quarta-feira, 31 de agosto de 2011

IRIS MURDOCH: UMA CABEÇA DECEPADA


Iris Murdoch, curiosamente, é uma autora que nunca chamara por mim. Havia boas razões para que eu lhe prestasse atenção: estudante de Literatura Clássica, que se dedicaria, mais tarde, à filosofia, sob orientação de nada menos que Wittgenstein, Iris Murdoch escreveu ensaio, poesia, teatro e romance, deixando-nos páginas onde, perante as escolhas e os actos de personagens capturadas na armadilha de situações inesperadas, se abre um terreno frutífero de reflexão moral.

Talvez temesse precisamente isso: um excesso de filosofia a contaminar os romances, com longas e densas tiradas na boca de personagens. Enganei-me. Murdoch é subtil. E este romance - muito possivelmente o primeiro que li dela - conta uma história no limiar do verosímil, de uma intensidade russa, segundo uma trama complexa, mas que nem por um momento nos fatiga ou desinteressa. Por um lado, porque é absolutamente surpreendente: Iris Murdoch vai virando esquinas que nos colocam em face daquilo que o protagonista - e narrador - não tinha previsto, nem, precisamente, o leitor.

O que está em causa é tão-só a civilidade: até que ponto as relações humanas - quando expostas ao fogo da paixão, da traição, da culpa, do ciúme e do medo, sob o contínuo e secreto desígnio de uma luta pelo poder de pessoas sobre as pessoas - podem «resolver-se» civilizadamente; como se fosse possível uma generosidade e uma compreensão quase ilimitadas, um perdão ou uma aceitação que evitassem sistematicamente o escândalo, a raiva. Como se os conflitos de amor e poder pudessem concertar-se amigavelmente. Ou, pelo contrário: até que ponto toda a generosidade e perdão são ilusórios, toda a compreensão e aceitação de um novo estado nas relações não implica um recalcamento de fúrias primitivas e implacáveis desejos de vingança.

Sob o signo de Medusa - Honor Palmer é uma personagem extrema, capaz de uma atracção horrorosa e incompreensível -, Uma Cabeça Decepada é um romance impregnado de uma aura mitológica que o torna, paradoxal e estranhamente, próximo de nós, de uma perturbadora autenticidade: trabalhar os mitos é, de certa forma, redescobrir, mais do que o "paradigma", a própria alma de certos actos e relações humanos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O QUE É, AFINAL, UM LIVRO PERFEITO?



Num comentário simples, possivelmente sem segunda intenção, o meu leitor Bruno Bravo obriga-me a rever o que disse acerca dos livros perfeitos que já li.
A primeira questão que se me põe é a do que é um livro perfeito. E, claro, tenho consciência de que um livro perfeito não pode ser senão o livro perfeito para um leitor. Ou seja, um elemento de subjectividade, que diz respeito à ligação específica entre aquele texto e aquele leitor, não pode ser ignorado. O livro perfeito é sempre «o meu livro perfeito». Nada mais. Num blogue em que não falo senão dos «meus» livros, do modo como certas obras me tocaram e passaram a fazer parte da minha experiência, parece-me perfeitamente aceitável.

Posto isto, surge um outro problema. Conheço cada vez mais pessoas que fazem gosto em dizer que não têm «um» livro da sua vida (ou «um» filme, ou «uma» música...) mas, no mínimo, dezenas. Sinto-me culpado por contrariar essa tendência. Mas tenho um livro da minha vida, como sabem todos os que acompanham este blogue. É Em Busca do Tempo Perdido. É o «meu» livro absolutamente perfeito, no qual Marcel Proust atinge uma dimensão da escrita, na expressão das percepções e da memória destas, como nunca mais tornei a ver. Falo com toda a seriedade, e não para armar aos cágados. Cada período nos envolve, como se nos afogássemos tranquilamente nele, como se nada mais existisse senão aquela sucessão de imagens segundo ângulos que são sempre extremamente inesperados.

No mesmo círculo da perfeição, digamos assim, aceito «O Inferno» da Divina Comédia. Só «O Inferno»: «O Purgatório» e «O Paraíso» nunca me tentaram - talvez por insuficiência minha, porque os li com a mente demasiado carregada das tensões do inferno para que pudesse apreciar aquela beatitude. E talvez devesse relê-los. Mas, perfeito é, paradoxalmente, «O Inferno». Porquê?

Em primeiro lugar, porque a linguagem poética de Dante é muito, muito bela, mesmo [isto é: especialmente] quando se trata de expressar cenas horrendas («dantescas») de sofrimento e mal. O horror exerce um perturbador fascínio sobre mim. Mas, mais do que isto, «O Inferno» coloca questões extremas da emoção e da psicologia humanas: no vórtice da imperdoável culpa, deparamos com almas atormentadas de que nos apiedamos. Nem sempre o desígnio de Deus é muito claro; nem sempre nos parece justo. Uma das cenas que mais me comovem é a dos jovens amantes, castigados em nome de um amor adúltero e proibido, uma paixão pecaminosa mas de que se não arrependem: estão no inferno, mas eternamente juntos, de maneira que algo de bom, ilusoriamente, permanece intacto na ligação daquelas almas.

Por outro lado, Dante é a testemunha completa, piedosa, plena de sensibilidade e afecto, que se entristece - e desmaia - perante o tremendo espectáculo a que assiste. Tem medo, curiosidade, sente-se perturbado e condoído. E tudo se nos afigura tão vivo e tão real que, durante a leitura de «O Inferno», nem por um momento nos lembraríamos de pôr em causa a existência do inferno.

Sou um leitor predisposto para amar. Em geral, prefiro falar dos livros de que gosto - e gosto de muitos, muitos, muitos. Mas sempre senti que todos os demais estão em outro patamar. Possivelmente porque cada um deles trabalha profundamente «um» sentimento ou «uma» sensação ou «um» ângulo, mas só Dante e Proust mobilizam, em mim, uma infindável panóplia de sentimentos e sensações, agregando-as e desagregando-as vertiginosamente, fazendo-me descer ao que de mais profundo possa existir em mim, intelectual, psicológica, moral e esteticamente.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

WILLIAM MAXWELL: VIERAM COMO ANDORINHAS


Agrada-me chegar a livros inesperadamente. Ou porque um amigo me aconselhou, ou porque o meu interesse foi fisgado por um comentário no suplemento literário de um jornal. Mas a minha forma predilecta é a de chegar a livros através de livros.

Este romance, sobre que hoje venho falar, é abundantemente referido em Ilha Teresa, de Zimler: Teresa, a protagonista - e narradora -, uma garota portuguesa emigrada nos EUA, ignorada pela mãe fútil e pelos adultos em geral, sente-se fascinada com um livro que anda entretanto lendo, recomendado pelo professor de inglês. Trata-se de They Came Like Swallows, de William Maxwell.

As razões pelas quais Teresa consegue identificar-se com as personagens desse romance, que vai lendo, particularmente Bunny, não deixam dúvidas: a mesma dificuldade em compreender e integrar-se num mundo onde tudo está permanentemente prestes a desfazer-se; a mesma necessidade de algo - ou de alguém - que funcione como um ponto fixo de paz e de sentido, a partir do qual o mundo se restaure. E, por fim, a perda definitiva desse ponto fixo - a morte de quem nos vela. [O pai de Teresa falecera...]

Procurei o livro em causa, entusiasmado. Pretendia encomendá-lo em inglês, não fazendo a menor ideia de que o romance existe numa tradução portuguesa. Ora existe. Vieram como Andorinhas. [É então isso que significa "swallows"?] Devoro-o. Estou em êxtase, faltam-me palavras.

Antes do mais, deixem-me dizer duas palavras sobre a questão da perspectiva. A primeira parte do livro é escrita segundo a perspectiva de Bunny (o que não quer dizer que este seja o narrador), a segunda segundo a de Robert, seu irmão mais velho, e a terceira não sei, ainda não sei. [Sei-o agora: é James, o pai].

Bunny lembra o pequeno Marcel, de Em Busca do Tempo Perdido. A mesma sensibilidade excessiva e descontrolada, quase histérica, e o mesmo amor ilimitado pela mãe. De algum modo, mesmo geográfica e geometricamente, é sempre em redor de sua mãe que o espaço se lhe dá no seu sentido. A biqueira do sapato dela, por exemplo, no momento em que ela se encontra de pé, é o início do padrão do tapete. E, na ausência da mãe, as colheres são simplesmente colheres: só na sua presença o mundo se ilumina e as colheres podem ser bonecos com os quais brinca.

Ainda antes de sabermos por que motivo teme todos os demais (ou quase todos), somos confrontados com esta frase que, na sua simplicidade, introduz de imediato uma sensação de insegurança e desconforto em relação ao pai: «Ela afastou-se para poder observá-lo e ver se ele se tinha lavado devidamente, e Bunny reparou com alívio nas migalhas no lugar do pai, no guardanapo dobrado displicentemente.» [O alívio perante a ausência do pai, perante os indícios de que este já tomara o pequeno-almoço e se fora].

É um livro maravilhoso, escrito, todo ele, nesse dificílimo equilíbrio entre o que explicitamente se diz e o que se deixa adivinhar. Cada frase é de uma contenção perfeita - e nessa contenção lê-se todo um universo unicamente sugerido. Por outro lado, voltemos por um instante à questãoa da «perspectiva»: o modo como Maxwell a constrói deveria servir, julgo eu, como um exemplo para todos os aspirantes a escritor. Se não, veja-se: se ao longo da primeira parte, o irmão de Bunny, Robert Morisson, nos aparece como um miúdo petulante, antipático e agressivo, ao longo de toda a segunda parte compreendemos a sua visão do mundo e, portanto, compreendemo-lo: vítima do acidente que lhe roubou uma perna, ciumento e carente - embora, paradoxalmente, incapaz de exprimir fisicamente afecto -, Robert é um pré-adolescente que não entende a fragilidade do irmão, nem a preferência da mãe.
A essa luz, curiosamente, é Bunny que nos parece uma criança mimada e um tanto falsa na manipulação do carinho dos adultos.

É todo este quadro de relações complexas, psicologicamente muito bem tratadas, que vai ser alterado com o desaparecimento do seu eixo. O que é o «dia depois»? O que resta quando já não há fundamento amoroso?

Existem livros muito bons - mas os livros perfeitos são raros. Conhecia três. [Não se percam nas contas pelo facto de um deles ser constituído por sete volumes]. Posso parecer hiperbólico, e não sei se esta sensação perdurará: neste momento, em que o leio ainda, posso dizer-vos que descobri mais um livro perfeito.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

a internet como veículo para o regresso ao prazer da leitura em papel

Na série de autores Não-Nobel a que me referia em outro post, aludi a Raymond Chandler. Chandler, afirma-se na contracapa de À Beira do Abismo, «não foi premiado por ser o representante de um género literário considerado menor pela Academia [o policial]».

Se quiséssemos comprovar esse preconceito recorrendo a um caso semelhante (que, por acaso, escapa à colecção de O Público), Ray Bradbury é o que imediatamente me ocorreria. Gosto muito de Fahrenheit 451, que é, para começar, um romance impressionantemente bem escrito, do ponto de vista literário; para além disso, uma das homenagens mais belas, que conheço, à literatura: não esquecer que é a história de um grupo de resistentes, leitores impenitentes, numa sociedade futura em que a leitura foi interditada. [Todos sabem que ler pode ser perigoso, porque faz pensar]. Tornado um objecto de culto, filmado por Truffaut, este romance nunca poderia despertar a atenção da Academia. Estava manchado por um pecado: era ficção científica.

Recordo-me deste livro no momento em que aderi a uma página, no facebook, de leitores. Nada mais do que isto: apaixonados pela leitura, que trocam ideias (a discussão sobre Saramago é interessantíssima), partilham livros de vida, fazem o elogio do prazer da página em papel, que podem manusear, e cheirar e sublinhar, anotar e, num sentido que a leitura virtual nunca permitirá, «possuir». Numa sociedade da não-leitura, em que tudo se reduz e simplifica (com algumas vantagens, não duvido), é sempre um refrigério cruzar-me com um grupo que nada mais une - uns serão bancários, outros professores ou desempregados - senão um dos aspectos essenciais: o gosto, o prazer, a paixão de ler...

Este é o meu 300º post. Tenho muito prazer em dedicá-lo a este grupo maravilhoso.

RICHARD ZIMLER: ILHA TERESA


Pondo de parte as razões sentimentais, Zimler interessou-se por Portugal por causa da comunidade judaica de Belmonte: igualmente judeu, escrevendo uma tese académica, aprendeu o português, estabeleceu laços, viveu entre nós muitos anos. Suponho que passa ainda frequentes temporadas portuguesas.

Por escolha, de certo modo, Richard Zimler veio-se tornando um sujeito culturalmente anfíbio, ligado às tradições e aos costumes portugueses, conhecedor das manias e dos tiques lusos [porventura como nem os próprios portugueses, porque olhando-nos como alguém que está simultaneamente fora & dentro], mas, ao mesmo tempo, norte-americano da cabeça aos pés, apreciador daqueles desportos que movem multidões e os europeus não entendem, atento a Obama, hipocondríaco.

Ilha Teresa é, antes de mais, um testemunho de - e talvez uma homenagem a - esse cruzamento de culturas e ways of life. Sobretudo desse ponto de vista, parece-me extremamente bem conseguido: as referências, constantes, nunca são de mais: das séries televisivas ao Starbuck's, das avenidas aos cabs que as percorrem velozmente, das marcas - de cerveja ou cigarros - às músicas, tudo se constitui como uma série de ícones de fácil reconhecimento. Eis os EUA na sua imagem imediata, familiar, com a qual tem de lidar, no dia-a-dia, uma jovem emigrante portuguesa, a Teresa do título, numa família em desagregação.

A escrita é curiosa: sendo Teresa (uma jovem cujo inglês não é a língua-mãe) a narradora da sua história, a linguagem dela tem de ser imperfeita, pejada de erros e clichés; a sua perspectiva dos acontecimentos é, naturalmente, indignada e parcial. Se evitarmos a sistemática comparação com The Catcher in the Rye [que é uma das obras da minha vida, e o romance em que a técnica de Zimler vai aqui beber], a linguagem juvenil de Teresa, com alguns palavrões e frases típicas, cria, no leitor, um misto de empatia e distanciamento. Lemos sobre uma linha ténue, entre a tolerância e a intolerância, irritando-nos com a estupidez dos seus actos, ao mesmo tempo que podemos compreendê-los e, até, aceitá-los.

É um Zimler muito diferente daquele a que nos habituáramos. Seguindo uma rota inesperada: como um escritor dextro testando a sua mão esquerda, para empregar a expressão de Gonçalo M. Tavares. O que, claro, é sempre um ganho.

domingo, 21 de agosto de 2011

O JORNAL PÚBLICO E UMA COLECÇÃO DE «NÃO-NOBEL»

Num duplo testemunho de cultura e bom gosto, o jornal Público tem vindo a publicar, todas as quintas-feiras, uma série de obras cujos autores não foram premiados senão pelo tempo. Como nos é lembrado, não só se trata de fazer justiça a um punhado de escritores maiores com os quais, por uma razão ou por outra, o Nobel se não quis comprometer, como de «voltar a dar aos leitores obras que há muito desapareceram das livrarias para dar espaço à proliferante produção contemporânea, nem sempre mais interessante do que aquela que a antecedeu».

Espanta-me que um jornal se atreva a uma tão meritória aventura. Porque é um risco. Hardy, Machado de Assis, Kazantzakis, Joyce, Remarque ou Chandler vieram, entre muitos outros, sendo paulatinamente editados. Pelos vistos, com tão pouca adesão dos leitores, que em alguns quiosques já nem encomendam os livros. O «público», não o jornal mas o conjunto de consumidores, é assim mesmo. Infelizmente: pouco atento, sem interesse; qual será o interesse (perguntar-se-ão muitos) de editar uma colecção de «não-Nobel», ao invés de uma de «Nobel»? Uma série de impremiados em vez de premiados? O cidadão comum não ia ser mais perspicaz que a Academia...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

HAENDEL EM ILHA TERESA, DE RICHARD ZIMLER

«E ouviu-se aquela voz.«
«Era uma voz agudíssima sustentando uma única nota perfeita. Quando subiu de intensidade fiquei à espera que se rompesse ou que descesse na escala. Mas não. Não saberia dizer se era uma voz de homem ou de mulher. Era sobrenatural. E talvez por isso mesmo senti a pele arrepiar-se.«
«Quem haveria de dizer que uma única nota nos podia preencher tão completamente?»

«Foi no dia seguinte que eu decidi o que gostaria de cantar se eu pudesse aparecer diante de Deus para pedir que o meu pai voltasse para mim: "Então o que vai ser, minha menina?", perguntava-me o Senhor Deus numa voz imponente, como aquela voz terrífica do feiticeiro de Oz quando a Dorothy lhe foi pedir ajuda. Tremendo como a Judy Garland, eu dizia: "Ombre mai fu, Senhor." Era o nome da ária. Foi composta no século XVIII por Georg Friedrich Haendel. Cantava-a Andreas Scholl.«

«Não houve nunca sombra/ de planta tão cara e gentil/ tão suave«

«Encontrei a tradução na capa do disco. Era uma canção de gratidão pela sombra. Só isso. Uns versos sobre uma coisa tão insignificante como a sombra era capaz de me fazer rir antes de o meu pai morrer, mas agora deixavam-me imaginar o que teria feito o Georg Friedrich Haendel pensar que escapar do sol era tão importante que o levou a escrever a mais bela canção do mundo sobre isso mesmo.»

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A RESSURREIÇÃO DE MOZART: UM EXERCÍCIO DE SUBTILEZA


Estou ainda de volta de Nina Berbévora: gostei tanto do seu livro que, lembrando-me de que na feira do Inatel, onde o comprei, havia pelo menos mais um título da autora [numa edição da antiga Âmbar, que já nem deve existir], tornei ao local, e trouxe comigo A Ressurreição de Mozart.

A influência de Proust, neste meu texto, será excessiva se vos confessar que a leitura desta novela me fez evocar uma tarte de requeijão, deliciosa, que costumava pedir para sobremesa, num restaurante vegetariano entretanto desaparecido? Tenho, nas memórias da minha língua, o sabor daquela tarte. E o adjectivo que me ocorre é: subtil. Oiçam: por um instante, parece que escapa: a tarte está quase a tornar-se-me doce na língua, mas não inteira nem absolutamente. Como se a doçura se escondesse, muito fina e muito etérea; bruscamente alcanço-a, mas não a capturo. Perpassa, fugidia.

O conto de Berbévora participa desse tipo de subtileza. De algum modo, a história que nos é narrada poderia ser interpretada a uma certa luz. Faria, talvez, sentido: todavia, é também viável e, porventura, mais sensato e realista, que a não interpretemos a essa luz. [A graça residiria, então, mais no "equívoco" do que no "sobrenatural"]. E mesmo nesse caso, cingindo-nos aos factos relatados, estaríamos em face de uma história muito intensa, vivida durante a invasão de Paris pelo exército alemão. É uma história pungente - imbuída do troar longínquo dos canhões, de famílias que fogem, em longas filas, desespero e abandono. Mas o coração-leitor pede algo mais: espera sempre por esse quase-nada pressentido, essa possibilidade [impossível] de se tocar um sentido intangível, sublime, da ordem do amor e da música.

O extraordinário é que essa chave está sempre latente. Em nenhum momento ela é explicitada: Berbévora resiste à tentação fácil de dizer, sequer, que a protagonista teve consciência do que poderia realmente significar a presença do estranho viajante. É uma possibilidade perante a qual é mais fácil sacudirmos a cabeça: «Não, não foi isso!»; as explicações plausíveis e rotineiras acabam por ter a última palavra.

Contudo, como na tarte de requeijão, em que o delicado sabor ia e vinha, quase se completando mas nunca se oferecendo inteiramente, também aqui há uma verdade em que quase tocamos. A subtileza na escrita é precisamente isto.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

NINA BERBÉVORA: A ACOMPANHADORA


Posso compreender perfeitamente a razão por que uma autora tão interessante e tão rica, só nos anos anos 80 se tornaria uma súbita revelação: tanto tempo de espera para uma mulher que nascera em 1901, viveu a revolução russa, foi exilada para França em 1925 e emigrou para os Estados Unidos em 1950. E a razão é uma aparente simplicidade, uma escrita em que, numa primeira aproximação, tudo se resume a umas frases que dão pouco nas vistas, narrando uma história que não fere de imediato, não rebenta por lado nenhum em foguetes. Imagino sem dificuldade editores ou críticos lendo com uma certa displicência um texto dela, pousando o copo de uísque enquanto viram uma página.

É um engano. Não conheço muitos autores que enganem deste modo. Que pareçam demasiado simples, excessivamente pobres, até ao momento em que penetremos numa certa palpitação interior, e compreendamos que há uma contenção deliberada, no limiar do resumo, do tópico rápido, que, no entanto, captura a essência da vida e dos sentimentos.

A «acompanhadora» é uma rapariga - a própria narradora -, muito jovem, que, numa Rússia sofrendo ainda as dificuldades e o espírito da revolução, acaba contratada para «acompanhar», ao piano, uma cantora lírica. O que me parece extraordinário é a complexidade e a densidade do seu sentimento em relação a Maria Nikoláevna: um misto de inveja, porque esta é a protagonista, no palco, e é bela, tem uma vida requintada e amantes; temperada por um elemento ideológico que vem justificar essa inveja e esse ressentimento em face dos privilégios da cantora («injustos», «burgueses»); e, simultaneamente, uma admiração quase ilimitada por ela, essa mulher que reúne todos os atractivos que a jovem acompanhadora nunca terá.

E, portanto, tudo se passa, interiormente, entre a compreensão e o desejo de vingança. A compreensão por uma história de amor interdita, a infidelidade de M. Nikoláevna, que faz a jovem perguntar-se, momentaneamente, se não deverá matar o marido daquela, para a libertar; desejo de vingança que a põe em face da certeza, por fim, de que é aquela mulher amada-odiada que tem de ser morta. O revólver seria sempre o mesmo, em todo o caso, descoberto com receio e fascínio numa gaveta.

É um romance breve, uma novela, muito profundo e muito belo. Terá esperado anos de mais para se tornar conhecido do mundo. E mais alguns, ainda, para que, pela mão invisível do acaso, eu tropeçasse nele, folheando-o, «Que será isto?», numa feira. Mas «tarde», em literatura, nunca significa «tarde de mais».

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O QUE TRANSMITE UM LIVRO? [UMA CITAÇÃO]

Esta história provém da literatura taoísta; Oakeshott refere-se-lhe, em nota de rodapé, num dos seus livros. É aí que, por sua vez, Andrew Sullivan a vai pescar. Longo caminho no tempo e no espaço percorreu a fala do fazedor de rodas para poder acertar-me. Cito, paradoxalmente, num blogue de amor aos livros, este discurso que os mais precipitados poderiam reduzir a uma crítica de todos os livros:

«Falando enquanto fazedor de rodas, olho para o assunto da seguinte maneira; sempre que estou a fazer uma roda, se bato devagar de mais então vai longe mas não tem firmeza; se bato demasiado depressa, então tem firmeza mas não vai profundamente. O ritmo certo, nem demasiado lento nem demasiado rápido, não pode chegar à mão a menos que venha do coração. É algo que não se pode exprimir com palavras; há nisto uma arte que nem ao meu filho consigo explicar. É por isso que me é impossível que o deixe continuar o meu trabalho, e cá estou com mais de setenta anos ainda a fazer rodas. Na minha opinião, o mesmo deve ter acontecido com os homens antigos. Tudo o que valia a pena transmitir morreu com eles; o resto puseram-no em livros.»
Andrew Sullivan, A Alma Conservadora

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

KYOICHI KATAMAYA E UM PARÁGRAFO QUE NÃO PODERIA DEIXAR DE CITAR

«De repente, tive uma terrível certeza. Por mais tempo que vivesse, nunca poderia esperar sentir uma felicidade maior que a que sentia naquele momento, a única coisa que podia fazer era tentar conservá-la para sempre. A felicidade que sentia aterrorizou-me. Se a quota-parte de felicidade que cabe a cada um está determinada de antemão, talvez naqueles instantes eu estivesse a esgotar a parte a que tinha direito para toda a minha vida. E, um dia, os mensageiros da lua arrebatariam a minha princesa e, então, só me restaria um tempo tão longo como a vida eterna.»

Kyoichi Katayama, Um Grito de Amor Desde o Centro do Mundo

terça-feira, 9 de agosto de 2011

LER NO ORIGINAL: UMA MERA OPINIÃO





Num comentário ao meu "post" sobre a redescoberta, que recentemente fiz, de Os Buddenbrook, o autor trata de «imensa presunção» o critério por si próprio estabelecido de não ler obras senão na sua língua original.

Não creio que seja presunção. Parece-me antes uma exigência rigorosa e salutar. Lendo, em inglês, The Lottery [que encomendei por não estar traduzido], apercebo-me, com óbvio deleite, da vantagem que há em descobrir Shirley Jackson no «seu» inglês: «David Turner, who did everything in small quick movements» ou «What could she be waiting for with such a ladylike manner?» ou «She had a plate with a cup of tea and a piece of chocolate cake; I had a plate with a cup of tea and a piece of marshmallow cake. We maneuvered up to one another catiously, and smiled» são alguns exemplos, que elenco ao acaso, folheando o livro sem especial atenção, não de períodos «intraduzíveis», nem, sequer, «dificilmente traduzíveis»: e, todavia, duvido que outra língua pudesse captar inteiramente o espírito deste inglês, ou melhor, o espírito do inglês de Shirley Jackson.

Posto isto, deparo-me com um problema. Leio em inglês, mas muito mal em alemão. Em francês, mas não em russo. Em italiano ou em castelhano, mas não em grego (antigo ou contemporâneo), árabe ou chinês. Isto significa, em bom rigor, que estariam excluídos das minhas possibilidades, e portanto, do meu projecto de leitura, os pré-socráticos, Platão ou Aristóteles, Virgílio, a Bíblia, Tolstoi, Dostoievski, Tchekhov, Púchkin, Bulgakhov, Kierkegaard, Goethe, Schoppenhauer, Nietzsche, Freud, Hegel ou, precisamente, Thomas Mann. Ou Mao, Lenine, Trotski, Kyoichi Katayama. [Lanço nomes como poeira, uma vez mais ao acaso da memória]. E, portanto, não posso não depender da tradução: não conviver, de algum modo, com obras traduzidas.

É possível que as traduções a que recorro provoquem danos? Até certo ponto: como não domino a língua original, não sou capaz de, pessoalmente, verificar a qualidade daquela. Mas posso certificar-me pelo menos de que a língua em que a vou ler é rigorosa e está correctamente utilizada; de que as frases têm sentido. A intuição tem, aí, um papel. «Pressinto» uma tradução certa. Posso, sobretudo, preferir traduções que as pessoas nas quais confio me afiancem ser bem feitas, posso aprender a distinguir entre diferentes tradutores.

Não me lamento. Aprendo alguma coisa acerca de tradução: que mundo é esse, que lutas travam os tradutores, quem são os parasitas da profissão, que outros estão acima de qualquer suspeita.
Corro riscos? Corro riscos. Mas como só tenho acesso a alguns dos livros que mais admiro por via de tradução, prefiro conhecê-los numa versão estropiada [se não houver outra ou eu a ignorar] do que não conhecê-los de todo.

sábado, 6 de agosto de 2011

SHIRLEY JACKSON: THE LOTTERY


Sempre fui um inveterado bebedor de contos. Tchekhov é de uma precisão extraordinária e os norte-americanos são muitíssimo bons. Em geral, as autoras norte-americanas são de uma subtileza e de uma perícia inigualáveis.

A minha amiga Cristina não gosta de contos. [Como não gosta de música brasileira nem de Woody Allen: estranhos direitos estes, que, no entanto, lhe assistem]. Argumenta que, num conto, quando o leitor começa a sentir-se próximo das personagens e mergulhado no ambiente da história, a história termina.

Posso compreendê-la. Mas, nos melhores contos, não falta nada. Entristecemos por que tenham acabado - mas não ficamos tristes, também, quando um extenso e magnífico romance, que nos acolheu durante semanas, um dia chega ao fim [ainda que tenha demorada mil e vinte páginas]? Um conto é como um poema: uma construção singular, com os ingredientes indispensáveis - e nem um para além desses - de modo a realizar-se no seu tempo certo. Uma página a mais seria a morte do artista. É tal brevidade que lhe confere o que lhe é necessário: a intensidade, a vertigem, o clímax.

Já perceberam que recebi, finalmente, depois de uma espera longa, The Lottery and Other Stories, de Shirley Jackson. Seguro com certa emoção o volume de papel agradável, uma capa sépia, com a fotografia muito simples de uma mulher sentada, agarrada à sua mala, numa pose de resignação e ansiedade que traduz o espírito dos contos de S. J.

«The Lottery» é o último, e foi por esse que principiei: 12 páginas, nem uma mais, onde se descreve uma aldeia aparentemente feliz, e a surpreendente (mesmo para quem a esperava, como eu) transição da visível bonomia para a bárbara realidade - a desocultação da normalidade, revelando o puro horror que a sustenta: horror domesticado, tornado uma parte "normal" da vida e, não obstante, absolutamente terrível. Não imaginam o escândalo que este conto provocou entre as pacíficas mentalidades burguesas, nos anos 40. Hoje, é um indiscutível clássico, um ícone que, segundo um comentador, deveio parte integrante do «inconsciente colectivo norte-americano».

Mas todos os outros contos são feitos com a mesma originalidade e o mesmo desaforo, como se, de facto, Shirley Jackson estivesse muito empenhada na sua própria voz, sem a menor cedência. É um comentário da Newsweek: «Na sua Arte, como na sua vida, Shirley Jackson foi uma absoluta original. Escutava a sua própria voz, aceitava os seus próprios conselhos, isolando-se de todas as correntes intelectuais e literárias... Ela foi unique». A. M. Homes, na introdução, encontra-lhe uma perturbadora familiaridade com Carver, outra minha descoberta recente. E sim, entendo essa ligação, a mesma banalidade realista sob que se oculta algum segredo pavoroso, a mesma visão das famílias americanas dos subúrbios do Sul, as mulheres tristes, as dependências em relação a alguém, em relação ao álcool, as frustrações; mas, naturalmente, em Jackson o horror atinge proporções dantescas, há um negrume diferente sob as pessoas e nas profundidades das vilas.

São 26 contos. Leram bem, 26!Li dois, li a introdução. Não vale a pena telefonarem-me nos próximos dias...

PS: a capa publicada neste post não é, como perceberam, a capa do meu livro. Ou melhor: não a da edição que recebi. Mas é uma deliciosa capa de The Lottery, de «época», a que não resisti...

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

UM QUESTIONÁRIO SOBRE LIVROS

1.Existe um livro que relerias várias vezes?
Mais do que um, mas, em todo o caso, muito poucos. O que me ocorre de imediato é Em Busca do Tempo Perdido. E como não teria tempo para reler a obra inteira várias vezes, refiro-me sobretudo ao primeiro volume, e ao último. Mas também Morte em Veneza ou The Catcher in the Rye. E passagens de O Inferno. [A minha parte preferida de A Divina Comédia].

2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?
Claro que há. Ulisses, de James Joyce. O número de vezes que já o reiniciei é praticamente incontável.

4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

Tobacco Road, penso [mas não juraria] que de Erskine Caldwell. Tanto que a minha mãe me falou dele, era eu garoto, mas nunca o consegui encontrar: tenho de me tornar amigo da Amazon, já percebi.

5. Que livro leste cuja cena final jamais conseguiste esquecer?
Sou um re-leitor contínuo do final de Os Maias. Tem de haver outros «inesquecíveis»: que raiva não conseguir lembrá-los...
6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?
Era um devorador de Os Sete. Mas a grande revelação foi Tom Sawyer - e, a seguir, Huckleberry Finn.

7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?

Não costumo ler livros chatos até ao fim. Cada vez menos o faço, aliás. Mas um caso foi Doutor Jivago. Porquê? Ora bem. Porque a revolução russa me interessava, porque o filme me entusiasmara. Porque, é claro, nem tudo no livro me parecia chato.
8. Indica alguns dos teus livros preferidos.
Naturalmente, todos os que referi na resposta à primeira pergunta. Mais: Secret History, Lolita, O Leopardo, A Capital, A Queda de um Anjo, Crime e Castigo.
9. Que livro estás a ler?
Os Buddenbrook. Na verdade, não sei se estou a lê-lo, se a relê-lo. Já o lera, mas não me lembrava... [Acrescento recente: chegou-me finalmente The Lottery, de Shirley Jackson. Durante uns dias, não vou ter olhos para mais nada].

10. Indica 10 amigos para responderem a este inquérito.
Bisnaga Janota, São, Cristina Nunes, Paula Varela, Paula Fonseca, Elvira Filha, Elvira Mãe, Maria João, Cristiano Ronaldo e tia Amelinha.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

MANN, ROTH, SANTOS


Estou muito longe [é um eufemismo] de admirar José Rodrigues dos Santos. E se alguma vez tentei ler um dos seus livros, e confesso que sim, rapidamente o benfazejo manto do esquecimento se encarregou de o lavar e levar da minha memória.
Curiosamente, no seu programa de entrevistas, a que chama pomposamente Conversas de Escritores (não fossemos nós, por acaso, esquecer-nos de que ele é «um escritor», coisa que, de facto, não é), entrevistava, há dias, Philip Roth.

Fiquei deveras surpreendido, porque Roth goza da fama de detestar pessoas em geral, e entrevistadores em particular - ter-se-á enganado a ponto de acreditar que Santos era digno daquela conversa? Duvido.
Em todo o caso, lembro-me de que, entre outras coisas, Philip Roth disse que a leitura, tal como nós a conhecemos actualmente (ou a conhecíamos, até há uns anos) ia mudar completamente. Dentro de algumas décadas, não haverá senão leitores de uma nova literatura, sem papel, sem ironia, sem descrição, sem exigência de tempo.

Eu conheço a conversa: os reaccionários (os «velhos do Restelo») foram apregoando sucessivamente o fim da rádio, substituída pela televisão, e o fim do cinema, substituído pelos vídeos, e o fim do livro, transformado em e-book.
Eu não sou reaccionário. Ou sou. [Alguém me chamou, há tempos, «Velho do Restelo», a propósito da minha persistente recusa do Acordo Ortográfico]. Mas entendo Roth. Que, aliás, não se queixava. Entendo-o na medida em que o que ele afirma é mais subtil do que a mera questão do suporte do livro.

E aqui surge Mann, Thomas, Mann, um escritor a sério, extraordinariamente superior a Roth (e nem vale a pena a comparação com Santos).
Escrevia, num post anterior, que já ninguém lê um livro como Os Buddenbrook. É, pois, disso que se trata: já ninguém consegue ler um certo tipo de descrição, já ninguém («ninguém» é exagero, claro: ainda restamos três; quatro, com boa vontade) tem paciência para usufruir a linguagem, a «petite musique» das palavras, o prazer poético do significante, por si mesmo.

É uma mudança. It's quite a change, really! [Santos terá compreendido a ideia?]