segunda-feira, 10 de agosto de 2020

MATILDE CAMPILHO: FLECHA



 Como é compreensível, e a sociologia e a psicologia explicam, o gosto independente e sem preconceito relativamente à manifestação do novo é, numa sociedade, quase impossível. Tenho insistido nisto. Se a obra que contém uma experiência nova vem anunciada por prémios e fanfarras, se se apresenta lida, aprovada, elogiada pelas nossas referências habituais (pares do novel autor, críticos e especialistas reputados na Arte em causa) tendemos a assumir que devemos gostar; se, pelo contrário, aparece pregando no deserto, sem reacções conhecidas, sem entrevistas nem apontamentos nos jornais e nas revistas, reagimos depreciando. Ora se assim é, torna-se muito difícil dizer com justiça se o rei vai nu, e nestes rumos previsíveis se vão fabricando e consentindo os juízos de valor.

Matilde Campilho é uma autora que, porventura, já por cá escreve e publica há algum tempo, mas ganhou uma súbita notoriedade com o seu Flecha, editado pela excelente Tinta da China. Não se fala de outra coisa. Com o deliberado desenraizamento que me seja possível, sabendo, já, que o livro foi muito bem recebido, mas mantendo-me ainda pouco ou nada influenciado por visões externas, vou abalançar-me a uma leitura "independente".

E se de gosto se trata, hei-de principiar por lamentar a adesão da autora ao último AO, que, sendo uma questão que diz respeito à visão que cada um tenha da História e da importância da etimologia como marca da identidade de uma língua, e sendo ainda (ou por isso) uma questão filosófica e política, não deixa de ser também estética. Custa-me sempre ler, como aqui leio, "ele não procura mais nada a não ser o inseto" ou "dá graças por ter saído derrotado da batalha noturna." (Numa obra em português do Brasil, não me custa, porque são características identitárias da escrita  brasileira, formando um jeito próprio no uso da língua, que reconheço, espero e me apraz).  É muito, muito pessoal: não se deixem embaraçar pelo meu gosto, se isso vos for menor. Em poesia (ou prosa poética), onde a beleza da sonoridade das palavras se completa na beleza da grafia delas, a devastação causada pelo Acordo Ortográfico deprime-me.

Já a brevidade de certos textos de Flecha, em contrapartida, é outro assunto: exige uma forma diferente de os lermos, mais concentrada, em busca da perfeição que se dá quase imediatamente numa imagem. Menos é mais: se efectivamente o poema (chamemos-lhe assim) breve, como um haikku, resulta de um apuramento; da captação do essencial despojado de quaisquer ornamentos; da conquista de uma coincidência entre as palavras absolutamente certas para uma ideia forte e evidente, então não pode deixar de ser a forma justa. Claro que a previsível contestação, por parte de certos leitores, da brevidade como tal, advém de uma ideologia utilitária, à qual provocaria sempre repugnância pagar por um livro em que encontramos várias páginas com uma única frase. Cito um exemplo: "Nu, de braços abertos, António ajoelha-se na frente de um embondeiro." Ponto. Já está. É a página 19.

A assunção da brevidade é,  quanto a mim, um dos aspectos singulares no que o livro de MC tem de novo. Não são micro-contos - alguns poderiam sê-lo, na verdade - , nem, propriamente, contos (o conto obedece a uma lógica completamente diferente), mas histórias que possam ser fixadas em imagens. Quadros-narrativos? Nas mais breves, não conhecemos o antecedente nem o que se seguirá. Mas a imagem fica a vibrar. Se se aposta na simplicidade, procura-se por outro lado um elemento de estranheza que ilumina o dia-a-dia. É estranho que alguém se ajoelhe diante de um embondeiro, sobretudo se nos não dizem o que a isso o levou, mas, repentinamente, o gesto sobressalta-nos pela sua evidência. Como não ajoelhar-se em frente de um embondeiro?

A simplicidade passa, aqui, também pela recuperação de certos aspectos do quotidiano, em que habitualmente não reparamos, mas que a escrita de Matilde Campilho resgata maravilhosamente: "[...] Rosie abre o frigorífico e retira lá de dentro um frasco. Roda-lhe a tampa. Aquele pop do descerramento anula de imediato os sons ruins e metálicos do dia inteiro."  Ou: o rapaz que caminha descalço e espeta, no calcanhar, uma lasca de madeira, "senta-se no chão, coloca o pé sobre o joelho, e tenta espremer com dois dedos a farpa." E, prosseguindo a mesma história, este outro exemplo de uma espécie de evidência familiar quotidiana: "Encosta as unhas dos indicadores esquerdo e direito uma na outra, e aperta."

Procedimentos, gestos, sons, com que convivemos sem deles quase nos apercebermos, constituem, em Flecha, uma esfera de pequenas banalidades, que estas histórias, ou estes quadros, captam, misturando-os, porém, com nomes, lugares e momentos de tempos passados, que nos são estrangeiros e distantes. E o efeito é, sem dúvida, muito surpreendente.



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