segunda-feira, 25 de abril de 2022

ANTÔNIO TORRES: QUERIDA CIDADE

 

O que sou agora? Dois olhos na amplidão, a ver água, água e nada mais. O que mudou de um dia para o outro: agora era ele o dono e senhor de uma cidade inexistente. Sem vivalma.


Há, sobre a minha descoberta e recepção deste livro, tanta coisa a dizer, que se me torna até difícil decidir por onde principiar. Na verdade, conheci Antônio Torres no Facebook, recomendado por vários amigos brasileiros. Não me lembro em que precisas circunstâncias. Em todo o caso, a sua gentileza, ou a sapiência que se percebia num directo, deixaram-me em estado de desasossego enquanto o não convidei para colaborar na "Fluir". Acedeu, enviando-me um texto maravilhoso que, em breve, poderão ler.



Entretanto, queria muito mergulhar no seu último livro, Querida Cidade, de que parti em busca, numa livraria brasileira que achei na mesma altura, a Livraria da Travessa, entre o Largo do Rato e o Jardim de São Pedro de Alcântara (desculpem a localização imprecisa, mas nunca fui homem de calcular a latitude e a longitude): um proprietário culto, de uma amabilidade e de uma alegria hospitaleiras, que nos interpela e faz sentir as pessoas mais interessantes do mundo; inúmeras salas amplas, outras mais pequenas; uma ou duas cadeiras onde podemos sentar-nos a folhear; a presença silenciosa (secretamente eloquente) de romance, ensaio, poesia, filosofia, ciência, artes, desde os livros de autores brasileiros e portugueses, a secções de livros em francês, inglês, alemão, espanhol.

Encomendei-o. Demorou: ter-se-iam esquecido de mim? Nem pensar. "Vamos perguntar o que se passa", assumiu mais tarde o dono da livraria.  

Chegou há pouco o livro, avisaram-me, passei por lá, trouxe-o (e a mais alguns), e estou a lê-lo.

Advirto desde já que o início não é para meninos. Amedronta e desconcerta. Sentimos dúvidas, continuamente superadas, continuamente retornadas, sobre se o desaparecimento de uma cidade sob o dilúvio deve ser lido literal ou metaforicamente, a tal ponto as imagens contêm um travo onírico, um elemento de improbabilidade. Por outro lado, caramba!, desde as primeiras linhas, que linguagem inspirada, que poética e aliciante aliança entre rigor, riqueza lexical e beleza pura. A lentidão da leitura, e a repetição, muitas vezes, foram-me condição: não só para não deixar escapar um sentido íntimo, oculto, como para, sobretudo, respirar mais profundamente o maravilhoso da construção das frases, o encantamento de uma linguagem que nos hipnotiza. Também é um facto que, a partir de certo ponto, deixamos de ser capazes de manter a lentidão da leitura, de tal forma o romance nos envolve e suga vertiginosamente.

Penetrando na infância e na adolescência daquele homem, só, na cidade afundada, tomamos conhecimento de como se afastara, antes, da sua aldeia, de pais, irmãs, irmãos, em busca de uma vida melhor. Viverá, na procura da sorte, em várias cidades: a verde, a velha, a bela. E vamos ouvindo o seu pensamento e a sua memória a narrar, recuando a partir de um momento, o este agora.

Mas os momentos quebram-se, inevitavelmente, como contas de vidro. É ainda um aspecto encantatório do estilo de Antônio Torres, na sua progressão rápida (ou melhor, como lemos alhures, ora rápida, ora mais vagarosa): de dentro de cada momento que nos é contado, e se fragmenta, surgem, com precisão e sem a menor falha na clareza das ligações, inúmeros outros momentos - uma rede de episódios que a memória da personagem faz advir, revendo o seu passado. Mas não apenas o seu passado pessoal: associações se vão operando, a propósito de uma palavra, ora às histórias dos casamentos ou namoros (ou a ausência de um homem que fique), das irmãs da jovem por quem se apaixonara, e visitava numa casa onde havia, até, um piano, ora a um programa "motivacional" de televisão, ora, por causa desse programa, à vida de uma moradora de um prédio, que viajara à Índia, se tinha transformado, e teria matado o marido devido a uma "dieta de faquir" - o que na verdade não sucedeu, e sim o contrário. Breves histórias que se ramificam, aparentemente desconexas entre si, mas com pontes que tudo permitem congregar, numa composição de cenas que é um universo. Na feliz nota inserta nas badanas, sem referência autoral, o elemento do seu modo de escrever é caracterizado como líquido: "Os fatos da vida do protagonista afloram e somem num meio movediço", vários pontos, em suma, "amalgamados num tempo oceânico", com diversos tipos de flutuação, "como se as águas em que flutuamos esquentassem ou esfriassem, acelerassem ou diminuíssem o empuxo."

Num certo sentido, a substância deste romance é a fuga. Até, nesse aspecto, se percebe a justeza do carácter líquido, torrencial. Ou a partida, se preferirmos, como um som dominante: desde a de um tio, cujo desaparecimento marcara a família; passando pela mais decisiva, aqui: a do próprio protagonista, ansioso por se libertar do meio medíocre e, simultaneamente, amado; até, pela segunda vez, a do próprio tio que o recebera, mas, contudo, empreenderá uma fuga dentro da fuga, largando sem piedade a mulher e o sobrinho - deixando-os sem nada -, para se juntar à, afinal, tardia mulher da sua vida. Já para não falarmos da misteriosa evaporação do seu pai. Ou mesmo a fuga de um primo em terceiríssimo grau, o qual lhe viria a ser providencial num reencontro, mais tarde, mas escapava então, na deliciosa expressão de Antônio Torres, ao facto de ter acabado "indo longe demais" na sua energia de Don Juan: "meter-se com uma chave de cadeia foi sua falha trágica" (isto é, ter seduzido a mulher do delegado da polícia. Sendo que também, como adiante perceberemos, essa história resultaria mais de um equívoco, adensado pelo diz-que-disse, do que de um pecado efectivo).

Mas, se a analogia não soar forçada, a fuga prática tem ainda correspondência numa série de outros tipos de fuga, as, digamos, evasões à realidade, através da literatura e do cinema, que sublinham os primeiros anos da vida citadina do protagonista, tornando o romance de Antônio Torres um meio onde o real e a ficção se entrelaçam, numa reconstituição extraordinária das referências romanescas, cinematográficas e musicais da juventude brasileira dos anos 50.

Não é um aspecto de somenos, para a grandiosidade desta narração, que ela não se vá desenhando linearmente, mas num imenso movimento em que passado, presente e futuro se confundem, sob um mesmo olhar divino, nem que os destroços de episódios pretéritos, que vimos vogar nas páginas, e desaparecer, incompreensíveis e inconclusos na memória das personagens, sejam depois reatados, num encaixe em que o todo se consuma.

É verdadeiramente essa dispersão, típica de um "tempo oceânico", por onde perpassam versos de letras de canções e referências à música ouvida, como a trilha sonora em que se reconstroem várias épocas, ou perpassam indícios de momentos historicamente reais, políticos e culturais, que embebem o espírito do tempo, em lugares, e por personagens, nunca nomeados (quando muito, o homem só, perante a cidade praticamente submersa - sonho, realidade, forma do tempo? - é tratado, a propósito de certo momento da sua juventude, por Das Dores, aludindo-se à identificação instantânea com a filosofia de Arthur Schopenhauer, que acabava de descobrir, num livro em que tinha gastado o seu último dinheiro), que nos mostra a perfeita perícia e a profundíssima originalidade de Antônio Torres.


quinta-feira, 14 de abril de 2022

JOÃO PEDRO VALA: GRANDE TURISMO

 Para ser completamente honesto, João Pedro Vala já me tinha conquistado antes de eu poder ler-lhe o primeiro romance. Bastara-me a referência ao seu interesse por Marcel Proust, e à tese que produziu, entre uma universidade portuguesa e uma outra, norte-americana, sobre Em Busca do Tempo Perdido, para que uma afinidade primordial com o jovem autor e o seu olho atento ao que vale a pena me predispusesse a ir ao seu encontro. 



Grande
Turismo sofre a influência proustiana, sob a forma, porém, de dever satirizá-la, sátira essa em que se lê mais a homenagem e a humildade, do que a crítica ou o sentimento de superioridade. Como se João Pedro Vala pensasse: "Para refazer a experiência de um romance cuja matéria coincide com o tempo, recuperado pela memória do narrador, sem parecer que me meço com Proust, deverei escrever uma espécie de caricatura, em que o narrador emergirá sistematicamente falhado e ridículo."

Nada de confusões: a falha, a insegurança e o ridículo estão já contidos no Marcel de Em Busca do Tempo Perdido, e em todas as suas personagens; contudo, enquanto aí se conjugam numa linha subtil, em parte cómica, sim, que, simultaneamente, suscita tristeza, indentificação e redenção, no romance de JPV são desenhados com o traço grosso da comédia. A aura romântica foi completamente substituída por uma estratégia humorística. O narrador - que, como em Proust, partilha o nome do autor (neste caso, aliás, completamente, nome próprio e apelidos: "João Pedro Vala") - parece-nos mais um Woody Allen do que um Marcel.

As suas memórias vêm deliberadamente descosidas. Não se procura o tempo como a substância que as une secretamente e lhes daria sentido. A chave é, pelo contrário, a descontinuidade: momentos que nascem de si próprios e não se ligam senão pelo narrador e 


umas quantas personagens comuns. 

Não se trata, pois, na sua linguagem muito bela, original e poderosa estilisticamente, de uma reconstituição do passado que o resgata e justifica, como Em Busca do Tempo Perdido, mas da exposição auto-irónica, como à procura dos momentos mais risíveis, em que a existência de João Pedro Vala, o narrador, se revela como desacerto, absurdo e ridículo. Como se se procurasse o lado inverso do romance de Proust.