quarta-feira, 16 de setembro de 2009

VALÉRY: OS ELOGIOS VENENOSOS

Em certas bocas, os discursos são milimetricamente estudados para que, sob as frases de aparência elogiosa, nas entrelinhas, se perceba o desprezo que o autor realmente nutre por aquele que as circunstâncias obrigam a elogiar.

Paul Valéry era um magnífico especialista nesse tipo insidioso de oração.
Veja-se a seguinte situação: acolhido pela Academia Francesa, em 1927, para o lugar vagado pela morte de Anatole France (na 1ª foto), Valéry (2ª foto) dedica-lhe um discurso, que considero uma obra-prima de perfídia e segundas intenções:

«Os mortos só têm os vivos como recurso, os nossos pensamentos são para eles o único caminho. A eles, que tanto nos ensinaram, parecem ter-se apagado por nós e ter-nos legado todas as oportunidades, é justo e digno que sejamos nós a acolhê-los nas nossas memórias a fim de beberem um pouco de vida nas nossas palavras.
«O público está infinitamente reconhecido ao meu antecessor e deve-lhe as sensações de um oásis. A sua obra surpreende-nos doce e suavemente pelo contraste refrescante com os estilos brilhantes ou bastante complexos existentes. Parecia que a leveza, a clareza, a simplicidade regressavam de novo à terra. São deusas que agradam à maioria. Gosta-se imediatamente de uma linguagem que se pode saborear sem ter de pensar muito, que seduz por ser tão natural e cuja limpidez, sem dúvida, deixa transparecer por vezes que existe um pensamento por detrás, não misterioso mas, pelo contrário, perfeitamente legível ou até bastante convincente. Havia nos seus livros uma arte consumada de abordagem das ideias e dos problemas mais graves. Nada nos faz deter a não ser a maravilhosa sensação de não encontrarmos neles qualquer resistência.
«O que há de mais precioso que a ilusão deliciosa da clareza que nos dá o sentimento de nos enriquecer sem esforço, de saborear o prazer sem pensar, de compreender sem ter de prestar atenção, de desfrutar do espectáculo sem pagar?
«Felizes os escritores que nos evitam o peso do pensamento e que tecem com um simples levantar de dedo um luminoso disfarce na complexidade das coisas.»

E poderia continuar na citação. Mas, para o que queria mostrar, parece-me suficiente.
Não vale a pena prosseguir, de resto: chego a ter pena de Anatole France.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

AINDA CÉLINE: UM EXCERTO

«Sob aquele olhar de opróbio, o mensageiro claudicante pôs-se em sentido com os mindinhos na costura das calças, como deve ser feito nestes casos. Oscilava assim, hirto em cima do talude, com a transpiração a correr-lhe ao longo da jugular e os maxilares a tremerem tanto que emitia pequenos gritos sufocados, como um cãozinho que sonha. Não era possível descobrir se queria falar-nos ou se realmente chorava.
«Os nossos alemães, acocorados mesmo no fim da estrada, acabavam de mudar de instrumento. Era à metralhadora que prosseguiam com aquelas tolices; faziam-nas estalar como grandes caixas de fósforos, e à nossa volta vinham voar enxames de balas raivosas, irascíveis como vespas.
«Ainda assim, o homem acabou por fazer sair da boca qualquer coisa articulada:
«- O sargento-ajudante Barousse acaba de ser morto, meu coronel - disse de uma assentada.
«- E então?
«- Foi morto quando ia procurar o pão na estrada Des Etrapes, meu coronel!
«- E então?
«- Foi despedaçado por uma granada!
«- E então, com mil raios!
«- Só isso! Meu coronel...
«- É tudo?
«- Sim, é tudo, meu coronel.
« - E o pão? - perguntou o coronel.
«Foi este o fim do diálogo porque me recordo bem de ele ter tido tempo de dizer exactamente isto: «E o pão?» E pronto. Depois só fogo e também ruído a acompanhar. Mas um destes ruídos como nem se acreditava que existissem. Que nos encheu por completo os olhos, os ouvidos, o nariz e a boca, imediatamente, ruído ao ponto de eu julgar que estava tudo acabado, que eu próprio me tinha transformado em fogo e ruído.»

LOUIS FERDINAND CÉLINE: VIAGEM AO FIM DA NOITE


Que poderei dizer?

Este é, porventura, um dos textos mais desconfortáveis que já escrevi. Porque não se trata somente de admirar, mais ou menos, um escritor do PSD ou do CDS - e dizê-lo. Se fosse isso...!
Trata-se de uma outra coisa: falo da experiência profundamente perturbadora que é, de algum modo, a do amor pelo abismo.

Houve pensadores e criadores que pactuaram, politicamente, com aquilo que a humanidade produziu de mais medonho. Seria tão fácil, tão linear, tão sem sombras tortuosas para nós se, ao menos, eles tivessem sido, nas suas obras, os meros arautos e apologistas do regime odioso que serviram; nada mais do que os instrumentos medíocres da propaganda, que pudéssemos execrar...

Mas porque será que, pelo contrário, alguns deles são os artistas mais sublimes que já conhecemos? Por que razão haveriam de ser, estas pessoas que escolheram erradamente, pavorosamente, os autores de uma obra que poderemos até ignorar - mas, se por acaso a descobrimos, não conseguiremos senão amar?

Heidegger, por exemplo, que foi reitor de uma fulcral universidade alemã, no auge do nazismo; marginalizou professores judeus, chegando a retirar do seu livro a dedicatória, que constava na primeira edição, ao judeu Husserl, seu mestre; redigiu alguns dos discursos mais miseráveis acerca da grandeza da Alemanha ariana e do Führer; e morreu sem nunca ter mostrado qualquer arrependimento, será, de facto, e por outro lado, o escritor da obra de filosofia em que é inaugurado um autêntico pensar contemporâneo, projectando uma nova luz sobre o passado Grego e iniciando um modo tão original de reflectir, não segundo a lupa de ideias eternas e absolutas, mas a partir do tempo e do finito?

E Ezra Pound, que enalteceu o fascismo e o nacional-socialismo, pode ser de facto o poeta de uma obra poética culta, sensível, profunda - Cantos que, à imagem da Divina Comédia, transforma em poesia uma experiência aterradora, múltipla e multímoda, falando diferentes línguas, misturando e sobrepondo os fios do vasto arsenal da cultura humana?

Elia Kazan, denunciante, vendido de todas as formas, traidor, é realmente o realizador dos filmes incomparáveis que nenhum outro realizador - à parte, talvez, Orson Welles, que redescubro recentemente no Clube de Cinema - conseguiu igualar em inteligência e força? Lodo no Cais? Ou Esplendor na Relva? Nada que não seja, de facto, de uma qualidade suprema?

Chego ao pior de todos. Ou ao melhor de todos. Apresento-o em três ou quatro tópicos: Louis-Ferdinand Céline. Colaboracionista, apoiante do regime traidor de Vichy na França ocupada, escritor cujos artigos eram pagos por jornais simpatizantes de Hitler, autor confesso de um dos panfletos anti-semitas mais degradantes que conheço. Posto isto, como hei-de lidar com o facto inequívoco de que Céline é o autor de Voyage au Bout de la Nuit, e que esta sua viagem ao fim da noite se mantém, sem dúvida, um dos poucos livros que releio frequentemente, que nunca me cansam, que vejo, nas páginas que vou passando diante dos meus olhos, respirando génio em estado puro? Todas as páginas deste livro são revolucionárias. Todas as páginas? Caramba! Cada uma das frases merece atenção, atinge e fere, cada formulação é de uma ousadia e de uma novidade perfeitas. Nada nos deixa indiferentes na sua escrita em que ouvimos, linha a linha, soar a sua «petite musique», esse sentido íntimo do seu texto, em que coisa alguma se confunde com outra coisa já antes lida, em que não há lugares comuns nem imagens gastas...

E, é verdade, há uma estética do repugnante neste livro, que afasta certas pessoas. Eduardo Prado Coelho confessava o seu repúdio: «Em Céline, o segredo íntimo de cada ser está nessa humidade viscosa e agoniada, nessa baba intestina, nessa espuma aviltante das tripas e mucosas - o nuclear é o excremencial: "ce qui guide encore le mieux c'est l'odeur de la merde". [...] O universo de Céline é um inferno visceral. - É aqui que eu entendo melhor a repugnância liminar que me suscita uma escrita que é feita de roncos, perdigotos e metáforas viscosas

Tudo bem. Eu é que padeço, talvez, de alguma perversão oculta.

domingo, 6 de setembro de 2009

SIMENON: OS AMANTES DESENFREADOS


Existe, na Europa, um preconceito histórico contra a inteligência dos belgas.
Por mim, o povo que gerou, no seu seio, nada mais do que um Hergé e um Franquín, na banda desenhada; um Jacques Brel, na música; ou um Georges Simenon na literatura policial, só pode suscitar a maior admiração.

Passando por uma biblioteca em busca de «Simenon», deparo certamente com dezenas se não centenas de livros - a maioria, é claro, tendo como protagonista o celebérrimo Inspector Maigret, o seu chapéu, a gabardina, o cachimbo. O que não deixa de ser lamentável - não porque Maigret não seja de facto, como detective, uma personagem muito bem engendrada, com uma densidade psicológica notável, que não possuem outros, porventura muito mais conhecidos (de Holmes a Poirot); não porque não sejam romances intelectualmente muito bem urdidos, mas porque a obra de Simenon transborda por todos os lados desse mero registo: é mais extensa e mais variada, toca diversos estilos (as suas memórias, por exemplo, são fascinantes) e é fora do que dele foi mais divulgado que, porventura, lhe encontramos a veia mais original.


Tome-se, digamos, um livrinho praticamente desconhecido, que se chama O Quarto Azul ou Os Amantes Desenfreados. É uma primorosa lição de bem escrever. Nem se trata de um policial, no sentido mais vulgar do género. Sobretudo, falta-lhe a presença de qualquer investigador. Ao invés, estamos perante um par de amantes que se encontram, regularmente, no quarto azul de um hotel de província.

É em volta da morte do marido dela - primeiro - e da mulher dele - a seguir - que se vai desenvolvendo uma história de dúvidas e suspeitas.
O ângulo é o do homem: submetido a uma sucessão de interrogatórios, agora que tudo se consumou - mas o que se consumou, de facto: um duplo homicídio ou a estranha (e conveniente) coincidência de duas mortes naturais? - , ele vai-se questionando a si próprio, apresentando, ao juiz, a si, ao leitor, não os factos, mas as suas interpretações, as suas recordações, o que sabia, o que não sabia, o que vai entretanto descobrindo...

E com que mestria perfeita Simenon se repete, ou seja, retoma constantemente diálogos que já nos mostrara, de maneira que, perante uma nova luz, o sentido do que fora dito se renova, e se percebem, nas mesmas frases que já lêramos três ou quatro páginas atrás, outros cambiantes, uma significação nova, completamente diferente.

Georges Simenon é um desses autores que, sob a capa do que dele se vulgarizou, no limiar da iconografia, mantém secreto o que tem de melhor, guarda, quase oculto, o que mais vale a pena.