sexta-feira, 3 de novembro de 2017

ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU: A VIDA DO GRANDE D. QUIXOTE DE LA MANCHA



António José da Silva, o Judeu, já praticamente não é achável. Nenhuma recente reedição o honra; mas nem encomendando, ou buscando em caves de bibliotecas, conseguimos desencantar-lhe antigas edições. Assassinamo-lo pela segunda vez: deixamos que o esquecimento o devore, como o devoraram, em seu tempo, as chamas da Santa Inquisição, neste país que treme, todo ele, de uma puríssima indignação, quando se insinua que a tolerância portuguesa, o seu proverbial respeito por todas as crenças e por todas as raças, é, bem revista a História, uma história muito mal contada.

Em minha juventude estudantil, lembro-me que se mencionava o Autor e líamos, talvez, alguns trechos da sua obra, na selecta literária. António José da Silva, o Judeu. Mas, entretanto, desapareceu.
Desapareceu qualquer referência a este homem que em novo foi denunciado juntamente com a família, e obrigado a retornar do Brasil, onde viviam; cujo pai, cuja mãe, cujos irmãos, foram presos e torturados; que sofreu, ele próprio, a tortura, com 20 anos ou pouco mais; mas que, quando não estava a ser perseguido ou interrogado, ou torturado, escrevia e encenava teatro, com um talento e uma cultura que nunca se percebeu de onde lhe advinham, em que fontes beberam, com que mestres e com que obras conviveram. (Isto porque se desconhece mais do que se conhece acerca da sua formação, sabendo-se, contudo, que em Direito terá sido, e que em Coimbra). E que, finalmente, foi condenado à morte pelo fogo.
Encontro um livro que compila 3 peças, um exemplar nunca integralmente lido pelo antigo proprietário, porque ainda com folhas por abrir e, confesso, sinto-me comovido. Até abrir as folhas, com uma paciente e desusada faca de papel, me comoveu. António José da Silva, esquecido e oculto, não inacessível, mas quase.

 A Vida do Grande Dom Quixote e do Gordo Sancho Pança é de um humor que faz jus ao modelo, o romance de Cervantes. Tata-se de uma comicidade popular, com equívocos e enganos simples, ao jeito da Commedia del'Arte, articulados com momentos de um humor sofisticado, baseado na linguagem, ou uma ironia funda. O leitor que, como é o meu caso, admira a pessoa do Autor, e lhe conhece a biografia, procuraria na peça, porventura, uma sátira da sociedade que o rebaixava na sua crença, mas tanto não verá. A não ser em breves apontamentos: a hermenêutica do símbolo da justiça (mulher vendada, com espada e balança), feita por Sancho, por exemplo, é genialmente corrosiva. Mas, para além dessas flechadas, nesta obra Dom Quixote não é, de modo algum, o idealista ou o incompreendido, como aliás o não é em Cervantes, mas o doido varrido e risível. Sancho não seria a sensatez oposta, como lhe competiria segundo a lógica simbólica em que a posteridade quis ler a dupla Quixote-Sancho, mas o homem crédulo e pronto a aceitar o que não vê, e a seguir os sonhos da loucura de seu Amo. (São mesmo, em suma, os sonhos da loucura, e nunca o além da filosofia ou da poesia). Sancho Pança é, pois, o contrário de São Tomé. Ou melhor: em rigor, ele não crê em tudo - e resmunga bastante; mas acho particularmente tocante o entusiasmo ingénuo com que descreve, a sua mulher e a sua filha, outras duas tontas, a ilha de que viria a ser governador, fazendo fé na promessa de Dom Quixote. Ou a bela e distinta vida de fidalgos, que, em torno dessa promessa, começam a fantasiar com toda a convicção.

Dom Quixote de la Mancha é um homem que se presta a embustes, ora com fins terapêuticos e psiquiátricos, digamos assim, isto é, para lhe devolver a sanidade, através de uma espécie de "redução ao absurdo" das suas fantasias, ora por malícia. Mas introduz-se, na peça de António José da Silva, um elemento de ambiguidade que me apraz pensar que é deliberado. Em certas cenas, dir-se-ia que as suas fantasias se realizam. Que ele e Sancho descem efectivamente aos infernos, ou que sobem ao Parnaso para auxiliar Apolo contra uma revolta de poetastros. Já para não falar de que Sancho - mas talvez essa experiência seja uma partida de um casal de fidalgos - se torna, por um breve e doloroso período, governador de uma ilha.

De tudo sublinhe-se, mais até do que a história - com momentos excelentes de inventividade e humor, e algumas debilidades sem importância - a beleza e o poder da linguagem. O fulgor de um uso poético e retórico das palavras. O português no melhor das suas possibilidades.