terça-feira, 25 de junho de 2013

DULCE MARIA CARDOSO: OS MEUS SENTIMENTOS


     A construção deste romance é um mapa quase indiscutível das próprias referências. A escrita de José Saramago, para começar, nos seus períodos extensos e sem outro modo de articulação que não a mera vírgula, e os sobressaltos típicos dos textos de Lobo Antunes: as interrupções que intercalam uma outra fala, de um outro contexto, que só indirecta e invisivelmente remetem para o período que vinha sendo enunciado.

     Esta conjugação de meios possibilita a fundação de um discurso denso, longo mas fracturado, a partir do qual, no entanto, o leitor compreende a estrutura que a tudo subjaz. Mais: esta conjugação de meios, de quebras, desvios, alusões, permite que o leitor se engane na forma como, na sua mente, vai completando a referida estrutura.
Surpreende-se, ajusta, por fim, fragmentos de cujo ajustamento não suspeitou, percebe - mas tarde - quem é, afinal, o homem que fez mal a um outro homem, e por que razão o fez. O leitor vai entendendo, mas só à medida que progride e a progressão é também um recuo, que nos descoculta os antecedentes e os motivos.

     É um romance acerca da incompreensão. Na minha leitura, trata-se disto: um romance que nos mostra precisamente a incompreensão como prerrogativa das pessoas perfeitas; ou, invertendo os termos, de um romance sobre as pessoas "perfeitas" como as mais imperfeitas das pessoas: as que não compreendem os outros, as diferenças, o sofrimento alheio; as que podem não ver e não ouvir o que as incomodaria; as que fazem da sua perfeição um exercício permanente e esforçado de cegueira.

     A voz que escutamos ao longo de todo o texto, o pensar lúcido e cruel cujas palavras o leitor vai seguindo, em transe, é pelo contrário a voz da anomalia, da anormalidade, da imperfeição. É a voz do «mostrengo», que desafia a vida, a mãe, o pai, que resiste à incompreensão e à ingratidão, tudo compreendendo subtilmente, e vendo mais fundo e tudo ouvindo. E recusando a perfeição dos outros; armadilhando-a, desmontando-a, ou seja, assumindo-se numa hostilidade que as palavras desmentem, numa prática que as palavras desmentem. As palavras falam sobretudo de amor. É a um outro nível que percebemos que o discurso do amor pode conter a mais patética forma de vingança.