terça-feira, 22 de outubro de 2019

DAVID MACHADO: ÍNDICE MÉDIO DE FELICIDADE





Sou um neófito no que diz respeito à leitura de David Machado. Livros anteriores do Autor foram bastante incensados pela crítica e por seus pares, mas mantive-me estranho à sedução, folheando e hesitando, aqui e ali, numa ou noutra livrarias, e acabando por lhes virar cobardemente as costas.

Emprestaram-me, recentemente, o Índice Médio de Felicidade. Havia uma razão precisa: usar o romance como alvo, ou pretexto, ou contexto, de uma actividade, com alunos, promovida pela Biblioteca da escola em que lecciono. Comecei a ler. E em cada momento, tudo foram movimentos de surpresa e prazer, de interesse e júbilo. Uma escrita muito bela e muito segura, literariamente bem feliz, criando figuras de estilo que nos tocam, sem o exagero rococó de certos escritores que conseguem tornar difícil a sua leitura à força de tanto quererem escapar à mera simplicidade; depois, uma articulação cuidada e firme, como andaimes que percorremos à vontade: reparo como David Machado evita as soluções simples, as coincidências, e como (um exemplo) a busca de uma personagem por outra personagem é sistematicamente frustrada, para ocorrer no momento em que já a não antecipamos; finalmente, como nunca recorre a episódios para encher ou ligar (o que sucede, mesmo entre os Autores consagrados, com maior frequência do que seria aconselhável) e cuida, pelo contrário, de que todos os momentos descritos e narrados se inscrevam na linha temporal com uma justeza e um sentido impecáveis.

Gosto muito, ainda, do seu trabalho de criar personagens: peculiares, situadas em momentos complicados da sua vida, emocionalmente pressionadas, procurando todas a felicidade, mas interrogando-se acerca da sua natureza, como quem precisa de resolver um problema de cálculo. Podemos medi-la? Tratá-la como um índice médio de países comparáveis entre si?

Sendo que mesmo a ambiguidade da forma como o romance se nos oferece - sem que o leitor compreenda, pelo menos durante muito tempo (porque mais tarde, sim, o segredo é revelado) em que medida existe um diálogo efectivo, entre quem pergunta ou comenta, e o narrador, que nos (lhe) conta a história; ou se o interlocutor faz parte da imaginação desse narrador, o qual responde às questões que ele lhe faria - é um expediente originalíssimo e muito interessante. Em última análise, esse Almodôver a quem o narrador se dirige, poderá ser uma espécie de heterónimo do leitor. E é-o, ainda que, claro, a sua fonte tenha a sua própria natureza externa.

Entre vários aspectos que me tocaram neste romance, encontro o dilema entre a liberdade e a felicidade. Ao longo da narrativa, somos confrontados com a evidência de que não podemos ser felizes, porque a lógica do emaranhado de situações da vida é a de exigir que escolhamos, sendo que escolher implica, sempre, adiar algo, ou renunciar a alguma coisa. O existencialismo descobrira-o já, é verdade. Mas DM relembra-no-lo, numa história muito portuguesa, recheada de personagens maravilhosa e ridiculamente improváveis, mas possíveis, e de situações-limite.

sábado, 25 de maio de 2019

KAREL CAPEK: A GUERRA DAS SALAMANDRAS



No Facebook, Ana Cristina Pereira Leonardo publicou uma imagem da capa de A Guerra das Salamandras, na edição portuguesa da Teorema, perguntando-se como justificar o facto de nunca, até então, haver descoberto e lido esse livro. Mário de Carvalho respondia-lhe que era, realmente, imperdoável. No seu próprio mural fez, mais tarde, uma alusão às palavras da Ana Cristina, ao livro e ao Autor em causa, acrescentando qualquer coisa como (e cito a partir de uma frágil memória) ser por aí que passa a literatura.

Esta irónica e sagaz interacção facebookiana pôs-me na pista da tradução que, shame on me!, também não conhecia.
Em nota mais que marginal, parece-me interessante começar por tocar em certa afinidade humorística entre este romance e O Valente Soldado Shweik, de Jaroslav Hasek, como se a partir desta comparação pudéssemos intuir um típico sentido de humor Checo. De resto, esgotada essa afinidade, as diferenças entre as duas obras são mais evidentes do que as semelhanças: enquanto a história do  "bravo" militar nos oferece o ridículo de um império e de uma época, A Guerra das Salamandras é também uma hilariante e feroz sátira, mas sob a forma de uma história de ficção científica.

Compreendemos perfeitamente a sedução de Ana Cristina Pereira Leonardo: Karel Capek constrói, nos anos 30, um romance que é de uma inventividade fulgurante, cruzando e misturando diferentes tipos de letra (graficamente falando) e diferentes tipos de discurso (do narrativo ao jornalístico ou ao ensaístico e ao «paper» científico). É muito, muito, muito bom. Não impede que, para ser absolutamente honesto, considere essa dispersão no estilo e nos ângulos sob que trata o tema, a causa de uma qualidade desigual da obra. Ou seja: em última análise, todos os fios da malha se compreendem, todos são de uma espantosa originalidade, todos contribuem para a perfeição da peça de malha no seu todo. Mas se alguns dos fios nos agarram e nos mantêm cativos, outros, como dizer? são chatos, e longos, e lentos.

Esta história sobre o achamento, pelos humanos, de salamandras inteligentes, com as quais estabelecem uma aliança inicial, uma troca de serviços, que mudaria para uma espécie de escravatura dos répteis, que vinham entretanto proliferando, pode ser lida como a tragédia do encontro dos povos ocidentais com os seus "outros" (em África, na Ásia, nas Américas): está lá tudo. As boas intenções, o impulso da dominação e o uso de boas intenções como capa para o impulso da dominação do outro até à sua extinção.

Mas porque é triste esta (ou outra) descodificação de uma sátira, um pouco como se estivéssemos a explicar uma anedota, leia-se o romance por todas as razões e nenhuma em particular. A narrativa é poderosa. A distopia que aqui se concebe (tinha de usar o termo, não tinha?) arrepia. Estes mundos possíveis nunca estão tão longe que nos não perturbem.

quinta-feira, 28 de março de 2019

RUI LAGE: O INVISÍVEL



Principio já por dizer, evitando qualquer suspense, que O Invisível, de Rui Lage, acaba, ao fim de um certo tempo, por nos conquistar: ao fim de um certo tempo, repito, e contra nós próprios, acrescento. 
Três aspectos do seu romance têm a responsabilidade de um inicial torcer de nariz, uma resistência inevitável.
Um deles é puramente estilístico: alguma coisa na escrita de Rui Lage parece antiquada e forçada. Um excesso de requinte torna a leitura fastidiosa - por exemplo, a inexistência de um artigo, em frases como «exerciam intenso fascínio», «entrelaçados em teia impenetrável» ou «não era porque temesse reprimenda paterna»; isto e certas outras frases feitas, também desusadas (concretizemos: "O caudal cristalino não deixava entrever fundura que merecesse por ora inquietações"), indispõem o leitor; diga-se, entretanto, que no meio dessa rigidez de estilo, vão logo disparando e pedindo atenção algumas imagens e metáforas que são achados.
Outro é o início, propriamente dito: aquele abrir da narrativa com a evocação de um Pessoa adolescente, em Durban, perdido por florestas onde uma ama negra o iniciava na feitiçaria, parece-me desajustado e contraproducente.
A terceira reside na história, que, durante muitas páginas diríamos que se vai confrangedoramente definindo como uma aventura simplista, sem densidade, que usa Pessoa porque sim (um Pessoa detective do Oculto, fraudulento e manipulador, ainda que com remoques de consciência que o fazem enojar-se dos seus embustes).
Até à descrição da chegada dos dois viajantes à aldeia, todos os capítulos vêm confirmar esta análise.
Curiosamente, a partir daí, o narrador muda de casaco, ou de pele, ou de olhos. A apresentação dos encontros com as pessoas da terra, bêbedos e beatas, que nunca são apenas a rudeza brutal que nos dão a ver, sempre sob efeito de um medo ancestral do novo e do diferente, começa a ganhar-nos. Interessamo-nos. Mudámos de livro? O receio e a crueldade relativamente a Palmira, que a aldeia escorraça e trata como uma bruxa, traz uma profundidade que já não esperávamos. A entrada do pároco, com as suas contradições psicológicas e religiosas, que nem por isso o tornam um homem e um sacerdote menos interessante, tangem outras cordas. A sua generosidade, a sua compreensão das gentes e a sua cobardia, expõem-nos uma personagem cuja empatia e fraquezas aproximam - se não da nossa empatia, certamente das nossas fraquezas.

Certo que o desenvolvimento desagua em complicadas e pouco convincentes águas espíritas, com breve despertar de mortos e contacto com não sei que entidades de outras dimensões.

Se considero que o prémio atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores é merecido? Vou confessar tudo. Entre os três candidatos, o meu livro preferido era e é Os Fios, de Sandra Catarino, um romance absoluto. Fosse eu arrogante, e lamentaria que o Júri se não tivesse apercebido dessa secreta jóia que, na qualidade, não tem rival. Não o sendo, admitirei que o meu gosto possa não constituir lei. E, bem vista a coisa, O Invisível, de Rui Lage, acaba não fazendo fraca figura: é um bom romance.


domingo, 17 de fevereiro de 2019

MARIA JUDITE DE CARVALHO: OBRAS COMPLETAS



Num prefácio difícil, Baptista-Bastos considera, elogiando embora as narrativas de Maria Judite de Carvalho, que elas não deixam de estar datadas. A caracterização levar-nos-ia a uma discussão sobre o que entendemos pela palavra. Se «datado» significa, neste caso, que muitos destes contos se referem a um outro Portugal, que os mais jovens não reconhecerão decerto (onde um «fato de cheviote» teria uma enorme importância para certo empregado de escritório, cuja promoção fora sendo sucessivamente ignorada, ou onde uma viúva viverá durante muitos anos presa à memória do marido), se datado significa isso, podemos compreender a classificação; mas se, como eu penso, um texto «datado» é aquele em que o tempo nos desligou, não apenas de algumas referências - como certas situações, ou o emprego, nos diálogos, de palavras ou fórmulas desusadas -, mas do núcleo, tornado entretanto extemporâneo e estrangeiro, quase ininteligível, então a obra de Maria Judite de Carvalho, que reencontramos nos belos volumes que vêm agora sendo reeditados, está bem longe disso.

Em primeiro lugar, pela escrita propriamente dita. Pela sensibilidade e delicadeza de uma expressão contida, poética, encantadora; em segundo lugar, pelas pessoas captadas sob o foco existencialista, que no-las oferece vivas, concretas, familiares, tristes, absurdas; por fim, pela própria qualidade dos entrechos: de anteriores e porventura longínquas leituras, não me recordava que MJC fosse capaz de construir máquinas narrativas tão complexas e surpreendentes - julgava lembrar-me, até, de uma certa inocência típica de «senhora dada a escrever», mais do que de «Escritora», na verdadeira acepção da palavra. E nada é mais errado nem mais injusto.

Alguns dos seus contos longos, Os Armários Vazios, por exemplo, são, a vários níveis, de uma concepção e de um desenvolvimento magistrais. Os pormenores não são gratuitos, conferindo aos "twists" mais rocambolescos uma credibilidade que tudo torna verosímil: as personagens são tão vivas, tão bem trabalhadas, tão próximas, que nos inteiramos do drama dos seus desencontros (sendo que, em MJC, até os encontros são habitados por um desencontro em gestação) como se ouvíssemos a história de conhecidos.

Toda a obra ficcional desta "discreta flor das nossas letras", como lhe chamou Agustina Bessa-Luís, dada agora a que a descubramos, numa justa e esmerada reedição em quatro volumes.

 

sábado, 12 de janeiro de 2019

HERGÉ: TINTIM & MILÚ 90 ANOS VOLVIDOS


Agora que Tintim faz a respeitável idade de 90 anos, assalta-me uma saudade funda e apetece-me regressar aos velhos álbuns. Sou um leitor com dificuldade em "revisitar". Francamente, os autores a que torno com prazer não poderiam ser mais diferentes: um é Marcel Proust, de quem releio - e como se estivesse a ler pela 1a vez, achando sempre inúmeras novidades -, o último volume de "Em Busca do Tempo Perdido". O outro é Hergé: Tintim, justamente.

E no entanto, repare-se. As primeiras histórias são muito fracas, apesar do encanto de que se revestem... "Tintin au Congo" ou "Tintin en Amerique" são inconsistentes. Ontem atirava-me a, em português, "Os Charutos do Faraó", que me deliciava na adolescência, e mesmo mais tarde, confesso. Mas o desenho é incipiente, a imagem do próprio protagonista está ainda indefinida, e a improbabilidade de algumas peripécias é confrangedora. Todavia, lá está: vão surgindo aí "pessoas" extraordinárias e absolutamente inesquecíveis. O sr. Oliveira da Figueira, por exemplo, os Dupondt e as suas repetições, as suas quedas aparatosas, os seus disparates. Ou então, como em o "Lótus Azul", alguns malandros de segunda (Dawson e Gibbons, ingleses racistas, cobardes e cheios de si) ou o perverso Mitsuhirato.

Quando começou Tintim a tornar-se realmente Tintim? Diria que com a entrada em cena de Capitão Haddock, em "O Caranguejo das Tenazes de Ouro". Mas o desenho ainda parece hesitante, à procura de si, e a história, mais complexa, contém debilidades.

É verdadeiramente nas últimas que nos deparamos com um universo totalmente criado, repleto de personalidades densas e fascinantes. Veja-se "Explorando a Lua", onde o maniqueísmo é substituído pela ambiguidade de um traidor cujo destino nos comove.

"As Jóias de Castafiore", o meu predilecto, onde nada realmente acontece e, contudo, nos prende da primeira à última página, é um álbum maravilhoso, com um desenho perfeito (revelando a célebre "linha clara" em todo o seu esplendor), o Castelo de Moulinsart enchendo-se de hóspedes e de visitas, a diva, paparazzi e aldrabões, equívocos e surpreendentes descobertas.