quinta-feira, 14 de novembro de 2013

FRANÇOIS MAURIAC: NÓ DE VÍBORAS



Comecei a ler este livro sem outra razão que não o ele me ter inesperadamente chamado de uma estante de certa biblioteca, lembrando-me que "François Mauriac" estava longe de me ser um nome desconhecido, mas a obra do autor me era realmente desconhecida.

Não há outra maneira de o dizer: as primeiras linhas criam-nos a tensão e a expectativa que não mais nos largarão. É o texto de um narrador velho e envelhecido. Tem um destinatário: a mulher. Luís espera que ela venha a descobri-lo e a lê-lo ao deparar com o caderno, assim que, após a sua pressentida morte, abra o cofre, numa ansiosa busca dos bens que ela e os filhos herdarão.

Ajuste de contas, confissão, memória, reavaliação do passado, da sua relação, do seu mútuo afastamento, do seu amor transformado em desamor, em ódio até; vingadora revelação das tortuosas maquinações que urdiu contra a própria família, que vê e descreve como um bando de hienas à espera dos despojos, erguendo ciladas, escutando-lhe os últimos vestígios da respiração e dos batimentos cardíacos, vigiando-o, rondando o leito, farejando a morte, este texto é uma extraordinária construção da mágoa, do ciúme, do medo; e é um tratado, subtilíssimo, do poder do ressentimento para deturpar os factos e as intenções dos outros: é, portanto, numa acepção muito particular, um verdadeiro "ensaio sobre a cegueira". 

O domínio da técnica é assombroso. As descobertas que o leitor vai fazendo  são rigorosamente controladas pelo Autor. Mesmo que os indícios tenham sido já apresentados, só no momento adequado se faz a revelação que permite a peripetia.

Revelação, escrevi. O mais interessante é que, tratando-se de uma "revelação" para o leitor, o é também para o narrador, que nesse confronto com a sua história, expondo o "nó de víboras" que é o próprio coração, avaro e ressentido, expondo os movimentos ardilosos desse outro "nó de víboras" que é a sua família, compreende o que não entendera ou ignorara então. E até esse momento.

Não que a luz que se faz sobre as pessoas as mude radicalmente. Também nisto reside a grandeza e a profundidade psicológica da obra. Os medíocres continuam sendo medíocres, os estúpidos não deixam subitamente de o ser, a um novo olhar. Mas a revelação é, de cada vez, a de que os estúpidos não são unicamente estúpidos, mas seres de múltiplas facetas e camadas, com os quais no entanto podemos ter vivido, ou gastado uma vida inteira, presos a um único ângulo, que deturpa, ou reduz, que amargura e contra o qual se lutou vãmente.

Mais do que um "ensaio sobre a cegueira", o Nó de Víboras é um ensaio sobre a cegueira como reaprendizagem da visão.