quinta-feira, 29 de outubro de 2009

PROUST: O MAIOR ESCRITOR DE SEMPRE

Tinha sido convidado para jantar em casa do cunhado de uma amiga minha.

Após a refeição, lauta, sem dúvida, e enquanto alguns dos presentes cercavam uma mesa de snooker, jogando com entusiasmo, fui-me aproximando, com um tímido copo de tinto na mão, da estante que me não saíra da visão periférica desde que ali tinha chegado.

Às tantas, vi uma sombra que, por detrás de mim, se projectava sobre as lombadas de livros que eu estava pesquisando. Era o dono da casa, que, por sua vez, se aproximava. Retirou de uma prateleira um livro, passou-mo para a mão. «Conheces isto?» - Era o primeiro volume, da Europa-América, de Em Busca do Tempo Perdido. (Eu estava maravilhado com o que parecia ser um magnífico e surpreendente encontro de almas gémeas proustianas...)

Antes que tivesse tempo para responder, disse-me:
«Comprei este livro há muitos anos, influenciado por um debate televisivo em que um grupo de intelectuais o elogiava como sendo uma obra incontornável. Nunca li senão quatro, seis páginas, dez, vá. E era só o primeiro volume. São sete volumes! Perfeitamente ilegível. Horroroso!»
Fez uma pausa, e concluiu:
«Tenho a certeza de que nenhum daqueles grandes intelectuais foi capaz de ler esta pessegada...»

Não cheguei a falar, é claro.
Conto-o agora, por graça. Porque a verdade é que, sendo apenas meio intelectual, isto é, um intelectual sem o menor prestígio nem autoridade, li os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. E considero Proust, com toda a sinceridade, o meu autor maior, o que me enche as medidas, o que me encanta e arrasta pelos níveis variados de um romance de muitos tomos, complexo mas, de facto, completo.

Dizia o meu primo: «Lemos Proust, e tudo parece de uma simplicidade extrema. Não há propriamente, na sua escrita, nenhuma indicação óbvia da grandeza desta. O que sucede é que, depois de o lermos, já nada mais nos satisfaz; o que sucede é que, depois de lermos Proust, por comparação, todos os outros - todos, todos, todos - nos parecem desinteressantes, pobres, frágeis...»
Tenderia a concordar. Talvez com excepções. Mas tenderia a concordar.

O texto de Proust reflecte e exprime um ponto aéreo da sua consciência, onde brotam e por onde perpassam ideias banais, daquelas que habitualmente não levamos a sério, se e quando é em nós próprios que afluem; e de que nos arrependemos, mais pela sua superficialidade do que por outra razão; ideias que, por tudo isto, não estamos habituados a formular e nunca nos lembraríamos de comunicar a outrem: pensamentos inacabados, mal pincelados, considerações flutuantes, voláteis, a que não damos importância cognitiva, entre a mera sensação e o vagamente intelectual, formam, pois, a quase impudica matéria de Proust: a verdade, porém, é que nos reconhecemos imediatamente neste strip-tease da consciência. Afinal, é produzindo pequenas e móveis ideias desse género, que também o nosso espírito constantemente preguiça, no seu impressionismo interior...

Por outro lado, as personagens são vivíssimas, realistas nas suas contradições e debilidades, mas encantadoras nessas mesmas contradições e debilidades - tão humanas. Assistimos a um percurso em que as vemos mudar ao longo do tempo e em que, simultaneamente, as vamos vendo e redescobrindo segundo muitos olhares, de diferentes pessoas.

Assim, Marcel, o narrador, descobre, por exemplo (suponho que o episódio é contado no último voluma de a Busca), num livro de um dos irmãos Goncourt...

Mas interrompamos desde já o que escrevíamos, para introduzir um parêntesis: esse livro, pretensamente da autoria de Goncourt, de que Proust transcreve mesmo um excerto (um excerto obviamente escrito pelo próprio Proust, à maneira de Goncourt, porque «tal» livro não existe, é uma peça de ficção) constitui um extraordinário pastiche, uma falsificação perfeita de um estilo, uma imitação admirável do espírito de um autor real...

... Mas dizia: nesse livro, Goncourt (pseudo-Goncourt) fala-nos - e trata-se de memórias - de um certo sujeito como sendo um génio; e no entanto, nós já conhecemos esse sujeito. Sob outras perspectivas, que nos tinham sido apresentadas antes, e ao longo da obra toda, fomo-lo identificando como um homem medíocre, sem grande rasgo nem imaginação. Temos, pois, de sobrepor estes dois retratos, compreendendo que, porventura, ambos são incompletos e nenhum traduz fielmente a realidade. E é absolutamente notável como Proust nos obriga a ir refazendo o que julgávamos saber, entregando-nos as personagens segundo as suas múltiplas faces e interpretações, e nunca definitivamente catalogadas.

Por outro lado, a forma como descreve minuciosamente o indescritível - um cheiro, um sabor, uma vaga impressão - torna a sua escrita uma imperdível aventura do espírito. Há um degustar das palavras que se harmonizam, sem comodismo, para descrever algo tão efémero como uma sensação.

A profundidade da obra de Proust revela-se numa das minhas personagens preferidas, que é Swann: homem elegante e sofisticado, convidado dos melhores salões (privando, por exemplo, com os Guermantes), mantém sempre uma discrição e contenção que são próprias do seu refinamento: não se exibe, nunca refere quem visitou, nunca faz gala das suas relações. E que delicioso - e dramático, ao mesmo tempo - percebermos como, sob efeito de uma paixão devastadora por Odette, ele será sucessivamente abandonado pelas pessoas de nome, que se recusarão a recebê-lo, agora, na companhia da sua nova esposa; para a enaltecer e satisfazer, fará gala de gritar bem alto as relações com aqueles que os aceitam e os convites que recebe de pessoas muito inferiores a si na escala social, mas incensados entre aqueles que contam para Odette (nomeadamente, os horrorosos Verdurin).


A obra de Marcel Proust merece ser lida e a sua leitura torna-se, a prazo, uma experiência inolvidável do leitor integral, em que nenhuma emoção ou gosto é marginalizado ou esquecido, mas acredito que não fixe imediatamente a si o principiante. Não me esqueço que grandes escritores (e, esperar-se-ia, talentosos leitores), como André Gide, que deveria dar ao editor o parecer sobre Em Busca do Tempo Perdido, o classificou desrespeitosamente como uma «história de duques e duquesas de festa em festa»...

Por mim, reconheço que tive muita sorte. Uma convergência feliz de ses levou a que Em Busca do Tempo Perdido esperasse, desde sempre, pela minha atenção. Se não fosse o meu avô, que se fazia acompanhar sempre de um Proust, se não fosse o meu tio, que tinha a obra, em francês, resumida a três volumes em papel-bíblia, se não fosse um extraordinário artigo de Borges, se não fosse a maravilhosa tradução de Pedro Tamen, se não fossem as discussões infindáveis com o meu primo, se não fosse um livro imperdível de Alain de Bottom sobre Proust, poderia nem ter vindo a conhecer o que, para mim, é o mais genial de todos os autores de toda a literatura.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

ITALO SVEVO: A CONSCIÊNCIA DE ZENO


Aparentemente, Italo Svevo, pseudónimo de Ettore Schmitz, não entrou na literatura pela porta grande.
Os seus primeiros romances, que nunca li, foram duramente desqualificados pela crítica e, sobretudo, ignorados pelo público. Na sequência desta má recepção, aliás, abandonou a escrita literária.

Não preciso de ir muito longe para encontrar tal informação: leio-a no preâmbulo de A Consciência de Zeno, magnífica obra que redigiu e marca, após o tempo de desistência, o seu regresso à escrita, encorajado por James Joyce [que não era, à época, ainda conhecido e, como seu professor de inglês, entretanto tornado amigo e confidente, lhe pediu para ler os seus cadernos].


Não percamos tempo com adjectivos: Svevo é simplesmente extraordinário. Narra uma história quase comezinha, quase irrelevante, principiando por algo tão simples como uma personagem que procura abandonar o vício do tabaco. E depois, a partir deste início incipiente, vai construindo os patamares e os labirintos da consciência deste homem, o qual vai recordando e contando os seus sentimentos - o amor não correspondido, um falso amor em que mergulha sem saber como, seguindo um impulso ilógico, os seus ciúmes, invejas, ressentimentos...

A duplicidade deste anti-herói torna-o um irmão nosso, uma pessoa muito próxima de nós e das nossas contradições. Algo na sua percepção da realidade está ferido de um egoísmo e de uma insensibilidade quase ridículos - e, no entanto, é muitas vezes dessa imoralidade intrínseca, essa incapacidade para nos pormos no lugar do outro, que se fazem os movimentos da nossa consciência.

A sua escrita prende-nos imediatamente. Numa simplicidade que esconde um trabalho eficiente e, como lembra António Lobo Antunes, um apuro técnico incomum, Svevo, diante dos nossos olhos, vai povoando as páginas do seu romance com formulações de um fulgor e de uma profundidade que só o génio conseguiria.

É uma leitura do interior de um homem, em que o que lhe sucede não serve senão como pretexto para esta fenomenologia da sua consciência. Lê-se devagar. Saboreando tudo. Com os pêlos eriçados. A sensação, rara, de se estar num outro mundo literário, de se ter subido a um outro nível; literariamente, Svevo é incomparável: é outra loiça!

sábado, 24 de outubro de 2009

SARAMAGO: A PROPÓSITO DA RECENTE POLÉMICA

Conforme diz Nicolau Tolentino de Mendonça, em diálogo aceso mas cortês com José Saramgo, o problema não está tanto no livro Caim, da autoria do Nobel português. O problema está naquilo a que o
teólogo chama o «hipertexto». E de facto, como diria o Diácono Remédios, Num habia nexexidade.

E nem se compreende o sentido e o alcance das palavras com que Saramago, em discurso directo, agride a Bíblia e os crentes, a não ser por uma espécie de fé cega contra a igreja católica, apostólica, romana, ou por um acto publicitário que vise desta forma chamar a atenção sobre o seu último romance.

Nunca apreciei a personalidade de Saramago: talvez resida nessa depreciação a minha dificuldade em amá-lo como escritor. Qualquer coisa da sua arrogância, da sua presunção mas, ao mesmo tempo, da enorme banalidade de certas afirmações, que nunca se coíbe de fazer quando entrevistado, revestindo-as sempre da gravidade de uma sabedoria maior, unem-se para fundar um preconceito meu: já o leio a partir desse incómodo, dessa lente crítica e distanciadora.

Como não sou tolo, em relação a uma parte substancial da sua obra, contudo, a inegável qualidade impôs-se-me, furando a asfixia da minhe lente anti-saramago, preparada de antemão para o recusar. Assim, reconheço que Memorial do Convento é um grande livro, bem como O Ano da Morte de Ricardo Reis ou o Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também Intermitências da Morte me parece, com efeito, um texto irónico extraordinário (tal como A Viagem do Elefante) - ao mesmo tempo que considero, por outro lado, o tão celebrado Ensaio sobre a Cegueira um livro paupérrimo, todo em torno de uma metafórica pouco inovadora, de que se abusou já muito, ou, A Caverna, uma obra menoríssima e, para além de tudo, muito aborrecida... Ah! E já agora: detesto Todos os Nomes!

Com esta tentativa de mostrar que não estou completamente inquinado pelo preconceito contra o homem-Saramago, distinguindo com algum fundamento, no que respeita à obra, o trigo do joio, abalanço-me, pois, a falar acerca de Caim, que ainda não acabei...

... Mas que já posso encarar como uma das melhores coisas que Saramago escreveu. Um pouco como se, de facto, a velhice revelasse, ao mesmo tempo, o progredir da sua senilidade ao nível do contacto humano e das relações (o progredir da sua senilidade quando é chamado a falar), mas, ao mesmo tempo, a maturidade que atinge como romancista.

Caim é um excelente tema? Claro que é, e não de agora. Recordo, para não recuar muito mais, o papel de James Dean em A Leste do Paraíso (a partir de um romance de John Steinbeck), representando um Caim moderno (isto é, dos anos 50), em luta contra um pai tirânico e injusto na maneira como o trata, em comparação com o cuidado que dispensa ao irmão.

Mas em Caim, precisamente, está tudo o que é humanamente mais rico, o ciúme e a inveja que contaminam as relações filiais e fraternas, o amor contraditório e incompleto, a injustiça, a desigualdade, a sem-razão. É por isso que me parece inteligente e literariamente interessante a laicização destas relações - Deus é um pai, e um pai, mesmo sendo Deus, é sempre uma figura injusta e dividida, com medos e dilemas. Deus não seria pai se não fosse este pai profundamente humano e irascível, cansado, em luta com o seu filho. E, claro, por mim falo. Embora não seja Deus.

Esta dessacralização do texto, ou melhor, esta dessacralização das personagens (Azael, que os expulsa do paraíso, é seduzido por Eva, deixando sempre ver uma comovente faceta piedosa...) não as desvirtua, antes as enobrece. É um romance profundo, tocado por uma ironia e por um humor corrosivos, que reduzem todo o mal à imperfeição humana, numa escrita que todos reconhecemos, nem sempre fácil mas muito bela e, de facto, muitíssimo inovadora.

Se ao menos o homem ficasse calado...!

sábado, 17 de outubro de 2009

SÓFOCLES: ANTÍGONA



Na escola, em estreita colaboração com a História e a Filosofia, ando a preparar entusiasticamente, na Biblioteca, uma sessão sobre Antígona.

O meu grupo de amigos tinha decidido, há algum tempo já, animar uma série de comunicações em que cada um de nós iria falar acerca de um qualquer tema por si escolhido: lembro-me de que a minha ideia era levar-lhes Antígona - tratando a magnífica tragédia de Sófocles; analisando a intensíssima personagem principal, de que a peça usa o nome ; falando sobre a incompreensão manifestada por Creonte acerca de tudo quanto Antígona, ao desafiá-lo, realmente simboliza e veicula; sobre a autenticidade e grandeza femininas dela (que, ao longo dos séculos, todas as feministas procuraram fazer suas); ou acerca das palavras sublimes mas obscuras e enigmáticas, maravilhosas (e maravilhadas) mas, por vezes duras, do Coro dos Anciãos Tebanos...

Nunca cheguei a fazer essa comunicação. Contudo, agora que regresso ao texto de Sófocles para o preparar para a escola, redescubro, com o misto de prazer e angústia que a Antígona em mim provoca, as frases lapidares dirigidas por uma mulher corajosa à sua irmã insegura e carregada de medos e dilemas: «Tu escolheste viver, e eu, morrer»; «não queiras partilhar a minha morte nem faças teu aquilo em que não tocaste. Para morrer basto eu», como se a morte fosse um privilégio reservado aos verdadeiros corajosos, aos que trabalharam por ela...
Ou contra Creonte, o irascível tirano que não percebe que há e haverá, acima da sua lei escrita, uma lei não escrita, infinitamente mais poderosa: «por causa das tuas leis, não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem».

Ah, como dirá o coro, «muitos prodígios há, porém, nenhum maior que o homem», esse que doma e domina, ultrapassa e vence, que através da sua tecnologia tudo transforma à sua imagem e semelhança, cura doenças, desenvolve o pensamento, como se nada o detivesse nem ao seu poder - e, porém: «ao Hades somente não pode escapar».

Porque algo é obscuramente mais forte do que o homem, do que a sua razão e a sua imaginação, a sua astúcia política, a sua lei, a sua obra, a sua sede de poder, ou o efectivo exercício desse seu poder, através de uma tecnologia que ele desenvolve e continuamente multiplica.

Estou como Freud: quanto mais evoluídos nos tornamos, mais percebo que a essência radica na Antiga Grécia. Os Gregos já nos aguardavam. Sempre esperaram por nós, ainda nós não tínhamos nascido.