quinta-feira, 13 de agosto de 2020
PAUL NIZAN: ADÉM, ARÁBIA
Lemos sempre mais do que o significado simples e directo de uma frase. Uma palavra, como um átomo, vive, na leitura, de vários cambiantes que ela desperta inconscientemente em cada um de nós; uma particular associação de palavras trabalha possibilidades escondidas da nossa experiência e da nossa memória; uma frase, então, é sempre e necessariamente uma frase-para-mim.
Se, ao invés de nos determos numa frase, nos referirmos a um parágrafo, a uma página, a um livro, estamos necessariamente em face de evocações que estabelecem uma cumplicidade intransmissível entre o texto e o leitor.
Para mim, Adém, Arábia é um exemplo extremo do que procuro exprimir. Não consigo ler a obra sem saber que é de Paul Nizan e quem é Paul Nizan, o que remete secretamente para o que Jean-Paul Sartre escreveu sobre o romance e sobre o autor, e eu li há muitos anos. E portanto, como lembrava Proust a propósito do episódio da madalena, ao ler este livro deixo que a memória liberte uma infinidade de génios, reconstituo um mundo perdido, estou a reler uma época, uma cultura, uma luta, questões e debates que me dizem muito, referências que me formaram o gosto e as ideias, a cidade de Paris (que conheci primeiro através dos livros, só muito mais tarde, digamos assim, em pessoa), os cafés, a École Normale e os seus professores, a atmosfera de uma Guerra próxima impregnando antecipadamente a República. Leio Adém, Arábia por esse filtro, de que nunca inteiramente me desfaço ao longo das páginas, e que o extraordinário incipit deste romance misteriosa e inexplicavelmente contém e sintetiza: "Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida."
Chamar "romance" a esta sistemática invectiva contra a burguesia e a vida social e académica dos franceses do tempo de uma Guerra inevitável (o livro foi publicado em 1931, Hitler ascenderia ao Poder pouco depois, a Grande Guerra iniciar-se-ia antes do fim da década), principalmente a vida parisiense, seria tornar a palavra excessivamente flexível: que são aqueles capítulos sem nenhuma história, senão panfletos ferozes contra uma aprendizagem hipócrita, as "artes de distracção", o exemplo omnipresente dos "predecessores ilustres", essa espécie de namoro com o Espírito em que a Filosofia Francesa se deleitava, o fascínio pela Ásia ("herói da sabedoria") e pela América ("herói do poder")?
Nizan escreve muito bem. As suas enumerações, mesmo do mais triste ou do mais vil, constituem pedaços de uma prosa elegante; eis o testemunho do que vê, procurando escapar a Paris: "Passado Porto Saíde, com as suas mulheres à venda, os seus rapazes para comprar, os seus judeus sírios, as suas águas amarelas, os paquetes cor de abelha da Peninsular e da British India, efervescentes de coolies, de carvão, o barco perde de vista o domo de vidro da Compagnie du Canal, arrasta-se até Suez entre as areias, vê o Sinai, cai no Mar Vermelho." O fulgor da eloquência e da beleza poética ao serviço, como sublinhou Sartre, do papel de Cassandra, ou de um profeta que denuncia o vazio e a alienação nos modos de uma cidade - ou, como na passagem que venho de citar, na tentativa de fuga à cidade: "Eu tinha medo, a minha partida era uma filha do medo" - e adverte contra o apocalipse. (Paris estaria ainda longe de imaginar que conheceria a Ocupação e, após libertar-se, a dramática separação entre os seus heróis e os seus traidores).
A fuga dá-se depois de muitas páginas disparadas contra uma Paris alienada. Só a partir do capítulo VI o protagonista e narrador abandona a cidade. Mas, ao invés de algo que se pareça com uma narrativa, é a descrição de Adém, essa "mistura do Oriente com o Império Britânico" que nos é servida, pontuada por citações de autores dos séculos XVII e XVIII. A linguagem de Paul Nizan, reunindo fragmentos de cores, odores, comportamentos, é de uma tal vivacidade, que Adém nasce diante dos nossos olhos. Misto de manifesto, diário de viagem, ensaio e romance, Adém, Arábia é, por isso mesmo, encantadoramente imprevisível, rompendo todas as regras e lógicas de género.
Eu diria que, tal como La Nausée, do Sartre de quem Nizan foi amigo, Adém, Arábia é um romance que elege como principal inimigo a má-fé: uma má-fé radical e transversal, a que nenhuma viagem escapa, porque seria, afinal, tanto a dos professores e dos filósofos burgueses de Paris, como, em Adém, tão longe dali, a do guarda do museu, um ex-sargento britânico que, sentado diante de uma porta, "via escorrer um inesgotável fiozinho de tédio ", ou das jovens inglesas "com olhos de vidro tão bem imitados que se pode ser levado a crer que essas pupilas vêem"; ou, sobretudo, do Senhor C..., concentrando em si, como um símbolo, todos os indivíduos que se acreditam sujeitos de acções, que se crêem orgulhosamente livres, quando nada na sua vida foi autenticamente uma acção e o que quer que fizessem para subir a pulso lhes permitiu apenas criar, de si mesmos, uma imagem, uma ideia, um mero artifício que tomavam todavia por uma personalidade e por uma essência. "Eram também as horas em que apesar de tudo cediam às ilusões. Tentavam acreditar que agiam. Falavam, como o Sr. C..., da sua acção. É uma palavra que faz sonhar todos os homens, é a coisa que eles não têm. Tentavam acreditar que agiam. Acabavam por acreditar. Eram então poéticos: ser poético é ter necessidade de ilusões. " Do ponto de vista da dissecação da má-fé, Nizan não fica atrás de Sartre: será, porventura, mais profundo.
O desvio por Adém não fora em vão, porque revelaria, ao protagonista, à distância, a falsidade de uma sociedade em que também ele se poderia ter perdido. Regressando a França, desalienado, consciente de que nenhuma viagem o salvaria, uma vez que não há fuga a um mundo viciado, e em toda a parte, em todos as cidades, os homens são os mesmos, submetidos a papéis idênticos, que os mascaram e os iludem, regressa identificando o objecto do seu ódio. Os «possuidores» (neste caso, os possuidores da França), «com os seus colarinhos postiços limpos, durante muito tempo engomados, hoje em dia de uma moleza que lhes dá uma falsa elegância de americanos, as suas roupas pretas [...], os seus chapéus de coco e as bengalas do domingo», sob os quais cresce, miserável, silenciosa, uma multidão de proletários, de pobres. Os não-possidentes. Os explorados.
Uma palavra para exprimir um perplexo elogio para a edição portuguesa de uma obra que não suscitará compras astronómicas, principalmente na situação de pandemia em que ainda vivemos, e para uma tradução muito boa, sem as baias idiotas do AO95, à qual parece ter faltado, contudo, uma revisão que evitasse o excesso de galicismos e alguns erros mais.
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