segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MATTHIEU BONHOMME: O HOMEM QUE MATOU LUCKY LUKE


Fui, desde muito, muito cedo, um ávido amante de BD. Ainda nem sabia ler, quando atacava os Cavaleiro Andante do meu irmão.  Mais tarde vieram os álbuns do Tintim e os de Astérix e, paralelamente, os comic norte-americanos, em tradução para português do Brasil: Super-homem, Incrível Hulk, Homem-Aranha (mas também Bolinha e Luluzinha ou o Brasileiro Saci Pererê). Lembro-me de que, pelo meio, se deu a descoberta deslumbrada de Blake e Mortimer. E Batman, por fim, de que eu, José Pacheco, me tornei a identidade secreta, escondendo a todos os familiares que sob o Homem-Morcego se escondia aquele rapaz de óculos e cabelo demasiado comprido.

Do ponto de vista da BD de expressão  francesa, o meu enorme salto, a minha aprendizagem maior, realizou-se com o semanário Tintim, que o meu irmão comprava e me enviava de Lisboa (eu vivia em Moçambique), e me permitiu aterrar em um novo continente: Tintim, Lucky Luke, Astérix, mas inúmeros outros, Corto Maltese, Bruno Brazil, Blueberry, Ringo, Taka Takata, Achille Talon, Mr. Magellan, Luc Orient, Cubitus, Clorofila, Valérian, Prudence Petitpas... oh, caramba. Não exagero se vos disser que lhes devo uma parte intensa de uma adolescência muito feliz. Abençoados Dinis Machado e Vasco Granja, que a dirigiram por muitos anos.

Lucky Luke fez, por um destes meses, 70 anos. Criado pelo genial Morris, com argumento do inesgotável Goscinny (durante uma vintena de anos, até à morte deste), L.L., "o cow-boy que dispara mais rapidamente do que a própria sombra" e enfrentou ou conheceu, ou se cruzou, nas suas aventuras, com figuras reais da História do faroeste (os Dalton, Billy the Kid, Calamity Jane, Buffalo Bill) preencheu de um júbilo indescritível as minhas tardes moçambicanas; no dia em que recebia a revista, desaparecia do mundo. Esquecia amigos, praia, cinema.

Esta homenagem a Lucky Luke, da autoria de um jovem fã (Matthieu Bonhomme é um garoto nascido em 1970) é inclassificável. Ignoremos, pois, os adjectivos. Um Lucky Luke, digamos, semi-realista, ou seja, mais «real» do que no desenho caricatural de Morris, mas menos do que num desenho tipo fotografia, reilumina as pradarias e, neste caso, uma pequena vila de mineiros, Froggy Town, numa odisseia com o rigor, a exigência e a complexidade narrativa de uma graphic novel. Quem foi educado nos westerns (o que só em certa medida será o meu caso), reencontra nestas pranchas um olhar cinematográfico, feito de planos que relembram as abordagens de John Ford (até o título pisca o olho a O Homem que Matou Liberty Valance), Sergio Leone ou, como sugere João Miguel Lameiras num excelente posfácio, Imperdoável, de Clint Eastwood.

Lucky Luke é, nesta revisitação, um herói romântico,  do calibre de personagens tão distintas, mas, simultaneamente, tão próximas umas das outras, como Corto Maltese ou Philip Marlowe. Solitário, irónico, justo e generoso.

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