as raparigas lhe dessem atenção), a omnipresença da rádio com os seus múltiplos programas predilectos, a escola, a universidade, a eterna condição de mau aluno (e de falhado, até perceberem e começarem a pagar pelas suas piadas), levam-nos pela reconstituição de uma época e de um estilo de vida, e levam-nos por uma confissão que nada deixa de fora,
às vezes pungente, mas corajosa e com imensa graça.

 A mim não me incomoda que Woody Allen misture continuamente nomes que me são desconhecidos, até porque cada um tem uma história interessante agarrada; nem, precisamente, que não consiga (ou não lhe apeteça) contar a sua vida de uma forma linear: um episódio recorda-lhe um outro a que não resiste, ainda que obrigue a um salto quântico, e portanto estamos sempre a viajar desordenadamente no tempo. Aquilo a que chamaríamos "nemesiar", em honra do saudoso Professor Vitorino Nemésio. Sou, até, um grande apreciador de me perder no meandro das ligações. 

 Ficamos a conhecê-lo melhor? Sem dúvida. Eu sei que é apenas a sua versão. Mas até por isso, podemos descobrir o miúdo que tinha jeito para o desporto e nenhum interesse pelos estudos, o homem que nunca foi nem pretendeu passar por intelectual, e a que algum talento e muita sorte (diz ele; tratou-se, quanto a mim, de muito talento e alguma sorte) levou a escrever humor, teatro, fazer stand-up comedy e filmes como Annie Hall e Zelig.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

COMO ESCOLHO LIVROS


Uma vez que não tenho de prestar contas, a nenhum patrão ou nenhuma editora, dos livros que comento, evito a preocupação de andar em cima das derradeiras publicações. Faço-o quando se trata de um autor de que goste muito, ou de uma obra que me interesse particularmente e sei que dificilmente me desiludirá. Assim sucedeu com a Elena Ferrante. 

 Sou um leitor que vai atrás de pistas. Entusiasma-me fazê-lo. Uma referência numa revista antiga, uma citação num livro, uma conversa entre amigos. Sigo guias. Já o disse muitas vezes. O meu primo, que tem, por várias vias, acesso ao que não chegou a Portugal, e em que reconheço gostos e interesses muito similares aos meus (Filosofia, Proust) é um pisteiro a que me mantenho atento. Mas a Elisa, a Paula (por mera coincidência, mas recorrentemente, em relação à literatura espanhola), o João Pedro ocasionalmente, são leitores a que estou sempre de ouvido aberto. 

 Às vezes, compro por comprar, ou quase. Na Feira do Livro, ou em locais onde se junta, a grandes quantidades de livros, uma urgência de trazer para casa o máximo possível, deixo-me levar por um bom preço, um título, uma capa. É um erro. Sofri já grandes decepções por não programar antecipadamente o que devo aproveitar e por não me cingir a uma lista. 

 Fora tudo isto, encomendo bastante. E vou escrevendo, por aqui, sobre os livros que mais prazer me deu encontrar. Pode acontecer exprimir desilusões e críticas duras. Mas, em geral, em matéria de literatura, é-me preferível falar do que apreciei do que daquilo que me irritou. 

 Este blogue é bastante despretensioso. Não serve ninguém nem qualquer agenda oculta. Quando me cansou, suspendi-o por tempo indeterminado. Tinha centenas de "habitués" (juro!) e quando decidi reatar, decaíra para as dezenas. Alguns desistiram de mim de vez: porquê? Coisas das redes. Havia uma extraordinária Teresa, autora de um blogue muitíssimo bom, minha leitora dialogante, que deixou de me visitar. Outros autores de blogues, muitos desaparecidos, de Portugal ou do Brasil, também desertaram paulatinamente. Espero que regressem, porque os seus comentários me eram bem estimulantes. 

 E assim retornei. Tenho publicado com certa frequência, mas em dias de muita pressão (no trabalho, por exemplo) a última coisa em que penso é sentar-me ao computador. Aqui estou de novo. Sejam bem-vindos uma vez mais. A casa é vossa.

domingo, 6 de setembro de 2020

ELENA FERRANTE: A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS


Os períodos nunca se prolongam demasiado; mesmo quando intercala orações, todas se arrumam com uma limpidez em que não nos perdemos; cada um desses períodos agarra saborosamente o que está a contar, mesmo se provocatoriamente sexual ou se cruel (e Ferrante oferece-nos  abundantemente um e outro); a clareza da narração (poucas descrições, quase apenas a memória que se desata), essa clareza deliberadamente infantil, mas não de mais, é ainda parte do segredo. Para além de todos os pormenores que enunciei, o mais importante de tudo, a história. A história tecida pela curiosidade da narradora por conhecer a mulher que os pais preferiam que ela nunca conhecesse (a tia Vittoria, apagada da vida da família nuclear da garota) contagia e torna-se rapidamente a curiosidade do leitor. Vamos descobrindo, ou interrogando-nos sobre as descobertas da narradora, imaginando os mesmos enredos que a menina imagina para os pequenos gestos que observa, as pequenas mudanças que a assustam e fascinam. É todo o seu mundo tranquilo que parece metamorfosear-se, a partir do momento em que olha mais atentamente para os comportamentos dos adultos (instigada pela tia), em que descobre inimagináveis possibilidades ocultas: mas também para nós, leitores, se tornou demasiado tarde. Estamos embarcados.

Elena Ferrante, depois da sua famosa tetralogia, também neste último romance nos transporta para a infância, a pré-adolescência e, por fim, a adolescência propriamente dita: também aqui temos de enfrentar, pelos olhos de uma criança e, mais tarde, de uma jovem, a ambiguidade do mal. Ambiguidade porque se trata de um mal simbólico, que, uma vez escavado, se reduz a diferenças, incompreensões, escolhas erradas, amores proibidos, mas, porventura, inevitáveis.

Tudo é estranhamente convocado para a representação do mal. Na representação da tia pelos pais da menina, ou na representação dos pais pela sua tia. Nomeadamente o dialecto, que nos dá conta de uma Itália profundamente dividida, até no que respeita à  língua, tornando-se evidente como quem se libertou das raízes, se intelectualizou e aburguesou - se despiu também, muito conscientemente, de um modo de falar mais popular, se impediu o sotaque e certas palavras. Talvez aconteça com todas as classes em todos os povos. Mas em Ferrante é-nos dado o testemunho profundo da "desnapolitização" da fala dos que quiseram evoluir. De como fogem do mais popular de Nápoles, que trai as origens renegadas. (Já em A Amiga Genial isso se percebia tão bem).

A Vida Mentirosa dos Adultos mostra o que o título nos diz e também o facto de que a sua descoberta nos obriga a mentir a nós próprios: "As mentiras contei-as, na sua maior parte, a mim mesma. Era infeliz e fingia-me imensamente alegre na escola e em casa. De manhã via a minha mãe com uma cara que parecia estar prestes a perder as feições, a face avermelhada em volta do nariz, deformada pelo desalento, e dizia-lhe, num tom de alegre constatação: que bom aspecto tens hoje. Quanto ao meu pai - que sem mais nem menos deixara de estudar assim que abria os olhos, encontrava-o já pronto para sair de manhã cedo, ou com olhos mortiços e muito pálido, à noite - , apresentava-lhe continuamente exercícios que tinha de resolver para a escola, apesar de não serem complicados, como se não fosse evidente que tinha a cabeça noutro sítio e vontade nenhuma de me ajudar."

Mas acontece que as mentiras sobre que os  adultos instalam a sua vida não são simples. Nada simples. E, portanto, apreender-lhes o sentido, a história subjacente, é difícil para uma criança de 13 anos, que se surpreende quando o que julgou perceber não se ajusta ao que sucede mais tarde: lágrimas, discussões, cortes de relação. É uma teia subtil e finíssima de mentiras a vida em que se acreditou tanto tempo. E equívoca. Mesmo para a jovem de 16 anos em que, acompanhada por nós, se irá tornando. Às vezes, claro, o leitor, que é adulto, já começou a compreender alguma coisa do que, para a criança, é uma rede incompreensível de mistérios. E ela própria afirma, em certa passagem, que, acerca do que julga não entender, sabia com certeza mais do que quanto conseguia dizer a si própria. O que é um fantástico apontamento sobre como nos mentimos, sobre a má-fé e sobre, em tudo, o papel do inconsciente.

Por distante de nós que seja esta história, no contexto, até nas personagens, tudo nela nos toca profundamente, como se fôssemos, num certo sentido, a sua verdadeira matéria emocional. E esse é, talvez, o segredo final: em frases inesquecíveis, Elena Ferrante põe-nos diante de memórias dos nossos sentimentos e dos nossos medos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

VIRGINIA WOOLF: CONTOS



É difícil não acreditar que Virginia Woolf, sentada a uma secretária, num quarto que fosse seu quando um dia o conseguiu, registando em folhas de papel o que viria a ser a sua obra, não estivesse consciente, e perfeitamente consciente, de que aquilo que estava a fazer era novo. Que importância terá tido essa consciência? Seria primordial? Ou um aspecto, apenas, do que lhe interessava exprimir?

Leia-se, por exemplo, como testemunho dessa novidade, o primeiro dos contos do belíssimo livro de contos de Virginia Woolf, da Relógio d'Água. É irresumível, claro, mas deixem-me dar conta do princípio que o move. A narradora (que seria, aqui, mais a observadora-pensadora do que uma "narradora" de quase-nada) repara numa mancha na parede. Intriga-se. Pergunta-se o que poderia ser.  Um prego de que esteve pendurado um quadro? Uma figura da humidade? Ela poderia levantar-se da cadeira em que se encontrava sentada, aproximar-se, tirar as dúvidas. Comodamente instalada, porém, não lhe apetecia. E ia-se sugerindo possibilidades. O interessante é que nós lhe acompanhamos a divagação, e esta é-o no verdadeiro sentido da palavra.

Poucos anos antes de se falar em surrealismo, VW procurava captar a corrente de pensamento, mostrar o acto de pensar na sua espontaneidade e no seu movimento um pouco tontos, fazendo as mais imprevisíveis e subjectivas associações e errando sem fronteiras ou vigilância. Ora se afasta da mancha que lhe prendeu a atenção, viajando e recordando até muito longe, ora lhe retorna, como se tivessem passado anos, ou séculos, para perceber que nada mudara.

O mais curioso é que vai criando uma inesperada e tensa curiosidade. Falo-vos de um conto, mas todos têm que ver com alguma subtil estranheza, que acabará guiando diversas personagens para fora das convenções. Uma paixão incompreensível, ou um crime que talvez não se tenha cometido. O mundo existe, e a sua observação é sempre meticulosa. Mas através de um pensar que se vai interrogando, intuitivo, de associação em associação, sem dar contas das suas voltas, nem controlar uma febre da excentricidade. Poderosamente.


domingo, 30 de agosto de 2020

BERGSON: O PENSAMENTO E O MOVENTE


Quando me dirigi à Ler Devagar, procurava, como imaginam, o momentâneo desconfinamento que me oferecesse a alegria do mergulho num lugar lindíssimo, entre livros, espalhados por várias mesas ou a que se acede, nas estantes, pelas escadas acima; foi aquilo de que precisava: folhear novidades e antiguidades, sentar-me a beber uma água tónica, comprar qualquer coisa de um Autor de que andava à pesca.

De vez em quando, faço aqui, neste blogue, uns desvios pela filosofia. Está-me no sangue. Diz respeito, sobretudo, a descobertas ou a reencontros. Não creio que mesmo os leitores menos afins com a filosofia me levem a mal.

Agora , perseguia Bergson. Bergson, no meu caso, seria uma descoberta, ou um reencontro? Talvez mais uma descoberta. Sim, não me era inteiramente estranho; sim, estava ciente da sua reflexão acerca do tempo; e sim, até me lembrava que a filosofia de Bergson terá, de certa forma, influenciado a visão que Proust nos revela do tempo e, portanto, o seu Em Busca do Tempo Perdido (que, para mim, constitui o ponto mais alto da Literatura). Já agora: também me recordava da famosa conversa pública entre Bergson e Einstein, precisamente acerca do tempo, sobre se (perguntava Bergson) não poderíamos pensar um outro tempo, para além do da ciência e dos físicos, o que Einstein negou veementemente.

O opúsculo que trouxe da Ler Devagar, numa agradável e rigorosa tradução no português do Brasil, reúne uma série de artigos e de conferências. Retoma a questão do tempo, é claro, sua intuição primordial, visando mostrar que o tempo da ciência é um tempo "cinematográfico ", em que, como numa película, não existe mais do que uma série de instantâneos, de pontos mortos, estáveis. Ou seja, em última análise, o cientista "espacializa" o tempo - o que não é um erro, é um modus operandi necessário no interior do sistema em que trabalha, mas o impede de tocar a duração, a experiência própria de um tempo que não cabe nas grelhas do físico, o tempo da espontaneidade da nossa acção sobre o mundo. O tempo vivido como espera e mudança, em que o passado está organicamente contido no presente, porque até a distinção entre passado, presente e futuro seria, de certa forma, uma convenção da nossa linguagem e um comodismo artificial.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

LUCIA BERLIN: MANUAL PARA MULHERES DE LIMPEZA


Alguns autores são de uma autenticidade crua e aterradora. O que têm para contar são pedaços de si, ou seja, fragmentos de uma vida que os traumatizou e arrastou, de muitas formas, para a pior degradação. Foram vítimas de pais violentos ou negligentes, de relações destrutivas, refugiaram-se no álcool ou na droga, sofreram e fizeram sofrer. A sua obra não é só ou sempre dolorosa de ler, porque, em alguns deles, parece iluminada por um inexplicável carinho e uma espécie de humor irresistível e amargurado. São autores que, escrevendo, nunca escapam à vida. Nas antípodas destes, outros alimentar-se-ão da ficção, de um engano vagamente ligado à sua história, que nos entretém. Ou chega a ser profundo. E podem oferecer-nos, também, uma obra excelente, é claro. A qualidade existe a partir de impulsos e objectivos opostos entre si. Mas os Bukowski, os Genet, os Bellow, ou alguém como Lucia Berlin, viveram uma vida que lhes grita demasiado obsessivamente, para que queiram ou possam dedicar-se a qualquer coisa outra que não expô-la, mostrá-la, revê-la, dá-la a ver.

Lucia Berlin é sobretudo uma escritora de contos. Veja-se Manual para Mulheres de Limpeza. São 43 contos: em nenhum deles existe uma narradora que não seja a mulher que estudou num colégio de freiras para raparigas pobres, e conheceu diversas paixões, de que nasceram, ao todo, quatro filhos. Em nenhum conto se ouve a voz de uma mulher sem filhos, ou da mãe de uma menina, ou de um casal, ou de três rapazes. Não. São sempre os mesmos quatro filhos. E apesar da sua cultura ou do seu talento, a narradora que regressa em cada história é sempre uma mulher que vive sordidamente e aceita os empregos socialmente menos dignificantes: o título alude precisamente a isso.

É uma descoberta: brevíssimas situações em carne viva, um equívoco na infância, quando se julgou que batera numa freira, um velho índio que lhe observa as mãos sempre que se vêem numa lavandaria frequentada por ambos, um aluno inteligente e difícil em certo período da sua vida, quando ensinava Espanhol num outro colégio de freiras, ou os percursos quotidianos entre casas de que é mulher-a-dias. O avô dentista, bêbado e violento, a sua mãe de humor oscilante, as outras mulheres de limpeza, com quem fala sobre as patroas. De muito pouco, LB consegue extrair um fio que nos comove e nos mantém presos, até um final que não é tanto uma reviravolta, mas, muitas vezes a frase inesperada, com o elemento de estranheza ou o humor que surpreende antes de fazer rir.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

PAUL NIZAN: ADÉM, ARÁBIA


Lemos sempre mais do que o significado simples e directo de uma frase. Uma palavra, como um átomo, vive, na leitura, de vários cambiantes que ela desperta inconscientemente em cada um de nós; uma particular associação de palavras trabalha possibilidades escondidas da nossa experiência e da nossa memória; uma frase, então, é sempre e necessariamente uma frase-para-mim.
Se, ao invés de nos determos numa frase, nos referirmos a um parágrafo, a uma página, a um livro, estamos necessariamente em face de evocações que estabelecem uma cumplicidade intransmissível entre o texto e o leitor.

Para mim, Adém, Arábia é um exemplo extremo do que procuro exprimir. Não consigo ler a obra sem saber que é de Paul Nizan e quem é Paul Nizan, o que remete secretamente para o que Jean-Paul Sartre escreveu sobre o romance e sobre o autor, e eu li há muitos anos. E portanto, como lembrava Proust a propósito do episódio da madalena, ao ler este livro deixo que a memória liberte uma infinidade de génios, reconstituo um mundo perdido, estou a reler uma época, uma cultura, uma luta, questões e debates que me dizem muito, referências que me formaram o gosto e as ideias, a cidade de Paris (que conheci primeiro através dos livros, só muito mais tarde, digamos assim, em pessoa), os cafés, a École Normale e os seus professores, a atmosfera de uma Guerra próxima impregnando antecipadamente a República. Leio Adém, Arábia por esse filtro, de que nunca inteiramente me desfaço ao longo das páginas, e que o extraordinário incipit deste romance misteriosa e inexplicavelmente contém e sintetiza: "Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida."

Chamar "romance" a esta sistemática invectiva contra a burguesia e a vida social e académica dos franceses do tempo de uma Guerra inevitável  (o livro foi publicado em 1931, Hitler ascenderia ao Poder pouco depois, a Grande Guerra iniciar-se-ia antes do fim da década), principalmente a vida parisiense, seria tornar a palavra excessivamente flexível: que são aqueles capítulos sem nenhuma história, senão panfletos ferozes contra uma aprendizagem hipócrita, as "artes de distracção", o exemplo omnipresente dos "predecessores ilustres", essa espécie de namoro com o Espírito em que a Filosofia Francesa se deleitava, o fascínio pela Ásia ("herói da sabedoria") e pela América  ("herói do poder")?

Nizan escreve muito bem. As suas enumerações, mesmo do mais triste ou do mais vil, constituem pedaços de uma prosa elegante; eis o testemunho do que vê, procurando escapar a Paris: "Passado Porto Saíde, com as suas mulheres à venda, os seus rapazes para comprar, os seus judeus sírios, as suas águas amarelas, os paquetes cor de abelha da Peninsular e da British India, efervescentes de coolies, de carvão, o barco perde de vista o domo de vidro da Compagnie du Canal, arrasta-se até Suez entre as areias, vê o Sinai, cai no Mar Vermelho." O fulgor da eloquência e da beleza poética ao serviço, como sublinhou Sartre, do papel de Cassandra, ou de um profeta que denuncia o vazio e a alienação nos modos de uma cidade - ou, como na passagem que venho de citar, na tentativa de fuga à cidade: "Eu tinha medo, a minha partida era uma filha do medo" - e adverte contra o apocalipse. (Paris estaria ainda longe de imaginar que conheceria a Ocupação e, após libertar-se, a dramática separação entre os seus heróis e os seus traidores).

A fuga dá-se depois de muitas páginas disparadas contra uma Paris alienada. Só a partir do capítulo VI o protagonista e narrador abandona a cidade. Mas, ao invés de algo que se pareça com uma narrativa, é a descrição de Adém, essa "mistura do Oriente com o Império Britânico" que nos é servida, pontuada por citações de autores dos séculos XVII e XVIII. A linguagem de Paul Nizan, reunindo fragmentos de cores, odores, comportamentos, é de uma tal vivacidade, que Adém nasce diante dos nossos olhos. Misto de manifesto, diário de viagem, ensaio e romance, Adém, Arábia é, por isso mesmo, encantadoramente imprevisível, rompendo todas as regras e lógicas de género.

Eu diria que, tal como La Nausée, do Sartre de quem Nizan foi amigo, Adém, Arábia é um romance que elege como principal inimigo a má-fé: uma má-fé radical e transversal, a que nenhuma viagem escapa, porque seria, afinal, tanto a dos professores e dos filósofos burgueses de Paris, como, em Adém, tão longe dali, a do guarda do museu, um ex-sargento britânico que, sentado diante de uma porta, "via escorrer um inesgotável fiozinho de tédio ", ou das jovens inglesas "com olhos de vidro tão bem imitados que se pode ser levado a crer que essas pupilas vêem"; ou, sobretudo, do Senhor C..., concentrando em si, como um símbolo, todos os indivíduos que se acreditam sujeitos de acções, que se crêem orgulhosamente livres, quando nada na sua vida foi autenticamente uma acção e o que quer que fizessem para subir a pulso lhes permitiu apenas criar, de si mesmos, uma imagem, uma ideia, um mero artifício que tomavam todavia por uma personalidade e por uma essência. "Eram também as horas em que apesar de tudo cediam às ilusões. Tentavam acreditar que agiam. Falavam, como o Sr. C..., da sua acção. É uma palavra que faz sonhar todos os homens, é a coisa que eles não têm. Tentavam acreditar que agiam. Acabavam por acreditar. Eram então poéticos: ser poético é ter necessidade de ilusões. " Do ponto de vista da dissecação da má-fé, Nizan não fica atrás de Sartre: será, porventura, mais profundo.

O desvio por Adém não fora em vão, porque revelaria, ao protagonista, à distância, a falsidade de uma sociedade em que também ele se poderia ter perdido. Regressando a França, desalienado, consciente de que nenhuma viagem o salvaria, uma vez que não há fuga a um mundo viciado, e em toda a parte, em todos as cidades, os homens são os mesmos, submetidos a papéis idênticos, que os mascaram e os iludem, regressa identificando o objecto do seu ódio. Os «possuidores» (neste caso, os possuidores da França), «com os seus colarinhos postiços limpos, durante muito tempo engomados, hoje em dia de uma moleza que lhes dá uma falsa elegância de americanos, as suas roupas pretas [...], os seus chapéus de coco e as bengalas do domingo», sob os quais cresce, miserável, silenciosa, uma multidão de proletários, de pobres. Os não-possidentes. Os explorados.

Uma palavra para exprimir um perplexo elogio para a edição portuguesa de uma obra que não suscitará compras astronómicas, principalmente na situação de pandemia em que ainda vivemos, e para uma tradução muito boa, sem as baias idiotas do AO95, à qual parece ter faltado, contudo, uma revisão que evitasse o excesso de galicismos e alguns erros mais.   



segunda-feira, 10 de agosto de 2020

MATILDE CAMPILHO: FLECHA



 Como é compreensível, e a sociologia e a psicologia explicam, o gosto independente e sem preconceito relativamente à manifestação do novo é, numa sociedade, quase impossível. Tenho insistido nisto. Se a obra que contém uma experiência nova vem anunciada por prémios e fanfarras, se se apresenta lida, aprovada, elogiada pelas nossas referências habituais (pares do novel autor, críticos e especialistas reputados na Arte em causa) tendemos a assumir que devemos gostar; se, pelo contrário, aparece pregando no deserto, sem reacções conhecidas, sem entrevistas nem apontamentos nos jornais e nas revistas, reagimos depreciando. Ora se assim é, torna-se muito difícil dizer com justiça se o rei vai nu, e nestes rumos previsíveis se vão fabricando e consentindo os juízos de valor.

Matilde Campilho é uma autora que, porventura, já por cá escreve e publica há algum tempo, mas ganhou uma súbita notoriedade com o seu Flecha, editado pela excelente Tinta da China. Não se fala de outra coisa. Com o deliberado desenraizamento que me seja possível, sabendo, já, que o livro foi muito bem recebido, mas mantendo-me ainda pouco ou nada influenciado por visões externas, vou abalançar-me a uma leitura "independente".

E se de gosto se trata, hei-de principiar por lamentar a adesão da autora ao último AO, que, sendo uma questão que diz respeito à visão que cada um tenha da História e da importância da etimologia como marca da identidade de uma língua, e sendo ainda (ou por isso) uma questão filosófica e política, não deixa de ser também estética. Custa-me sempre ler, como aqui leio, "ele não procura mais nada a não ser o inseto" ou "dá graças por ter saído derrotado da batalha noturna." (Numa obra em português do Brasil, não me custa, porque são características identitárias da escrita  brasileira, formando um jeito próprio no uso da língua, que reconheço, espero e me apraz).  É muito, muito pessoal: não se deixem embaraçar pelo meu gosto, se isso vos for menor. Em poesia (ou prosa poética), onde a beleza da sonoridade das palavras se completa na beleza da grafia delas, a devastação causada pelo Acordo Ortográfico deprime-me.

Já a brevidade de certos textos de Flecha, em contrapartida, é outro assunto: exige uma forma diferente de os lermos, mais concentrada, em busca da perfeição que se dá quase imediatamente numa imagem. Menos é mais: se efectivamente o poema (chamemos-lhe assim) breve, como um haikku, resulta de um apuramento; da captação do essencial despojado de quaisquer ornamentos; da conquista de uma coincidência entre as palavras absolutamente certas para uma ideia forte e evidente, então não pode deixar de ser a forma justa. Claro que a previsível contestação, por parte de certos leitores, da brevidade como tal, advém de uma ideologia utilitária, à qual provocaria sempre repugnância pagar por um livro em que encontramos várias páginas com uma única frase. Cito um exemplo: "Nu, de braços abertos, António ajoelha-se na frente de um embondeiro." Ponto. Já está. É a página 19.

A assunção da brevidade é,  quanto a mim, um dos aspectos singulares no que o livro de MC tem de novo. Não são micro-contos - alguns poderiam sê-lo, na verdade - , nem, propriamente, contos (o conto obedece a uma lógica completamente diferente), mas histórias que possam ser fixadas em imagens. Quadros-narrativos? Nas mais breves, não conhecemos o antecedente nem o que se seguirá. Mas a imagem fica a vibrar. Se se aposta na simplicidade, procura-se por outro lado um elemento de estranheza que ilumina o dia-a-dia. É estranho que alguém se ajoelhe diante de um embondeiro, sobretudo se nos não dizem o que a isso o levou, mas, repentinamente, o gesto sobressalta-nos pela sua evidência. Como não ajoelhar-se em frente de um embondeiro?

A simplicidade passa, aqui, também pela recuperação de certos aspectos do quotidiano, em que habitualmente não reparamos, mas que a escrita de Matilde Campilho resgata maravilhosamente: "[...] Rosie abre o frigorífico e retira lá de dentro um frasco. Roda-lhe a tampa. Aquele pop do descerramento anula de imediato os sons ruins e metálicos do dia inteiro."  Ou: o rapaz que caminha descalço e espeta, no calcanhar, uma lasca de madeira, "senta-se no chão, coloca o pé sobre o joelho, e tenta espremer com dois dedos a farpa." E, prosseguindo a mesma história, este outro exemplo de uma espécie de evidência familiar quotidiana: "Encosta as unhas dos indicadores esquerdo e direito uma na outra, e aperta."

Procedimentos, gestos, sons, com que convivemos sem deles quase nos apercebermos, constituem, em Flecha, uma esfera de pequenas banalidades, que estas histórias, ou estes quadros, captam, misturando-os, porém, com nomes, lugares e momentos de tempos passados, que nos são estrangeiros e distantes. E o efeito é, sem dúvida, muito surpreendente.



segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MATTHIEU BONHOMME: O HOMEM QUE MATOU LUCKY LUKE


Fui, desde muito, muito cedo, um ávido amante de BD. Ainda nem sabia ler, quando atacava os Cavaleiro Andante do meu irmão.  Mais tarde vieram os álbuns do Tintim e os de Astérix e, paralelamente, os comic norte-americanos, em tradução para português do Brasil: Super-homem, Incrível Hulk, Homem-Aranha (mas também Bolinha e Luluzinha ou o Brasileiro Saci Pererê). Lembro-me de que, pelo meio, se deu a descoberta deslumbrada de Blake e Mortimer. E Batman, por fim, de que eu, José Pacheco, me tornei a identidade secreta, escondendo a todos os familiares que sob o Homem-Morcego se escondia aquele rapaz de óculos e cabelo demasiado comprido.

Do ponto de vista da BD de expressão  francesa, o meu enorme salto, a minha aprendizagem maior, realizou-se com o semanário Tintim, que o meu irmão comprava e me enviava de Lisboa (eu vivia em Moçambique), e me permitiu aterrar em um novo continente: Tintim, Lucky Luke, Astérix, mas inúmeros outros, Corto Maltese, Bruno Brazil, Blueberry, Ringo, Taka Takata, Achille Talon, Mr. Magellan, Luc Orient, Cubitus, Clorofila, Valérian, Prudence Petitpas... oh, caramba. Não exagero se vos disser que lhes devo uma parte intensa de uma adolescência muito feliz. Abençoados Dinis Machado e Vasco Granja, que a dirigiram por muitos anos.

Lucky Luke fez, por um destes meses, 70 anos. Criado pelo genial Morris, com argumento do inesgotável Goscinny (durante uma vintena de anos, até à morte deste), L.L., "o cow-boy que dispara mais rapidamente do que a própria sombra" e enfrentou ou conheceu, ou se cruzou, nas suas aventuras, com figuras reais da História do faroeste (os Dalton, Billy the Kid, Calamity Jane, Buffalo Bill) preencheu de um júbilo indescritível as minhas tardes moçambicanas; no dia em que recebia a revista, desaparecia do mundo. Esquecia amigos, praia, cinema.

Esta homenagem a Lucky Luke, da autoria de um jovem fã (Matthieu Bonhomme é um garoto nascido em 1970) é inclassificável. Ignoremos, pois, os adjectivos. Um Lucky Luke, digamos, semi-realista, ou seja, mais «real» do que no desenho caricatural de Morris, mas menos do que num desenho tipo fotografia, reilumina as pradarias e, neste caso, uma pequena vila de mineiros, Froggy Town, numa odisseia com o rigor, a exigência e a complexidade narrativa de uma graphic novel. Quem foi educado nos westerns (o que só em certa medida será o meu caso), reencontra nestas pranchas um olhar cinematográfico, feito de planos que relembram as abordagens de John Ford (até o título pisca o olho a O Homem que Matou Liberty Valance), Sergio Leone ou, como sugere João Miguel Lameiras num excelente posfácio, Imperdoável, de Clint Eastwood.

Lucky Luke é, nesta revisitação, um herói romântico,  do calibre de personagens tão distintas, mas, simultaneamente, tão próximas umas das outras, como Corto Maltese ou Philip Marlowe. Solitário, irónico, justo e generoso.

domingo, 2 de agosto de 2020

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA: OS VIVOS E OS OUTROS



José Eduardo Agualusa é um escritor angolano que nada tem a provar: alguns dos seus romances permanecem uma voz singular, africana, sem precisar de sublinhar essa africanidade e assumindo também, descomplexadamente, o legado da Literatura portuguesa, pelo que, é claro, o juízo que possamos fazer sobre cada um dos seus livros ainda por vir, em nada alterará o justo reconhecimento de que goza.

 Em Os Vivos e os Outros, o autor parte de uma ideia boa, uma excelente ideia: Daniel Benchimol, um antigo jornalista que trocou o jornalismo pelo romance, reúne, na Ilha de Moçambique (onde vive com Moira, sua companheira, grávida de 9 meses), um grupo de autores africanos - poetas e romancistas -, para um congresso de Literatura Africana.
Inesperadamente, uma tempestade desaba; um nevoeiro denso e persistente parece envolver e isolar a ilha numa bolha; dá-se uma quebra de electricidade; os telefones e a internet colapsam. Durante cinco dias, não há comunicação. Ninguém ousa atravessar, em direcção ao continente, o nevoeiro carregado de vozes e de misteriosos sinais, pelo que é como se, de certo forma, o mundo em redor da ilha desaparecesse.

Narrado no presente e mantendo, através desse tempo verbal, a sensação de isolamento, de corte de amarras, a história dos prisioneiros rapidamente se multiplica em percursos fantásticos: estranhas personagens, que parecem ter-se libertado dos romances ou dos poemas daqueles autores, confundem-se com os ilhéus, em enigmáticas possibilidades, que a incompreensão, o nervosismo, o medo, intensificando prenúncios de histerismo, alimentam de uma insuportável tensão. As crenças populares e a observação objectiva dos factos ignoram fronteiras entre si, de modo que se está permanentemente numa indefinição entre o literal e o metafórico, o vivido e o onírico, o real e o fantástico, como uma homenagem a uma vitalidade e a um fundo propriamente africanos de mitos e crenças.

 Isto dito, o que me desagrada no romance? Uma arquitectura menos rica, a que a narração no presente ajuda a emprestar um ar de desleixo: a rapidez esquemática de algumas sequências narrativas, as coincidências que constantemente ocorrem (um exemplo: alguém ouve falar da contadora de histórias, e quer ir escutá-la; lembra-se disso num café, pergunta por ela a um empregado que, «por acaso», é um familiar da velha, e o leva imediatamente a uma sessão, que, «por acaso», até ocorria nessa mesma tarde), a irresolução de certas situações e personagens, tão promissoras, mas, por fim, tão frustrantes (a Avó Cinema, ou mesmo Pedro Calunga Nzagi, o que acabam realmente por adiantar?) fazem sentir que se esqueceu que o "fantástico" se constrói sobre regras próprias,  não sobre a ausência de regras: tornar credível o incredível é um exercício de uma exigência superior, nunca a procura de um leitor fácil e predisposto.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

OLGA TOKARCZUK: CONDUZ O TEU ARADO SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS



Olga Tokarczuk ganhou o Nobel de 2019. Eu sei: o concílio sempre teve os seus esqueletos no armário (falo apenas de critérios dúbios, politicamente correctos, no pior sentido da palavra, e das injustiças daí decorrentes), mas ainda assim, pensamos que quando alguém que não conhecíamos "é distinguido" - estes lugares-comuns do universo dos prémios -, merece, no mínimo, que tentemos conhecê-lo, e nos pronunciemos.

Acontece, porém,  que a expectativa acaba condicionando, para o bem ou para o mal. E quando comecei a ler Conduz o Teu Arado, senti-me desiludido. A despeito de uma escrita muitíssimo interessante, que me tocou imediatamente, uma visão excêntrica (a da narradora, afinal uma excêntrica professora reformada, a braços com a sua tradução de Blake), um ambiente e um tema intrigantes, diversos e inexplicáveis assassínios que se vão sucedendo numa remota aldeia polaca, tudo isto é como que desperdiçado ao serviço de uma história que me pareceu maçuda, e de que me afastei paulatinamente, até que parei de ler e me agarrei a outros romances.

Porém, passado algum tempo (vários meses, de facto), lembrei-me dele e resolvi retomá-lo; a temperatura da expectativa e do interesse baixara, a memória da desilusão já não pesava sobre mim, e, pelo contrário, as inúmeras qualidades do livro começaram a fazer-se ouvir, a história ganhou um fulgor que nunca lhe sentira, de modo que voltei umas páginas atrás para reatar a leitura de um ponto seguro. O estado de espírito era outro, o romance é admirável e, já não estando eu previamente predisposto ao enfastiamento, fui gozando tudo quanto tinha para me oferecer.

A escrita, para já.  Ao contrário da instauração de uma "igualitarização" na redacção das palavras (muito em voga de novo, na recusa de dar mais  importância a umas snobes, optando por fazer desaparecer todas as letras maiúsculas, o que resulta,  quanto a mim, de uma digestão apressada e irrazoável do estilo do poeta William Carlos Williams), Olga Tokarczuk faz questão de que algumas palavras se escrevam com maiúscula, sem razão gramatical, sem outro motivo para além do poder misterioso e incontestável que delas se quer fazer emanar: "Noite", "Corças", "Horror", "Animais", "Morrer", "Alma" ou "Crepúsculo" são exemplos de palavras que merecem sempre maiúsculas (aliás,  na senda de Blake, que respira em todos os poros deste romance). Pode julgar-se um pormenor, apenas, mas é de pormenores que se gera a atmosfera de uma escrita.
Por outro lado, e considerando que a narradora e as suas teorias esdrúxulas sejam omnipresentes, tende-se para uma expressão  de uma inocência inventiva que é belíssima, como se ouvíssemos uma criança.

Os títulos dos capítulos  são sublinhados, como se de epígrafes se tratasse, por versos de Blake, o poeta a que, como já disse, a narradora se dedica. Não poderia gerar um efeito mais dramático: as palavras de William Blake são misteriosas, prenhes de sentidos ocultos, graves, nocturnas. Delimitam e adensam o carácter enigmático  do romance. Tudo são sinais, indícios, símbolos.

Com excepção de Dyzio, um jovem estudante que colabora nos trabalhos de tradução da poesia de Blake, desconhecemos os nomes das outras personagens. De quase todas, pelo menos. São tratadas por cognomes, Pé Grande, Papão,  padre Sussurro, Sobretudo Preto, Cinzentinha, etc, que, se introduzem um elemento caricato na relação do leitor com elas, nem por isso as distanciam ou as tornam menos personalizadas. Diria que tudo na personalidade e nos comportamentos delas é muito vivo, e se vai tornando significativo, aos olhos da narradora (e, por interposta pessoa, aos nossos) segundo o seu grau de respeito ou desrespeito pelos animais.

Será esta série de mortes violentas, em última análise, uma vingança dos animais,  o que faria da narrativa uma espécie de fábula? Ou a obra de alguém que age em vez deles, o que a tornaria antes um policial? É este romance - pergunto, por fim; e não posso responder, sem revelar mais do que devia - um elogio da causa dos animais e da natureza, mas, simultaneamente, uma advertência para quão pouco resta transpor, de modo a que a causa boa se transforme numa forma de fanatismo?

A cada um a responsabilidade da sua leitura.



terça-feira, 21 de julho de 2020

SHIRLEY JACKSON: O HOMEM DA FORCA


O meu movimento em direcção a Shirley Jackson foi provocado pela descoberta de uma peça fabulosa da ficção gótica, um conto chamado The Lottery, que, nos anos 40, explodiu como uma bomba entre os leitores burgueses de uma popular revista norte-americana: horror, choque, insultos, cancelamento de assinaturas da revista. Compreende-se, até certo ponto: saídas havia pouco da Guerra, as famílias aspiravam a optimismo, pediam fé, e o conto, que sobrevoava uma aldeia, picando sobre a população amistosa, para desvendar, no fundo daquela simpática  normalidade, um hediondo ritual secreto, foi recebido com verdadeira consternação.

Mas tropeçar neste conto de Shirley Jackson significou encontrar-me com outros tantos, da autora, compilados no livro onde se encontrava The Lottery e, assim, familiarizar-me com a sua escrita subtil, surpreendente na flexibilidade e na técnica, e com o seu poder para extrair atmosferas ameaçadoras a partir de ambientes aparentemente encantadores, ou com a força na sua inesperada aproximação ao medo ou à loucura das personagens.
Depois, para mim, veio, ainda, Sempre Morámos no Castelo, um romance carregado de tensão, de que aqui dei conta na altura em que o li.

O Homem da Forca principia no momento em que os Waite preparam uma recepção. Ao longo dessas horas, penetramos no  sufocante universo da família e, embora não  sejam explicitamente descritos (oh maravilhosa arte do não-dito, em que SJ é exímia), vamos adivinhando os fios da relação, psicologicamente pesada, que Arnold Waite mantém com a mulher e os filhos.

Num momento da recepção, alguma coisa acontecerá a Natalie, filha do escritor Arnold Waite. Talvez fosse violada por um convidado; mas a verdade é que o leitor não assiste à  ocorrência. "A coisa má ", como, mais tarde, Natalie se lhe referirá, de si para si mesma, é apenas sugerida. Os estranhos diálogos que Natalie, desde que a conhecemos, persistentemente entabula, no seu íntimo, com uma singular figura imaginária, já nos haviam alertado para a possibilidade de um desacerto, de um mistério mental, digamos assim, pelo que todas as dúvidas acerca do que efectivamente lhe terá sucedido naquela noite soam legítimas.


   Deixem-me agora conduzir-vos pela separação entre Natalie e a família, quando aquela ingressa na universidade; falo da forma como em magistrais pinceladas impressionistas, Shirley Jackson nos descreve a universidade (aspectos do seu espírito; das suas pretensões; as falhas e as sucessivas correcções no respeitante aos ideais primitivos, que viriam explicando a transformação desses ideais ao longo da própria história; o tipo de professores contratados) ou o quarto em que Natalie irá morar. Tudo nesses capítulos vertiginosos se faz de referências breves a caracteres acidentais (os jovens que, reunidos num café, haviam decidido fundar a universidade, como clarão sobre a génese dela; a "confidente oficial" das alunas que, na época de Natalie será já velha, a «Velha Nick») para, com unicamente esses traços, desenhar, ante os nossos olhos, a essência da universidade. E, do mesmo modo: alguns aspectos do quarto, como os furos feitos, com pregos, nas paredes, indícios de quadros pendurados pelos inquilinos que por lá passaram (a despeito das penalizações por furarem as paredes, que nenhum deles ignorava), ou as fantasias de Natalie descobrindo, no quarto vazio, de que modo poderia usá-lo ou decorá-lo, são, uma vez mais, linhas dispersas com as quais se nos revela infinitamente mais do que aquilo que de facto se expõe. Ou ainda: o extraordinário trecho que nos dá a ver a sala de estar onde, pela primeira vez, as raparigas desconhecidas se encontrariam, se mediriam, imaginando o que viriam a ser, ou viriam aadar-se, sempre a partir de pequenos pormenores sobre os quais cada uma delas haveria de compor a biografia e a personalidade imaginadas das outras.


Para dar conta dos ameaçadores contornos de sombra em que se (des)equilibra, periclitante, a mente mórbida e vulnerável da protagonista, o modo como a autora relata as conversas que ela tem com as demais personagens, em paralelo e em simultâneo com os seus pensamentos e com a sua própria leitura do que lhe dizem, torna-se penetrante e muito bem conseguida. O mundo exterior é-nos sempre dado a partir do ponto de vista de Natalie, dos seus medos e das suas crenças. Como, apesar de tudo, a narradora não é ela, só avançamos na compreensão da sua subjectividade até onde quem escreve quer e permite: e portanto o mistério nunca se dilui, as zonas equívocas nunca se desfazem, nunca a totalidade é desnudada, para eficácia de uma narrativa que percorremos como sobre uma lâmina, com um calafrio.

Toda a parte final de O Homem da Forca pode ser lido segundo interpretações completamente díspares e opostas entre si. O que parece não ser mais do que o encontro mágico de duas amigas perfeitas, cujas fantasias se comunicam de forma a descobrir um mundo secreto e traiçoeiro sob o mundo quotidiano, o exercício da loucura comum como brincadeira, possibilita várias leituras. A pergunta é sempre pelo que é real. É sempre por quem - e o quê  - existe realmente. Pela fronteira entre o sonho e a vigília, ou entre a vigília e a alucinação.

Num ponto remoto de todos e de cada um de nós, recalcada e renegada, a irracionalidade de Natalie é a nossa irracionalidade. O seu medo é o nosso medo.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

JOSÉ d'OLIVEIRA GOMES: COISAS DO DIABO E ESTÓRIAS DO ARCO DA VELHA




                                                                              Não direi "gurus", apenas porque as pessoas em causa ficariam incomodadas e até ofendidas com o peso do estatuto que lhes depositava sobre as costas. Mas estrelas-polar, que até é mais bonito. Confesso: guio-me por elas, na descoberta do que é novo em matéria de literatura. O meu primo, sobejamente mencionado neste blogue; a Paula, que me deu a conhecer tantos autores espanhóis; ou a Elisa, que me veio apontando, sem até,  talvez, se aperceber, inúmeras pérolas ocultas.

Estas editoras praticamente invisíveis, estes poetas, estes contistas maravilhosos, cujas vias, na maior parte dos casos deliberadamente, optam pela fuga ao demasiado frequentado e conspurcado, são sempre relâmpagos secretos, objectos de culto no sentido daquilo que não é para todos os olhos, daquilo que só os paladares exquis merecem. (Não sou tão snob assim. Uso o termo pela graça).

Elisa Costa Pinto, no seu mural de facebook (que é, by the way, uma subida aonde se respira de outra forma, estética e tematicamente, no bom-gosto da simplicidade e da profundidade ao mesmo tempo), mencionou há pouco um livro, recente (2019), de breves histórias. Tão breves (brevíssimas!), que citava uma.
Tenho o livro nas mãos,  graças à desenvoltura de uma outra amiga, para quem tudo é rápido, a Cristina. Deixem que partilhe convosco a revisão do provérbio com que JOG conclui o seu livro: "O cão larva e a caravana pássaro."

A partir daqui,  ganhámos uma excelente varanda para apreciar o todo: a facilidade na síntese, no tirar partido de equívocos,  na forma deliciosa como se misturam registos e linguagens (vide o conto em que os discípulos, penando para chegar ao lugar, recolhido e de acesso difícil, onde se encontra o Mestre, e esperam, já diante dele, uma frase redentora e sublime, são surpreendidos por um dito coloquial de velhinha típica portuguesa: o melhor do cómico e do ridículo nasce quase sempre, aqui, da surpreendente intersecção entre o sagrado e o profano, o elevado e o quotidiano, o profundo e o mesquinho); o sentido de humor, a provocação, o delírio. E, principalmente, uma certa dose, a quantidade adequada, de sadismo cínico, que não deixa de nos arrepiar no momento em que, precisamente, nos faz rir.

Tudo no livro participa de uma espécie de fingimento pessoano. Já percebemos que o nome é um heterónimo, de que um editor, de cuja existência real desconfiamos imediatamente, nos dá uma nota biográfica hilariantemente improvável.

A Elisa fez a comparação com Mário-Henrique Leiria, sublinhando justamente que José d'Oliveira Gomes não fica a perder. Concordo absolutamente: se aqui reinventa o estilo e o espírito gin-tónico, não é como um epígono ou um imitador que JOG o faz: é como um discípulo digno e maior, um endiabrado e engraçadíssimo refazedor do caminho. Obrigado, Elisa.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

PAUL JOHNSON: SOCRATES, A MAN FOR OUR TIMES


Sócrates é uma figura fascinante e profundamente revolucionária. Na vida e no pensamento, se podemos realmente falar de um "pensamento" socrático, para além daquilo em que Platão o terá transformado (e já lá vamos!). O que vemos nele é extraordinário : o homem de uma exigente coerência, que renunciou a uma carreira brilhante (ao contrário dos sofistas seus contemporâneos, que transmutavam as competências oratórias em dinheiro) e desprezava qualquer forma de propriedade, preferindo devotar a vida ao exame de si próprio e dos seus concidadãos, livremente,  com uma ironia, mas, ao mesmo tempo, uma cordialidade, de que perdemos o segredo.

Nietzsche acusou-o de um dos piores pecados na história da filosofia. O de ser o coveiro da filosofia trágica, a dos pré-socráticos, que expressava uma ligação às forças do cosmos - que Sócrates rompeu, inaugurando uma intelectualização no modo de olhar o mundo (e o mundo que lhe interessava era o dos homens e suas acções), que nos desprende e afasta, ensinando-nos a desprezar a realidade física, sensível, como mera aparência, impondo, como verdade, um mundo puramente ideal, descarnado, inflexível. Mas terá sido, realmente, Sócrates o responsável? Ou seria Platão,  em parte em seu nome?

O livro de Paul Johnson sobre Sócrates, apregoado por The Wall Street Journal como "spectacular", é de facto, por mais do que uma razão,  "espectacular". A tese central é a de que o Sócrates autêntico nada tem, ou muito pouco, que ver com o Sócrates que Platão terá inventado como arauto das suas próprias ideias, dele, Platão. A pretensão não é original: ao invés de Sócrates,  o que encontramos, na maioria dos diálogos platónicos, é uma ínvia personagem a que Johnson chama Platsoc, a mistura impossível e equívoca de alguma coisa de Sócrates com a forma e os propósitos de Platão.

Como os distingue Johnson? A esta pergunta, meu primo responde, com graça: tudo o que agrada a Paul Johnson é de Sócrates.  Tudo o que lhe desagrada é de Platão.

Descontando a parte de ironia, é um pouco disso que se trata. Raramente vemos argumentos convincentes para o separar das águas. Um guia estritamente sentimental parece mover o autor nesse trabalho. Atinge os píncaros quando ousa afirmar,  peremptório, a propósito de A República, que se trata de uma obra placsocrática, com a excepção "clara" de certas frases, que atribui indiscutivelmente a Sócrates.

Advertidos contra este pendor do ensaio, este enviesamento, considera-se a sua leitura extremamente cativante. É um livro bonito, muito bem escrito, que procura enquadrar o Sócrates histórico no seu tempo e na cultura ateniense. É,  sobretudo, o livro de um apaixonado por aquele sobre quem escreve. Com as consequências, as boas e as más,  daí decorrentes.

sábado, 11 de julho de 2020

JULIÁN FUKS: A OCUPAÇÃO


Preconceituoso, farejo os cantos de sereia nas badanas ou na contracapa: observo aquele exagero de prémios portugueses e brasileiros que o Autor veio recebendo desde a sua primeira obra. Sou sempre céptico, habituado à experiência de que, escritores ainda recentemente chegados e já sobrecarregados de prémios, revelam, a não ser excepcionalmente, mais uma carteira de bons contactos, do que uma surpreendente qualidade literária. É uma generalização abusiva da minha parte. Por algum motivo, a primeira palavra deste post é "preconceituoso"; mas trata-se de uma forma de prudência, também.  De me manter sereno perante os acenos de reconhecimento de algum olimpo de jurados.

Começo a ler e calo imediatamente a boca. (Outra tendência de que me resguardo: deixar-me impressionar logo às primeiras linhas). A escrita, preciosíssima, não engana.

Os capítulos são muito breves, entre uma página,  alguns, e três, a maior parte.  Dir-se-ia que para não prolongar demasiado o módico da dor suportável. Como se a concentração da tristeza precisasse de uma medida certa de duração. Um disparo curto de cada vez.

Existem, na novela, três focos; alguns críticos, a propósito do título,  Ocupação, entendem-nos como três diversos modos de ocupação: a de uma casa, um antigo hotel, na verdade, num primeiro momento, por um grupo de sem-abrigo de proveniências diversas, um dos quais, um sírio chamado Najati, convoca o narrador, porque deseja contar-lhe a(s) sua(s) história(s); (todos, ali, o desejam,  aliás,  e muitos contam fragmentos de passado: Carmen, Preta, Demétrio Paiva); o ventre da companheira de Sebástian, narrador, onde gesta @ desejad@ @ filh@ de ambos; e a cama do hospital onde o pai de Sebástian morre lentamente, ou luta lentamente pela vida, com um pulmão perfurado. São focos de tal modo separados, que dificilmente se tecem linhas que os liguem entre si. Mas essa economia do que nos vai sendo contado, não como uma história una, mas histórias que são mónadas, sem mútuo intercâmbio, fechadas sobre si, indiferentes a, ou ignorantes das outras, e no entanto se concertando na harmonia do narrador que lhes é comum, essa pessoa que as agrega, constitui parte da beleza muito particular do modo como esta voz brasileira nos traz até si, reconstituindo este pretérito tempo feito de tempos heterogéneos, vasos incomunicantes.

Mas, de facto, a ocupação mencionada no título é ainda, e sobretudo, uma outra: o processo, o movimento pelo qual o grupo conquista (é o termo) um prédio de onde os haviam expulsado, criando barricadas, plantando uma bandeira, preparando a resistência contra a polícia. "Você não entende, não é? Acha que todo o esforço é por nada, por um terreno sujo, por um prédio caindo aos pedaços. Você não sabe o que foi este lugar quando ocupámos pela primeira vez, não sabe que aqui era a casa da própria vida encarnada. Eu era criança, você não imagina a quantidade de lembranças que guardo daqui,  a quantidade de noites em que volto a este jardim, não assim em sombras, a um jardim ensolarado."

A autenticidade é uma marca de toda a narrativa. Nos agradecimentos finais, apercebemo-nos da existência das pessoas transmutadas em personagens; "Sebástian" é de tal maneira o próprio Autor, que em uma belíssima passagem, que nos oferece uma conversa, no hospital, com seu pai, o pai o trata por "Julián ": e Julián/Sebástian retorquiu: "Sim, mas aqui chama-me Sebástian". Apenas indícios para confirmar qualquer coisa que a leitura já tinha adivinhado. Não podia ser de outro modo. E não que, por si só,  a autenticidade seja um valor literário. Neste caso, é um valor na relação do leitor com o que está lendo. E não é pequena coisa. Não é pequena coisa.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

SANDRA COSTA: BOLETIM METEOROLÓGICO


Lembro-me de, já na adolescência, um médico me ter pedido que lhe descrevesse certa dor que me fazia sofrer. Como se descreve uma dor? Ainda hoje não consigo. Vasculho palavras comuns, aplicadas habitualmente ao sofrimento físico, como se respondesse a perguntas, "é  aguda?", "é intermitente?", "é contínua?", mas regressa-me sempre a sensação de ficar aquém, de poder até morrer por não ter sido capaz de fornecer ao médico a informação adequada.

Compreensivelmente, é essa mesma sensação de impotência que me assalta quando procuro dispor de palavras para falar da poesia. Como se pertencessem a diferentes apartamentos do meu cérebro, a vizinhos que nem os bons-dias trocam, o "sentimento poético" e o "discurso analítico sobre" evitam-se mutuamente. A poesia é para ler (em voz alta, de preferência) e habitar afectivamente, enquanto a análise do poema me obriga a um distanciamento que contradiz a minha relação e o meu compromisso com o poema que me toca.

E no entanto, não posso deixar de me referir (e expor a análise possível) a Boletim Meteorológico, de Sandra Costa, cuja poesia não conhecia a não ser de alguns poemas colhidos, dispersamente, aqui ou ali.

Neste livro pouco extenso, de formato pequeno, agradável ao olhar e ao tacto, a "descoberta", irónica, mas não só, do léxico da meteorologia, como quadro metafórico privilegiado e critério consistente, permite uma leitura originalíssima e extremamente feliz dos sentimentos. O que faz ainda mais sentido, tratando-se de criar, poema a poema, uma temperatura da alma ("temperatura" porque se trata de um sentido específico, que não é, julgo, nem o olhar nem o ouvido. É outra coisa).

A consciência, a voz poética, evoca quase sempre, aqui, um sujeito frágil, desamparado, um junco em face das variações atmosféricas, que usa como uma espécie de luz, de medida e de linguagem para sondar a memória, os sentimentos, as perdas, que são, não apenas a memória, os sentimentos e as perdas pessoais, mas as da humanidade, em cuja História se reconhece e em que reencontra os seus próprios desejos e gestos:  "Assim, quando a noite começar Fevereiro,/ a norte do Cabo Raso, a ondulação poderá atingir/ os quinze metros, prevendo-se rajadas que talvez/ façam sucumbir o que de mais íntimo existe sob/ a penumbra de voz quando um homem e uma mulher/ sonham beijar-se pela primeira vez, ainda que milénios/ os afastem e aproximem de Troia."

A experiência do registo do tempo, ao longo do solstício, captando nesse registo sobretudo as mais subtis variações atmosféricas íntimas a um sujeito, na sua busca de comunicação, diferida, com um amado ausente, retomando todos os trilhos de poetas intemporais, faz de Boletim Meteorológico, na sua deliberada e encantadora contenção (eu diria: discrição) um livro a que se volta, a que tenho voltado.

domingo, 5 de julho de 2020

JOÃO TORDO: A NOITE EM QUE O VERÃO ACABOU


Anunciado como incursão de João Tordo no thriller, e com o sublinhado que, algures, terei lido (numa entrevista ao autor? em informação de badana?) lembrando-nos que o policial é, afinal, um género maior e que JT conhece bem os Chandler e os Stout,  A Noite em que o Verão Acabou é um romance noir de 667 páginas, que faz mais lembrar, na verdade, os de Joël Dicker: A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, ainda há quem se lembre? Isso tanto pela extensão, até porque os americanos raramente se alongam assim para nos servir o assassino, como pelo ambiente reconstituído em torno de uma vilória norte-americana, aparentemente pacata, qual um lago que esconde, no fundo, um passado em que ninguém quer remexer; ou ainda por um certo tipo de personagens, a começar no narrador, aspirante, mais ou menos frustrado, a romancista, passando pela protagonista, que o convencerá a persistir na investigação da morte do pai dela; e acabando nos típicos cromos de uma povoação  como Chatlam: o repórter de um jornal de província, o sheriff, a empregada de um daqueles cafés de beira de estrada que nos habituámos a ver no cinema.

Evidentemente, fazendo a comparação, será justo acrescentar que se trata de um Joël Dicker francamente melhor. Se Dicker se deixa resvalar com certa precipitação para uma intriga com inverosimilhanças que se multiplicam em focos risíveis, João Tordo mantém o pulso, e constrói com firmeza uma odisseia entre o Algarve - onde, na sua adolescência, o português Pedro Taborda, de férias com os pais e a irmã, se sente atraído pelo perfil complexo e misterioso de uma família de norte-americanos, os vizinhos Walsh, mais os respectivos satélites - e os EUA, em que se reencontrarão anos mais tarde, lutando com (e contra) um amor que Pedro Taborda e Laura Walsh não podem mutuamente confessar - porque ele se casou, tem um filho, é fiel - e um crime que querem solucionar. Uma viagem,  portanto, no espaço e no tempo, num encadeamento ora nostálgico, ora vertiginoso, entre os anos da adolescência, os da juventude e os da maturidade, que o Autor nunca deixa descarrilar: diálogos convincentes, "à americana", linhas secundárias que estimulam o interesse (como a fraude vergonhosa através da qual Pedro Taborda conseguira que uma universidade norte-americana o admitisse, e está sempre a um passo de ser descoberta), e a máquina bem oleada que leva a que nos enganemos na descoberta do assassino, tornam A Noite em que o Verão Acabou um romance despretensioso, que se lê com muito gosto.




quarta-feira, 1 de julho de 2020

MARGARET ATWOOD: OS TESTAMENTOS


O parco e oscilante número de leitores que faz o favor, continuo a perguntar-me por que razão,  de seguir estes apanhados das leituras a que me vou dedicando (chamar-lhe "recensões" seria demasiado) sabe que gosto muito de Margaret Atwood. Da flexibilidade com que se move entre uma cultura sofisticada (a Bíblia, Homero) e o poder de construir máquinas narrativas eficazes, que mantêm o suspense e a surpresa. Ou seja, verdadeiramente, o cruzamento entre a erudição e o entretenimento (que em literatura é raro, é raro).

Também sabem, os que aqui me lêem, que apreciei sobejamente "Crónica de uma Serva", livro maior em que a máscara da ficção científica serve para o desenho de uma sombria alegoria do nosso tempo.

MA escreve, agora, uma sequela. Afirmando que o novo romance foi nascendo para responder a inúmeras perguntas que lhe faziam sobre o Estado de Gileade e "o seu funcionamento interno", construiu "Os Testamentos", premiado com o Booker Prize 2019.

Quais os problemas? Em primeiro lugar, a insistência em retomar e prolongar um romance que não carecia de qualquer continuação. Se o primeiro deixou dúvidas e deixou questões a que não respondeu, foi porque se tratava de dúvidas e de questões inerentes à angústia e ao desassossego que o retrato daquela sociedade provoca.  E assim deveriam permanecer: uma narrativa que se fecharia em torno de si própria,  densificada pelas incertezas que sempre a acompanhariam como parte do seu enigma essencial. O outro problema consiste em que quando nos propomos escrever um segundo romance em busca de um "happy ending" que o anterior se recusara a oferecer-nos, não há como evitar que esta continuação seja mais pobre, ou que seja, de algum modo, um abastardamento.

Teria usufruído "Os Testamentos", teria podido gozá-lo melhor  se não conhecesse o anterior? Talvez. Não sei. Mas aí é que está.  A própria MA impôs um critério e um termo de comparação e, desse ponto de vista, "Os Testamentos" desiludiu-me.

As histórias paralelas de três mulheres vão sendo narradas em segmentos separados: nada de particularmente original. Mas até as personalidades de uma espécie de abadessa (a madre superiora das "tias", cuja função lembramos todos quantos lemos a "Crónica..."); uma adolescente a quem decidem o futuro marido; e uma outra rapariga que, num país vizinho, tudo ignora sobre a sua verdadeira origem e a sua relação  com Gileade, são personalidades sem espessura, pouco convincentes, usadas como bonecas de cartão que se dirigem para um aparentemente imprevisível (mas, de facto  aguardado por todos os leitores) encontro no futuro, para benefício do desenvolvimento do romance segundo um plano sem grande fulgor.

MA parece, aliás,  aperceber-se da fragilidade desse motor. Ou sou o único com a sensação de que a partir de certo ponto se quer apressar a narrativa, abreviando os desenvolvimentos e encurtando as pontes?

O fim, sobretudo a partir da confluência entre as três histórias, que a autora desejaria realizar como uma epifania (a miraculosa descoberta da ligação entre a protagonista do primeiro romance e as personagens do segundo) tece-se, afinal, como uma revelação fraquinha. Sem lugar a qualquer luz nem estremecimento.

terça-feira, 30 de junho de 2020

ALASDAIR MacINTYRE: AFTER VIRTUE


Num país como os EUA, mesmo corroído por sinais dos vírus da desigualdade e das contradições que conduzirão a civilização, na sua forma actual, ao abismo, conseguimos encontrar, em todas as áreas, o que de melhor se faz, pensa, cria, escreve. Até em ramos onde os norte-americanos foram sempre secundaríssimos, vemos universidades que investem, estudantes e professores que recebem bolsas, investigadores que contam com um apoio digno. Há traduções de obras que dificilmente são traduzidas na Europa, já para não referir Portugal em concreto. Há publicações novas, estudos recomendáveis e uma vitalidade surpreendente.

Na filosofia, assim é.  E meu primo, outra vez nos EUA, continua a ser o Virgílio que me guia, chamando-me a atenção para recentíssimas traduções de textos pouco lidos e pouco conhecidos de Nietzsche (sobre os pré-platónicos, não os pré-socráticos, como nos habituámos a designar), ou, por exemplo, o extraordinário "After Virtue", de MacIntyre, que leio com a lentidão que o inglês me exige e se torna, na verdade, o ritmo certo para a leitura da escrita filosófica. MacIntyre é um escocês cujos ensino, reflexão e publicação ganham, nos EUA, o investimento e a visibilidade que merecem.

Mesmo quando não concordamos (e as ideias são tão refrescantemente originais que, acerca da sua maioria, não sei ainda se concordo, se não) leio-o com a sensação de um funâmbulo que se move sem rede por baixo de si: interrogando-me, revendo-me, reavaliando quadros que dava por estanques.

Trata-se de uma obra sobre filosofia moral. A tese é que, desde as Luzes (e em grande medida, por causa do projecto das Luzes) os pensadores da moral e o cidadão comum perderam o que seria a base que sustentaria a possibilidade de um autêntico pensamento moral. Visando, por um lado, destronar qualquer fundamentação religiosa da ideia do bem e do mal, visando, por outro lado, renunciar a um "telos", a uma finalidade do humano que justificasse o bem como sendo o cumprimento desse fim, os filósofos dos séculos XVII e XVIII ficaram-se por uma linguagem moral que herdavam do passado, mas despojada do conteúdo que queriam rejeitar, e procurando oferecer-lhe a autonomia racional como único suporte.

Kierkegaard seria, na leitura de MacIntyre, o primeiro a compreender que não é possível justificar, pela razão,  o bem e o mal. Essa tentativa iluminista está votada ao fracasso: diferentes argumentos racionais podem fundamentar consistentemente diferentes e opostas posições morais. Ou seja: justifico racionalmente o bem por que optei, mas não posso justificar de início a minha escolha desse bem, ao invés de um outro, que poderia justificar de uma forma igualmente coerente.

Um elemento de arbitrariedade, um salto sem razão,  estaria, pois, na génese de qualquer moral. As consequências desse desfasamento são inúmeras, e a sociedade é hoje, nos seus choques e conflitos morais, a evidência dessa incapacidade para fundamentar uma escolha. O emotivismo, que alastrou como critério maior, e MacIntyre tão duramente critica, tem-se anunciado como uma das formas de colmatar essa falha, a sem-razão inicial de todo e qualquer ponto de vista moral.

A proposta do autor, nunca ligeira, sempre cuidadosa e rigorosamente fundamentada, ainda quando nos pareça errada, defende um retorno, de algum modo, a Aristóteles. Isto é,  à ideia de um enraizamento num contexto histórico e social (suportado por uma concepção da natureza humana) que delimite um "telos", um fim sobre cujo horizonte possamos dialogar, e discordar. O que é ser um bom humano, que fim nos completaria como seres humanos e em que medida os nossos actos nos dirigem para essa realização: tais as perguntas, segundo MacIntyre, sem pensar as quais qualquer moral será uma casca vazia, o uso de uma linguagem e de valores que herdámos, mas não podemos inteiramente justificar.