quinta-feira, 10 de agosto de 2023

GEOFF DYER: OS ÚLTIMOS DIAS DE ROGER FEDERER E OUTROS FINAIS

 


Interessou-me, no livro, logo o título que, prometendo uma obra sobre finais, em todos os sentidos, desde o derradeiro tempo ou, digamos, o anoitecer da vida do próprio autor, um homem da minha idade (e não aprofundemos, por favor, este ponto), até aos "fins" de romances, filmes, poemas, vidas, numa reflexão acerca da ideia de crepúsculo, me soa a uma ideia feliz. A crítica de Pedro Mexia, porém, na revista do Expresso, e apesar das reticências vagamente sugeridas [a propósito do pendor "diarístico" para a "irrelevância" de Dyer, como quando escreve, segundo Mexia apenas "para épater", que acabou de comer ovos, ou conta os pormenores do hábito de trazer champôs dos hotéis que frequentou], acabou por me decidir a partir em busca.



Desde o princípio do livro que a atitude de Geoff Dyer me cativou. Embora não concorde sempre com a sua displicência relativamente a certas obras ou escritores, músicos e composições, desportistas, actores, realizadores e filmes, o mero facto de ousar assumir o que não leu, ou o que nunca provavelmente lerá (ou ouviu, ou viu ou se interessou por) ou que iniciou e abandonou a meio, é de uma coragem e de uma ausência de vaidade que se recomendam. Escrever que não leu Proust na íntegra ou O Homem sem Qualidades, apesar de constituir uma perda - do meu ponto de vista, claro! - não deixa de ser um direito e revelar uma honestidade intelectual destituída de afectação. O mesmo acerca de Nostromo, que já aqui comentei, há anos, como um romance maior de Conrad. (Redescoberto por Dyer na velhice como valendo realmente a pena, apesar de uma impaciente entrada em falso, na juventude). Ou seja, nos casos mencionados, aplaudo o desassombro do gesto sem concordar com o juízo. Mas quando é explícito, sem vergonha nem receio, por exemplo no ostensivo desinteresse por Finnegans Wake, que, pela minha parte, nunca sequer tentei começar, ou por Ulisses, que eternamente recomeço e torno a pôr de parte, encontra em mim um leitor que não só o compreende e admira, mas que com ele se identifica - totalmente.



Como lembra Mexia, e me limito a repetir, Dyer é deslumbrantemente irrequieto. As ideias chamam vertiginosamente outras ideias; a propósito disto entra naquilo, com um critério pessoalíssimo e num torvelinho que toca, en passant, em Camus e Saramago (como dois casos de autores a quem o Nobel teria subido à cabeça), para se deter em Beethoven, Nietzsche, Turner, D. H. Lawrence, ou Bob Dylan.

O livro entranha-se de tal forma, que é por causa dele que tenho estado a pensar (e planear) ir até Turim. Turim cuja luminosidade Nietzsche tanto elogiava.

sábado, 3 de junho de 2023

MICHAEL SHELLENBERGER: APOCALIPSE NUNCA

 O autor começa por ser apresentado na badana - e apresenta-se, desde o início - como um "ambientalista" e até, nessa qualidade, não uma pessoa com uma intervenção superficial e de última hora, para ficar bem na fotografia, mas capaz de exibir um impressionante currículo de salvamento de espécies em vias de extinção ou de luta por uma política científica séria na área da ecologia. É um excelente golpe de marketing ideológico - uma vez que, tratando-se, como se adivinha pelo título, de uma obra que diz pretender desmontar os erros e os equívocos dos movimentos verdes, este cartão de visita permite pensar estarmos perante um autor honesto, que, genuinamente incomodado com o pânico e o clima de histeria em redor dos receios ambientais, baseados, segundo ele, em números e previsões manipulados, que vieram tornando a sua filha, e os adolescentes, em geral, temerosos e desesperançados, apenas nos vem oferecer um exame actualizado, rigoroso, imune a clamores ideológicos de um lado ou de outro. Na verdade, está longe disso.

Quando, primeiramente, o vemos pôr em causa o tom apocalíptico das profecias relativas às mudanças climáticas, e às consequências, a curto ou médio prazo, da pegada humana, ou o inferno para onde o futuro nos encaminharia de forma irreversível, ainda estamos disponíveis para crer na boa nova. Suspiramos com algum alívio. Afinal, é o salvador de uma espécie de grandes símios que nos fala. E devo confessar que, apesar de há muitos anos próximo de movimentos ecológicos, não tenho o menor prazer em pensar que talvez já não tenhamos, de facto, nos tempos vindouros, um planeta confortável e seguramente habitável, ou que tudo o que possamos ainda fazer já pouco venha a remediar. Gostaria que me dissessem, com provas na mão, que se exagerou; que novos estudos demonstram que o poder de regeneração da natureza é superior ao ritmo dos danos; que o clima sempre aqueceu, ou arrefeceu, naturalmente, por longos períodos. E, até, que parte da luta verde errou o alvo, mediu mal as consequências, caiu em falácias ou serviu interesses obscuros. Aliás, segundo Michael Shellenberger, tudo isso ocorreu.

Mas, depois, continuamos a ler o livro, e intuímos ser fracamente provável (atenção: escrevi fracamente, não francamente) que, como Michael Shellenberger garante, os mais variados movimentos de luta pelo ambiente se tivessem enganado de um modo tão brutal. Afinal, está tudo bem com a Amazónia, que, aliás, nem sequer é, verdadeiramente, o pulmão do planeta (para além de que os madeireiros, os "deflorestadores", são comerciantes importantes para a economia, cuja situação e objectivos não devem ser esquecidos); afinal, o consumo de carne e peixe não constitui uma ameaça para o ambiente, nem, verdadeiramente, um problema moral, sendo que se tornam mais destrutivos os vegetarianos ou os vegan, do que os praticantes de um regime omnívoro; afinal, o plástico não se tornou um mal para os oceanos, e, se sim, não se resolve essa questão evitando ou diminuindo o seu uso, mas melhorando as condições da sua concentração em lixo, ou do seu reaproveitamento; afinal, foi a "ganância", ou seja, as empresas capitalistas,  e não o Greenpeace, quem salvou as baleias; afinal a energia nuclear é óptima, mais económica e limpa, do que as energias naturais. Em síntese, tudo esteve sempre bem no melhor dos mundo possíveis e, para parafrasear o subtítulo, quem nos confundiu e desencaminhou ao longo das últimas décadas foram os loucos que deram voz e corpo "a um alarmismo ambiental que nos prejudica a todos".

MS tornou-se um negacionista, portanto. É a palavra. Não há outra.


Acenando com estudos que, evidentemente, poderiam ser diversamente interpretados, ou deveriam ser comparados com outros, de sinal contrário, e usando-os como a indiscutível palavra divina, desmerecendo sistematicamente aqueles que, à partida, já catalogou como "alarmistas", o autor ridiculariza, acusa, ataca. "Desmonta", diz ele. "Manipula", diria eu.


segunda-feira, 15 de maio de 2023

MANUEL ALBERTO VIEIRA: UM PÁSSARO NO ARAME


Não se trata de um livro de poesia, mas tem, certamente, alguma coisa de obra poética. E nesta sua ambiguidade entre romance e poesia, tudo respeita, em primeiro lugar, à forma: a escrita.


Manuel Alberto Vieira não se limita a contar como se o mais importante fossem os episódios que nos quer dar à reconstituição no espírito. As palavras importam-lhe, a linguagem está longe de ser um mero veículo e, portanto, o autor tece, não apenas a história, mas a ficção, no sentido mais profundo da palavra: aqui, o que designo por ficção forma-se como uma história para ser lida e não vista; para ser poeticamente saboreada, e não apenas presenciada. Quase como se a palavra não estivesse ao serviço da história, mas a história ao serviço da linguagem. Na verdade, não se resume a uma coisa, nem a outra: tem que ver com a fusão de ambas, evitando a tentação de reduzir o "contar" a uma câmara, escondida, sobre o mundo. Ao invés, MAV refaz um mundo que não reflecte a realidade: cria a sua realidade. Claro que, para tornar tudo um pouco mais complexo, o real está profunda e dolorosamente subjacente, reconhecível: o real triste e desumanizado das pessoas.

 Esta seria sempre a opção que exige a leitura menos simples. Ao leitor não habituado, ou esquecido, deste modo de ler, as primeiras páginas, os primeiros capítulos, podem parecer demasiado densos. Se um aparente excesso linguístico não capta, de imediato, pela sua beleza, tende a afugentar. Só mais adiante estes quadros iniciais, incompletos e fragmentários, se vão unindo, à medida que linhas que não víamos se definem e cosem. Claro, aí chegando, já estávamos havia muito conquistados e o romance se nos tinha tornado essencial.

Lembro-me de um susto idêntico aquando da leitura de A Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, de Julieta Monginho. Também a linguagem se cultiva, também o mundo se refunda como um sonho, também os laços se vão pressentindo mais tarde na leitura.

Um Pássaro no Arame é um romance desconfortável (o de Julieta Monginho também o era), ao expor a dureza da infância, ou da adolescência, vivida entre uma realidade exterior absurda, e uma família "disfuncional", desculpem o recurso à palavra da moda, que não abriga nem ampara, mas, pelo contrário, ataca, desdenha, agride.

A opacidade das personagens adensa o enigma de cada uma delas. Acompanhamos as suas palavras e os seus actos, mas, como em O Estrangeiro, de Camus, não penetramos no seu pensamento ou nas suas intenções. Em última análise, tudo dependerá de uma interpretação ou daquilo em que o leitor quiser acreditar. É por piedade que Alberto tem relações com a rapariga gorda? Porque mergulha Jonas no silêncio? Há uma intimidade de Kron, para além da sua brutalidade ou da sua obsessão por uma jovem liceal? Há uma intimidade de Miriam, para lá do medo e da raiva?

Não se afasta de nós esse cálice: numa experiência da dureza e da crueldade, não pode ser uma linguagem falsamente inclusiva o que nos guia; nada se nos poupa. Nenhuma fealdade ou deformidade ou horror ficam por dizer.
É um livro para quem não teme a inquietação. 


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

SIMON CRITCHLEY: TRAGEDY, THE GREEKS, AND US

 Coexistem, no ensino da filosofia no secundário, duas tendências contrárias. Uma, com que me identifico mais, concebe a filosofia como o elemento do espírito crítico e da permanente interrogação: importaria mais o espanto do que a certeza, mais o perguntar, como exercício reflexivo, do que o achar soluções, mais o amor pelo saber, que a etimologia da palavra continuamente relembra, do que a posse do saber. Mas a verdade é que, por outro lado, quando se apresenta a filosofia de Platão, de Espinosa, mesmo de Kant, apesar de Kant nos recusar o conhecimento absoluto, ou de Hegel, se está perante sistemas que respondem categoricamente às suas


próprias questões.

Claro: em alguns destes pensadores, se não em todos, assistimos a essa luta interna. E Platão, por exemplo, combate consigo mesmo de um modo muito notório - a ponto de haver quem distinga, na sua filosofia, entre uma parte mais genuinamente "socrática", em busca, e uma parte, digamos, "política", de um homem com a pretensão de fundar a sociedade perfeita.

O livro sobre que ora vos falo retoma esta minha perplexidade antiga, e explora hipóteses interessantes. Momento para lembrar que devo a obra ao meu primo, mon cousin d'Amérique, de certa forma, que regressa por curtos períodos de férias a Portugal e à minha companhia, carregado de bênçãos literárias. E deixemo-nos de coisas: para quem se interessa e procura, os EUA são o ponto alto da publicação e da divulgação do melhor em todos os campos, porque editam, entre a habitual porcaria, os estrangeiros mais estimulantes e alguns, poucos, norte-americanos que merecem atenção. 

A tese de Simon Critchley, em Tragedy, the Greeks and Us, é a de que encontramos, na tragédia Ática, o cerne de um espírito da ambiguidade e do dilema, do espanto em face dos poderes que movem o mundo, e da dialéctica entre a autonomia do humano e a necessidade (sob a forma das leis da natureza, do destino, do poder da tradição e dos deuses), de que os sofistas teriam sido os grandes intérpretes, e contém o mais autêntico movimento da filosofia como interrogação e demanda. A filosofia que nasce com Platão representa, de algum modo, a recusa dessa ambiguidade e a escolha da razão totalitária (a palavra pode parecer forte), que se propõe excluir, da cidade perfeita, os poetas e os artistas. 

Tantos preconceitos e clichés fomos formando em torno da tragédia, sobre como se encenaria e seria vista (e sentida), e por quem, que, ao desmontar algumas dessas convicções, o livro de Critchley poderia ter por título O que a Tragédia Não é (e Provavelmente Nunca Foi).

 Evidentemente, o Autor não tem mais certezas históricas. Mas esta sua reflexão acerca dos dois veios da filosofia, um dos quais desembocaria nos grandes sistemas, outro dos quais, intimamente ligado à tragédia e aos sofistas (se pensarmos, até, que os argumentos digladiados nas peças trágicas visam, à maneira dos sofistas, fazer da Causa fraca uma Causa forte) teria feito recair sobre si a crítica e o desprezo de que sobretudo os sofistas nunca conseguiram reabilitar-se, essa reflexão é magistral e poderosamente estimulante.


sábado, 12 de novembro de 2022

LIANE MORIARTY: NOVE PERFEITOS DESCONHECIDOS

 Por várias razões que talvez não mereça a pena examinar a fundo, mas que vão desde o título "catchy", até ao próprio género de capa, este romance torna-se enganador. Como se quisesse passar por um policial menor ou por um típico livro de aeroporto, tratando-se, na verdade, de uma obra com certa sofisticação e algum sumo, como aliás podemos depreender, nos agradecimentos finais, de uma brevíssima bibliografia em que são referidos, como obras que foram úteis à pesquisa da autora, coisas como No Time to Say Goodbye, Acid Test, Therapy with Substance e, last but not least, As Portas da Percepção, de Aldous Huxley.

A australiana Liane Moriarty


é, com efeito, uma autora da moda. Talvez tenha encontrado a chave para agradar a gregos e a troianos. Mas diga-se desde já que este livro sobre nove perfeitos desconhecidos que se encontram, durante dez dias, numa misteriosa clínica terapêutica, dirigida por uma estranhíssima ressuscitada (sim, a sobrevivente de uma experiência de quase-morte, que, segundo ela, foi uma morte completa) está muitíssimo bem escrito, captando com um notável poder de observação antropológica, digamos assim, as personagens, e seguindo uma estrura que é um primor, quer na forma como escolhe alguém que funciona como fio condutor (Frances Welty, uma escritora talvez em fim de carreira, embora não seja a narradora da história) quer no modo como vai apresentando os outros protagonistas, sem um esquema pré-fixado de entrada de cada um, mas ao sabor de circunstâncias a propósito. É delicioso.

A surpresa e o suspense são a marca, mas, e é isso que faz deste romance uma leitura que vale a pena, o interesse psicológico dos dramas vividos por cada um dos nove desconhecidos entre si, dos seus erros ou descobertas, no ambiente claustrofóbico e um tanto alucinado que é Tranquillum House, transformam a história numa espécie de distopia em torno da busca da felicidade espiritual.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

PEDRO JUAN GUTIÉRREZ: FABIÁN E O CAOS

 

Não me interessava o amor. Não queria sentir amor e complicar a minha vida. O amor é um atilho. Eu precisava de liberdade total. Apenas sexo e cumplicidade. Sexo e liberdade. Sexo e loucura. Dizia-lhe adeus e ela nunca perguntou quando nos veríamos de novo.

        Pedro Juan Gutiérrez, Fabián e o Caos


Não é verdade que categorias como "autenticidade" e "coragem" sejam inúteis ou excessivas, quando se trata de falar de literatura.  Descobrimos a autenticidade, primeiramente, ao ler um autor que mergulha na própria matéria da sua vida, e ao perceber que não somos logrados com a encenação de sentimentos ou desejos; e, claro, a coragem, se essa exposição o faz descer ao politicamente incorrecto, ao moralmente inaceitável, ao que perturba e põe em causa os cidadãos civilizados que os leitores respeitáveis fazem questão de ser. Mais ainda, se o tocar em matéria sensível, animal e marginal, ocorre em regimes ditatoriais e persecutórios.



Gutiérrez enfrenta esse caos. Conta sempre a história do adolescente ou do jovem que foi, brutal, intensamente impregnado por uma sexualidade que não reconhece limites, e sedento de uma liberdade que o lança, ao mesmo tempo, no desrespeito pelas mulheres que lhe passam pela cama, amorosas, carentes e desejosas de um laço permanente (o qual, para ele, equivaleria sempre a uma tentativa de o domar e lhe impor a vida rotineira de um proletário, trabalhando na "fábrica de refrigerantes" ou "conduzindo um autocarro"), e pelo regime revolucionário de Fidel e de Che, em que ele desvenda a moral ascética e opressiva, ou as regras para o erigir do "homem novo", que restringem e recalcam as forças ocultas, a lava animal, a perigosidade do desejo, a inquietação, o horror a todas as formas de religiosidade.

Mas o narrador, esse Gutiérrez cujo nome, como no "Marcel" de Proust, coincide com o do autor do romance, desnudando-se impudicamente numa autobiografia mais vivida do que romanceada, não se confunde, evidentemente, com o "Fabián" do título. Estranhamente, Fabián é um outro tipo de marginal: devotado à música, que aprende, mas sabe que nunca tocará tão bem como a menina que se tornaria objecto do seu fascínio e da sua inveja, convidado a juntar-se a um grupo de entusiastas, mas ignorantes, músicos de rumbas e boleros, em casinos (tudo coisas que o castrismo virá a desencorajar: as rumbas, os boleros e, sobretudo, os casinos), homossexual apanhado flagrantemente em actos indecorosos, esta personagem que luta contra o caos do encontro com o desejo e a sexualidade, contra os preceitos e as expectativas de um pai violento e de uma mãe superprotectora, pareceria ilustrar um "desregulamento" situado na face oposta ao do narrador, e por isso, execrado pelo "macho" Gutiérrez. Mas, na verdade, não: porque o desejo e o erotismo, na sua ambiguidade, na sua informidade primitiva, tecem cumplicidades e alianças insuspeitadas. E o narrador, o outrora jovem macho aguerrido e egocentrista, revela uma sensibilidade, uma compreensão e uma empatia, quando narra a história de Fabián, que não temos dúvidas de que os únicos lados em luta são o dos oprimidos e o dos opressores. Seja a opressão em nome do que for, assuma o ser oprimido a forma que assumir. (Com excepção das mulheres, sempre duplamente oprimidas: pelo opressor e pelo próprio oprimido).

A autenticidade, em literatura, reside em grande parte na rara voz dos destituídos de tudo, os sem oportunidades, os vencidos da vida, que tiveram a sorte de intuir na escrita a forma de resgate e desafio ao destino.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

MANU LARCENET: O COMBATE QUOTIDIANO

 Para além do desenho, extremamente belo nos seus falsos simplicidade e desleixo, a obra-prima de Larcenet toca-nos pela narrativa quase autobiográfica, magoada, entre o choro e o riso. Eu diria que já esta combinação é nova em banda desenhada: se o autor quer contar uma história profunda, não apenas humorística, procura um desenho realista. "Maus", de Art Spiegelman, claro, era já a excepção. Não só as personagens são ratos, como as imagens, de uma simplicidade desconcertante, acertam primeiro, enganadoramente, na veia do humor. Parece desacertado para nos expor o passado dos judeus em campos de concentração, ou as cicatrizes de um pai que sofreu a dureza de haver sido uma vítima de Auschwitz e dificilmente conseguirá, depois, perdoar ao mundo ou abrir-se ao filho.




Neste Combate Quotidiano, é também o desenho risível, a caricatura, que se usa para se contar a vida de um obsessivo, como nós todos, entre a dificuldade de continuar o seu trabalho como fotógrafo de guerras e desastres, um pai em descida rápida para o esquecimento, um irmão com quem consegue protagonizar eufóricos regressos à infância, uma namorada cujo desejo de laço e permanência desperta todos os medos, um amigo recente a quem não sabe se consegue perdoar quem descobre ter sido no passado. Demasiadas feridas, um existencialismo angustiado de mais para se conseguir, a partir destes elementos, fazer humor. Na verdade, Larcenet consegue-o, como todos os que são capazes de rir de si, e de rir do sofrimento, sem o manipular ou superficializar.

É uma compreensão cristã, num sentido muito puro da palavra, não religioso, digamos, que está na raiz desta novela gráfica. A compreensão um pouco perplexa, torturada, mas que se quer tentar até onde possível, daqueles que não sentem nem pensam da mesma forma que nós,  tiveram passados inaceitáveis, ou fizeram escolhas morais e políticas que abominamos. Sob as diferenças, a humanidade. E mais do que apenas isso: o ter de compreender os motivos dos outros. Complexo, bem sei, e não isento de riscos; tenho a noção de que nem tudo pode ou deve ser perdoado (aliás, compreender não significa necessariamente aceitar); mas, aqui, nesta história maravilhosamente oferecida, neste livro, em nenhum momento se ilude a complexidade.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

RUI DE AZEVEDO TEIXEIRA: O LONGO BRAÇO DO PASSADO

 Não queria parecer preconceituoso, nem politicamente 'correcto'. Mas torna-se quase inevitável. 

Quando uma pessoa passa pela guerra, como militar comum, pode tornar-se um escritor carregado de histórias, para contar, de perda e camaradagem. Um profissional do Exército, porém, um indivíduo para quem a carreira militar seja uma condição, e a guerra, em última análise, um modo de vida mais do que a experiência de uma situação-limite, dificilmente virá a ser um grande escritor sobre guerra. Eis o meu preconceito.



Por outro lado, que dizer de um romance em que, constantemente, as personagens africanas são descritas pela cor, "o preto" ou, por exemplo, "preto, pretíssimo" [já para não referir as insistentes, cruas e confrangedoras referências ao "cheiro a catinga", valha-me Deus!]? Não me surpreende que, ao que parece, deste livro tenha escrito Manuel Alegre: "uma prosa enxuta, castigada e depurada, até um rigor de extrema eficácia", mas já me surpreende que Eugénio Lisboa, o qual, como crítico literário, considero muito mais do que Alegre, dissesse: "Um estilo enérgico e eminentemente sedutor".

Algumas das características da visão do narrador seriam perdoáveis se fosse, ele próprio, simultaneamente uma personagem [em linguagem técnica, um "narrador autodiegético", portanto] cujo perfil biográfico, ideológico, ou cujos preconceitos, se quisesse que o leitor fosse apreendendo. Mas não é o caso. Este narrador, que não sabe distanciar-se do seu protagonista, comungando, com ele, a "narrativa", passa, no entanto, por um olhar exterior, pela própria voz pura do romance. Não é exactamente o pequeno Marcel.

Rui de Azevedo Teixeira é um homem marcado pela guerra: toda a sua obra, na qual, se bem percebi, existia já um romance, consiste maioritariamente em ensaios e dissertações girando em torno do tema: A Guerra Colonial e o Romance PortuguêsA Guerra de Angola: 1961-1974, ou a biografia de Jaime Neves. Ora como lida com o género romanesco? Mal, diria eu. Há um entrar e sair de nomes de personagens que não se demoram, um excesso de frases entre aspas, incorporadas na narração [não constituindo, assim, a fala directa de uma personagem, num diálogo, por exemplo], como se se tratasse de citar - mas seguidas, ou não, de um "como dizia fulano", ou "como lhe chamava cicrano". Não vislumbro o que há de eminentemente sedutor neste estilo, e pergunto-me se as citações têm que ver com o "rigor" a que alude Manuel Alegre.

A passagem em que descreve, com uma naturalidade "enxuta", a tortura de um capitão Netista e o seu enterramento, "quase vivo", como acto justo de vingança, de que participa o protagonista, permanecerá, porventura, o ponto alto do mau-gosto. Perdão, de uma "prosa castigada e depurada, até um rigor de extrema eficácia."

domingo, 28 de agosto de 2022

PIERRE LEMAITRE: AU REVOIR LÀ-HAUT

 

Tendo ido passar uns dias em Paris, neste quente Agosto em que tudo são turistas e bichas, mas, ainda assim, nenhum mal é suficiente para diminuir a luz e a energia da cidade, aproveitei para procurar os livros que os franceses andam a ler. Via-os, de várias idades, sobretudo mulheres, mas também rapazes (e raparigas, bem entendido), provavelmente estudantes, no metropolitano, sentados ou de pé, com um livro na mão. Atentei em capas, semicerrei os olhos para perceber títulos, ou para descodificar o nome de autores.



Numa livraria, tropecei num romance de Pierre Lemaitre. Prémio Goncourt. Não se tratava de uma novidade, mas Lemaitre é um escritor de que gosto muito, culto e cruel, e este romance, que inspirou um filme (também premiado), situado no fim da I Guerra Mundial, sobre dois jovens desmobilizados que não conseguem readaptar-se (da sinopse: Car la France, qui glorifie ses morts, est impuissante à aider les survivants) atraiu-me deveras. 

O tempo e o lugar, o terrível pós-guerra em Paris, são a concentração de tragédias várias:
 
Enquanto se esperava [pelo reembolso integral dos estragos, por parte da Alemanha derrotada], o custo de vida não cessava de aumentar, as pensões ainda não haviam sido pagas, os prémios, atribuídos, os transportes [estavam] caóticos, as provisões, imprevisíveis, e portanto traficava-se, muita gente vivia de expedientes, intercambiando bons negócios, cada um conhecia alguém que conhecia mais alguém, passava-se, de um para outro, os endereços, [...]

Respira-se a influência de Proust, sobretudo na caracterizacão de Paris da época [a divisão onde, praticamente, habita M. Péricourt - não que necessitasse dessa circunscrição, uma vez que todos os andares do edifício lhe pertenciam - poderia ser o quarto em que Proust consumia o tempo a criar a sua obra], bem como a de Céline, na escrita crua sobre a guerra, o sofrimento, os poltrões, os salauds. Os poderosos, em suma, sejam os superiores hierárquicos no exército, sejam os podres de rico (que, paradoxalmente, a guerra tornara ainda mais ricos) na sociedade elegante do Jockey Club parisiense.

No meio de todas as personagens, entre as quais os protagonistas, Albert e Édouard, dois sobreviventes da guerra que querem apenas subsistir no dia-a-ia, ganha importância uma outra figura, bela e sinistra, de homem ambicioso e sem escrúpulos, proveniente de uma aristocracia arruinada, mas, por isso mesmo, de tudo capaz, desde o assassínio, ao casamento de conveniência, para fazer fortuna e reatar o lugar a que aspira na bela sociedade: Henri d'Aulnay-Pradelle.

Pradelle reaparece inesperada, implacável e constantemente. Se, por um lado, as suas "aparições" têm uma nota forçada (hesitei em acrescentar "amadora", a propósito do autor), como se Lemaitre recorresse em excesso à coincidência, por outro lado, essa espécie de poder ameaçador conferido a Pradelle, esse seu faro para achar continuamente o rasto das presas, e para estar, como uma sombra temível, sempre no caminho de Albert e Édouard, faz, dele, a figura que nos gela, o homem bonito, viril e mau, com o halo diabólico de um tenente Hans Landa, por exemplo, a que deu vida o genial Christopher Waltz em Sacanas sem Lei.

Mais do que tudo, Pierre Lemaitre é o grande mestre contemporâneo do controlo do tempo narrativo. Veloz ao apresentar uma sucessão de acontecimentos e de surpresas, para que, à semelhança dos romances policiais, que também escreveu, o leitor se sinta viciado, mantém-se, simultaneamente (e paradoxalmente), muito lento na preparação do momento esperado: se sabemos, pela sinopse, que Albert e Édouard,   "desafiando a sociedade, o Estado e a moral patriótica, imaginam um golpe de envergadura nacional, de uma audácia inaudita e de um cinismo absoluto", não adivinharemos nem seremos postos perante as premissas do "golpe" senão quando as condições estiverem reunidas para o compreendermos e acreditarmos nele. Assistiremos, então, ansiosos e com receio, à discussão (de dias) entre os dois amigos, o criativo e sonhador, e o realista e medroso, sobre a hipótese (e a imoralidade) de um tal conto do vigário, sempre com a esperança, de caminho, de uma vingança decisiva contra d'Aulney-Pradelle.

sábado, 13 de agosto de 2022

TATIANA SALEM LEVY: DOIS RIOS

 "Vim até Dois Rios para poder sair de Dois Rios, e ao mesmo tempo sinto a força que tenta me deter, o sonho persistente de que os dias voltem a ser o que eram: eu, uma menina, meu irmão ao meu lado."


Trago-o da Biblioteca, sem referências. Não conheço a autora, não ouvi falar do livro, o título não me atrai particularmente. É obscuro. Não fa


ço ideia da razão por que o escolhi.

Abro a capa verde, dura, da excelente Tinta-da-China (mas será ainda a mesma? e será realmente a editora quasi-marginal que, na minha imaginação, sobreviveu sem abdicar da qualidade?), inicio a leitura e, imediatamente, sinto-me a respirar o ar puro de um Português, bem escrito, de entoação brasileira, as frases a levar-me com elas de uma forma inebriante. Gosto tanto do Português do Brasil quando pela pena dos melhores, a correcção em que palpita uma flexibilidade impossível entre nós. Tatiana Salem Levy escreve muito bem. A sua escrita é uma contínua descoberta. Um breve exemplo, apenas: "Minha vontade de beijá-la de repente se tornou vontade de beijar o mundo inteiro, as crianças, os velhos, as prostitutas, as gordas, os sarados, as magras, o homem da barraquinha, o surfista, a mulher do sanduíche natural, o mar, a areia, as palmeiras, de sair voando e beijar os chilenos, os argentinos, os porto-riquenhos, os angolanos, os russos, os japoneses, as aves, os elefantes, o chão, a terra batida." Quanto saber e quanta arte no aparentemente gratuito desta enumeração. 



No Rio de Janeiro, onde a narradora da primeira parte do romance, que se chama Joana (é o seu nome e o nome dessa primeira parte) encontra e se deslumbra com Maria-Ange, tem a sua génese a luta entre duas esferas da realidade, quase diríamos entre duas realidades: a mãe obsessiva-compulsiva, silenciosa, incapaz de pisar as pedras brancas da calçada, abrindo e fechando vezes sem conta a porta, ou lavando, no duche, as mãos até as fazer sangrar, a ausência de um irmão que se dispôs a correr mundo, deixando-a com a mãe como se ela não estivesse realmente doente, ou como se fosse da responsabilidade da irmã, e um passado que a cerca e oprime, acumulando-se até desde antes de ela ter nascido; e a liberdade e o grão de loucura introduzidos pela presença de Marie-Ange, fazendo possível o que os anos e a rotina haviam tornado impossível, abrindo janelas numa vida de mulher solitária e cuidadora infeliz. Com a sua beleza feita de imperfeições (talvez os olhos assimétricos, a cicatriz de um transplante de coração...) animadas por uma luz e por uma alegria incontidas, Maria-Ange, como o nome indicia, é um anjo salvador. Metaforicamente, claro.

"Dois Rios" é o passado. Escrevi bem: não "representa" ou "significa", mas "é" esse passado nunca avaliado. A viagem, com Marie-Ange, à pequena povoação, sustentada pela colónia prisional onde o tio de Joana fora prisioneiro político, e viviam os avós maternos e a mãe dela (esse avô, precisamente um dos guardas prisionais), entrelaça as duas esferas e os dois tempos da sua realidade. A amante francesa pressente, mas não compreende inteiramente o significado de Dois Rios e de seus habitantes, impregnados de memórias profundas: as férias de Joana e de Antonio, em casa dos avós, a morte do pai, a mãe tornando, em lágrimas, para os buscar, o afastamento de Antonio, o progresso das obsessões de Aparecida. [Na verdade, perceberemos que Marie-Ange sabe  sobre tudo, mais do que julgávamos, mas fiquemo-nos por aqui].

A segunda parte do romance, que tem por título Antonio, tem como narrador o irmão de Joana e, como objecto, a sua versão do passado, ao mesmo tempo que a história do seu amor pela mesma Marie-Ange, noutro lugar e muito tempo antes de ela ter viajado ao Brasil e conhecido Joana.

A forma como, no todo destas duas partes, contrastam e se contradizem a visão de Joana, e a de Antonio, sobre os factos, mostra que, na tentativa de os recontar, cada um deles inventa e omite. E, contudo, nós, leitores, percebemos a verdade, através desse choque de interpretações e de mentiras. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

KATHERINE FAULKNER: GREENWICH PARK

 É a estrutura, ainda antes de acabarmos de ler o livro e a dominarmos, portanto, completamente, mas à medida que, capítulo após capítulo, a vamos intuindo (primeiro) e compreendendo (aos poucos), o que começa por nos chamar a atenção. Sentimo-nos orientados, seguros. Sob a dispersão de elementos (uma carta, não sabemos de quem, ou para quem, nem sequer referindo-se exactamente a quê; ou diferentes pontos de vista de personagens diversas, como se, sob o nome de cada uma, a abrir um "seu" capítulo, fôssemos ler uma parte da narrativa escrita por ela; ou breves momentos, sem contexto, como relâmpagos, que não sabemos o que nos indicam ou prenunciam), adivinhamos um alicerce forte, um fio inquebrável, um plano que se vai provando e, a seu tempo, se desvendará inteiramente.



Por outro lado, a escrita, propriamente dita, impõe-se: o poder de observação e de descrição ilumina situações corriqueiras, comuns, gestos, pensamentos, e quem leu a minha crítica anterior lembrar-se-á de que sou sensível aos autores atentos a detalhes dos comportamentos. Surpreende que uma técnica já tão apurada se dê a ver numa autora muito jovem, em luta com o primeiro romance.

É um pouco mais do que um policial para ocupar dias de férias, e muito menos do que uma obra inesquecível. Alguns clichés, apesar de tudo,


distanciam  bastante  Katherine Faulkner de uma Donna Tart, que, para mim, em matéria de policial contemporâneo continua sendo o nec plus ultra. Seja como for, o modo como se nos convida, aqui, a penetrar na experiência da gravidez de três personagens, as cunhadas e uma misteriosa intrusa, e nas vidas de cada uma das duas primeiras, com os seus maridos, ou convivendo entre si (uma vez que a terceira será, por muito tempo, uma jovem obscura e estranha, sobre quem julgamos, apenas, imaginar a motivação e os motivos), é muito bem urdido. O tempo em que a narrativa vai sendo medida é, aliás, em semanas, o da gravidez de Helen, a narradora principal. Instalamo-nos, pois, com as famílias, no seio dos seus sonhos e expectativas, enquanto, com alguma apreensão, reparamos em subtis linhas de fractura, talvez segredos inquietantes, pequeníssimas nódoas, capazes, porém, de alastrar até à catástrofe.

É também, em dado passo, um romance sobre a invasão do nosso espaço, quando mais precisamos de o preservar e nos resguardar, por quem não tem o cuidado ou a preocupação do pudor e da discrição. A invasão perante a qual, no entanto, a nossa solidariedade e a nossa piedade (que, neste caso, serão, talvez, dois nomes para a cobardia) nos deixam impotentes. É uma descrição com o condão de nos irritar.
A leitura é nervosa, urgente. Com aquela pimenta de muitas explicações serem possíveis (serão as suspeitas que Helen tem sobre Rachel justas? será, antes, Helen louca, como alguns indícios sugerem?). Queremos saber mais, mais rapidamente, impacientamo-nos. É um thriller psicológico, chamam-lhe eles. Pois.

sábado, 6 de agosto de 2022

ANDRÉ GIDE: AS CAVES DO VATICANO

 Já pensava, sempre pensei, aliás, desde que pela primeira vez o li, que André Gide é o mestre da elipse. Seguimos uma sua história com interesse e prazer, mas necessitando da concentração que, se se descontrai, leva a incompreender, por um instante, uma sequência que Gide não quis nem precisou de tornar explícita.

Um outro aspecto que este romance revela é a atenção do autor a gestos e pormenores do quotidiano, que utiliza tão bem: uma maneira de sentar, uma expressão conseguida com as sobrancelhas, a descrição de quase nada que introduz, na narração, uma vivacidade encantadora.



O modo como Nietzsche, seguramente, e talvez Dostoievski, o marcaram, fá-lo elevar personagens pouco menos do que comuns, a caracteres que, em situações-limite, se mostram de uma inesperada profundidade trágica. Algum desconforto relativamente à existência, que os morde por dentro e os torna conscientes da sua inautenticidade, provoca-lhes súbitas angústias e sobressaltos de liberdade.

O título deste romance, hoje, parece deslocado. Vejam ao que o associam: As Caves do Vaticano. Não remete para um tipo de livros que se tornaram, entretanto, populares, sobre os pecados e os segredos da organização de que o Papa é o líder? Na verdade, é a história de famílias unidas por casamentos, de um filho bastardo, desconhecido, até então, dos meios-irmãos, e de um grupo de crápulas que concebe o extraordinário plano de convencer alguns inocentes de que o Papa fora raptado, aprisionado e substituído por um falso Papa, de modo que haveria que juntar dinheiro para resgatar o legítimo. Constaria, do que se propala sobre o rapto, a conspiração de lojas maçónicas e assistimos, ao longo da narrativa, a conversões inesperadas, amores impossíveis e o frente-a-frente de um protagonista com a liberdade absoluta, sob a forma da possibilidade do mal gratuito.



Alguma coisa no movimento deste romance tem uma dimensão cândida e improvável, como numa aventura de Arsène Lupin. Típico de um romantismo de época, se nos lembrarmos de que As Caves do Vaticano foi publicado em 1914. Mas a escrita, clássica e muito bela, é de uma força que resgata de certas imperfeições. Proust escreveu a Gide: Por fim, li o seu romance com paixão. É verdadeiramente uma Criação, no sentido genesíaco de Miguel Ângeli; o Criador está ausente, é ele quem tudo faz, e não é uma das criaturas. Vejo-o a determinar as idas e vindas de Fleurissoire como o Deus colérico da Capela Sistina a fixar a Lua no Céu.

Se Proust o diz...

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

DBC PIERRE: VERNON LITTLE, O BODE EXPIATÓRIO

 "Ela dá uma espécie de gargalhada irónica; só pode ser irónico quando se dá uma gargalhada e se soluça ao mesmo tempo."


A primeira coisa que podemos dizer acerca deste romance é que se trata do retrato, cheio de um ácido sentido de humor, de uma certa América. Por "uma certa América" entendemos, é claro, a daquelas cidades texanas, junto à fronteira com o México, que conhecemos sobretudo do cinema: pessoas que se conhecem e interferem na vida umas das outras, mulheres, frustradas, de tipos sem horizonte, homens que bebem porque a vida é insuportável, batem nas esposas ou abandonam-nas, uma dada família cujos membros estão em todos os postos, da polícia à Câmara, charlatães de segunda classe e, claro, adolescentes que se interessam demasiado cedo por armas, ou escolas onde ocorrem massacres porque um desses jovens se fartou de ser vítima e, além disso, tem uma espingarda ou uma pistola à mão de semear.

A tragédia permite um tipo de humor que corta como faca. Sucede quando e porque há um desencontro entre a grandeza dos acontecimentos terríveis e a ridícula pequenez e incompreensão da cruel sublimidade do destino, por parte dos que o sofrem. É, ao contrário da tragédia grega, aquilo a que chamamos tragicomédia. Não é um humor para todos os estômagos, mas DBC Pierra executa-o com mão de mestre. A personagem principal, o Vernon Little do título, que é também o narrador, lembra imediatamente Holden Caulfield, de The Catcher in the Rye, do genial Salinger: a mesma linguagem desbragada, a mesma inteligência arguta, uma idêntica sensibilidade, que se esconde no tom trocista, e a mesma incapacidade de se entender com um mundo


adulto, que o não compreende e persegue.

Na verdade, neste caso, persegue, de facto, não se trata de paranóia juvenil. Vernon Little serve como bode expiatório de um massacre perpetrado, na escola, pelo seu amigo, Jesus, que se suicidará de seguida. O povoado está inconsolável, mas aos familiares enlutados dos jovens mortos, parece quase insuportável que se não possa castigar alguém. Resta Vernon, cuja amizade com Jesus o eleva a potencial cúmplice. 

E assim, aos 15 anos, Vernon Little, objecto do jogo de gente que o leitor não esquecerá, como a própria mãe, neurasténica, o homem que se faz passar por jornalista, ansioso por aproveitar a história de, como apresenta a sinopse, "um adolescente com um talento especial para estar no sítio errado à hora certa", tudo fará para escapar ao destino que se lhe impõe. 

Primeiro romance publicado por DBC Pierre, esta estreia literária viria a ser distinguida, por unanimidade, com o Booker Prize (2003). 


sexta-feira, 29 de julho de 2022

GEORGE SAND: ELA E ELE

 

A primeira denúncia que tenho de fazer, com nome escarrapachado e tudo, é do Português da tradutora, Inês Pedrosa, intelectual mais ou menos consagrada, com um curriculum em que avulta a direcção da Casa Fernando Pessoa, e que, não obstante, não sabe como se escreve o plural da palavra "carácter". A exibição impudica do erro ocorre mais vezes do que aquelas que poderiam justificar haver-se tratado de um lapso. Pode parecer pequena coisa, mas, precisamente, numa pessoa com créditos, é inaceitável.


A
autora de Ela e Ele é George Sand. Num prefácio perspicaz, Henry James chama a atenção para a fragilidade que separa, muitas vezes, a realidade e a ficção. Neste romance, Thérèse Jacques e Laurent de Fauvel são os nomes de personagens que replicam, aparentemente com excessiva exactidão, respectivamente George Sand, aliás Aurore Dupin, e Alfred de Musset, e a paixão que vivem, tumultuosa e arrebatada, constitui a narração do amor escandalosa e insanamente sofrido por estas personalidades reais. Mesmo a correspondência apresentada ao longo da história é, ao que julgo, o conjunto de cartas que com efeito Sand e Musset trocaram nos momentos de maior raiva ou de maior ternura.

O ponto de vista da narradora, claramente, é a de Thérèse. Nunca o de Laurent ou o de Palmer, esse terceiro elemento de um instável triângulo. Chega a ser espantosa a confirmação da alta conta em que se tem a maturidade, a ponderação, a superioridade enfim, da mulher. O seu amor é virtuoso, generoso, carregado da dose adequada de uma maternal doçura, que tudo perdoa. A paixão de Laurent é egoísta e infantil. Imatura. Não dito, mas pressentidamente: de homem.

Mesmo Palmer, menos jovem, mais experiente e sábio, é, apesar de tudo, alguém que se engana na avaliação que faz de si próprio. É homem: "[...] muitos homens que têm a aspiração e a ilusão da força possuem apenas energia, e Palmer era daqueles sobre os quais podemos enganar-nos durante muito tempo."

A posição de George Sand torna-se, pois, ambígua: se há e houve sempre na sua filosofia subjacente a valorização da esfera do masculino, da camaradagem e da amizade entre homens, como atestam, desde logo, a escolha do célebre pseudónimo, ou a insistência, da parte da personagem Thérèse Jacques, em que o que procura em Laurent de Fauvel é ser seu amigo (isto antes de se começar a pensar em amor), não sua amiga, todavia o espírito e o amor femininos, contendo, aparentemente, a capacidade infinita para se dar e para sofrer, é o que o romance verdadeiramente enaltece.

Podemos sempre perguntar-nos se a autora, ou a narradora, ou a personagem, se não se equivocam. Se na sua avaliação do amor de Thérèse, a distinção entre a parte de mãe e a parte de amante é tão clara e distinta como ela crê, ou quer crer, ou quer fazer crer. Se em algum tempo transitou, de facto, de um amor erótico, para um amor piedoso, quando afirma que deixou de desejar Laurent, e visa apenas ajudá-lo, como a um filho. Sem ressentimento, mas também sem ardor erótico. [E Palmer, com quem deveria casar-se, que entendesse que não se expressava, nesta "ajuda", nenhuma infidelidade].

Digamos que a estrutura narrativa está muito bem construída, apesar dos pontos mortos introduzidos pelas longas epístolas; que a reunião de ingredientes para suscitar os mal-entendidos está muito bem arquitectada (um exemplo: Palmer não tinha como não pensar que Thérèse embarcara com o seu amante, uma vez que ela, preocupada com o  estado de saúde de Laurent, o levara efectivamente ao barco; o acompanhara, a bordo, durante a tarde, e não regressara com o marinheiro que Palmer esperava, uma vez que esse se embebedara, nem para o local combinado, porque Thérèse gastara todo o seu dinheiro, e não podia dirigir-se para aí).

E a trama está, realmente, tão bem planeada, que, a partir de certo momento, nos interrogamos contínua, apreensiva e obcecadamente, se Thérèse Jacques cometerá o erro de voltar para Laurent de Fauvel.

sábado, 16 de julho de 2022

FERNANDO ARAMBURU: O REGRESSO DOS ANDORINHÕES

 É inevitável, se conhecemos bem a obra de uma Virginia Woolf ou de uma Elena Ferrante (e, para a conclusão, basta-me referir estes dois exemplos), reconhecermos que o romance tem género. Mesmo que não tivéssemos informação sobre se estávamos a ler um texto escrito por um homem ou por uma mulher, e independentemente do sexo do/a narrador(a), a intuição revelar-se-ia certeira. Há uma sensibilidade inconfundível, um olhar, uma maneira de valorar, e a importância de problemas a que subjazem já escolhas emocionais. Quando se aventou a hipótese de que, sob o nome "Elena Ferrante", que ninguém sabia realmente quem fosse, podia ocultar-se um escritor, um homem, eu sorri interiormente, sentindo o maior dos desprezos pelos inventores da suposição. 



Do mesmo modo, existe uma escrita masculina, talvez mais difícil de 


detectar enquanto tal, porque, em geral, foram sempre os homens a impor o padrão, e um modo de ver ou narrar passaram, nas suas características típicas masculinas, por "universais". Enquanto a consciência de uma autora foi sempre uma excepção que se deixava ver, a consciência de um autor disfarçava-se melhor e a sua voz soava como normal

Olhemos para O Regresso dos Andarinhões abstraindo, por um instante, de qualquer dimensão histórica ou política. Sem nos determos numa avaliação ética do conteúdo, esquecendo que a norma é, hoje, a do politicamente correcto, de tal forma que a grelha masculina deveio excepcional e, de alguma forma, "errada" (a ponto de se ter tornado quase inaceitável escrever-se como um homem), este é, contudo, o romance de um homem até à medula. As emoções, a interpretação dos factos ou dos conflitos, a tristeza, são as de um homem. O desamparo também. E se um leitor do sexo masculino, como eu, consegue compreendê-lo até à identificação (ainda que mantendo um distanciamento ideológico, e julgando-o, racionalmente, pelo seu egoísmo ou pela sua incapacidade de comunicação), uma leitora verá, provavelmente, apenas um bruto: um incapaz de lidar com o novo poder das mulheres. 



Estou a simplificar, evidentemente. A apreciação assumida por uma autora e uma psicóloga como Ana Cristina Silva mostra-o. Mas é um romance que pede esse acompanhamento psicológico, complexo, subtil, sem maniqueísmos, nem a busca de distrinça entre os verdugos e as subjugadas. Uma leitura não ideológica, de facto: tão só compreensiva (de tudo, de todos, de todas) e compassiva.

Já no extraordinário Pátria era precisamente isto que me fascinava: todos têm voz, e as vozes, mais ou menos condicionadas, opostas, exprimem o seu sentido e o sentimento que as justifica. Aqui, claro, menos: o ponto de vista é o do narrador, e é ele que fala sobre, e julga, as outras personagens. É o ponto de vista de um homem que não fez as pazes com o pai, critica a mãe, embora se apiede da sua condição, não suporta o irmão, ama e odeia a mulher com quem deixou de se entender, e de quem se divorciou, procura manter com o filho "estranho" uma relação de camaradagem e decidiu que se suicidará antes de um ano volvido sobre o início da escrita destas notas. É um professor de filosofia do ensino secundário (como não me identificaria com tal narrador?), amargurado, falhado, infeliz. Mas percebemos que as suas razões e argumentos são frágeis e pessimistas. Se a palavra anti-herói se aplicar, há-de aqui servir mais do que nunca ou do que em qualquer outro lugar. É um romance sobre o homem como esfera de perda de poder, e como fracasso.

sábado, 9 de julho de 2022

KEN FOLLETT: O BURACO DA AGULHA

 Principio por uma citação aparentemente anódina:

"O vento e a água continuavam na sua eterna disputa, o vento descendo para provocar as ondas e o mar chiando e cuspindo ao chocar contra a terra, os dois condenados a lutar para  sempre porque um não podia ficar calmo enquanto o outro estivesse ali, mas nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."

Não escolho este trecho apenas porque constitui uma descrição muito bem escrita, nem por causa do animismo romântico que, atribuindo emoções e intenção às forças cegas da natureza, introduz uma profundidade e uma tensão dramáticas na visão que o leitor tem da ilha em que um casal vive a sua recuperação, após um acidente, mas porque, implícita e subtilmente, a eterna luta entre o vento e a água reflecte, expõe (e explica, mais do que o narrador quereria ou deveria fazer sem se tornar excessivo) o estado de espírito que impregna a relação entre Lucy e David Rose. Chocam porque a frustração é terrível, porque são duas pessoas cujos sonhos se desagregaram e porque, na ilha agreste, não podem amar-se, mas também não podem separar-se: "nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."



Este é o primeiro romance - o primeiro romance a sério, excluindo novelas de aventuras e guiões - de um Autor que viria a ser bem conhecido, Ken Follett. Por que razão, perguntava-me alguém, um "primeiro romance" não pode ser já uma obra-prima? Por que esperamos, de um começo, as falhas e incompetências do autor estreante, cuja qualidade apenas a escrita posterior poderia resgatar? Não sei. Mas, no caso concreto, porque este primeiro romance, apesar de algum sucesso na época, desapareceu sem quase deixar rasto, recalcado pela produção de obras tão marcantes como Os Pilares da Terra.

Escrito na década de 70, O Buraco da Agulha revisita os anos 40 (o início de 1944) e, no ambiente de guerra, retoma as dificuldades, os medos e as esperanças de personagens que, lendo hoje, resistem absolutamente como personagens, psicologicamente profundas, vivas, verosímeis e interessantes. O próprio Follett, num prefácio em que se debruça sobre o romance, décadas volvidas após a sua primeira edição (como ele gosta de fazer), lembra que haver tomado como protagonista uma mulher, Lucy Rose, era, então, desconcertantemente novo. O frente-a-frente entre essa mulher desamada, e Faber, o implacável ("poderoso", escreverá Follett) e tenebroso espião ao serviço dos alemães, é um imprevisível e fortíssimo motor de suspense.

Mas, sobretudo, o modo de narrar revela já uma perícia extraordinária: diferentes situações e personagens que vão surgindo paralelamente, sobre um fio invisível que se prepara para os confrontar, numa estrutura muito bem conseguida, que nos mantém apreensivos e cativos.

E no cerne desta intriga de guerra e espionagem, um facto histórico extraordinário: "uma farsa gigantesca, meticulosa, cara e ultrajante". A encenação da reunião de forças, armas e aquartelamentos, em pontos determinados de Inglaterra, de modo a levar os alemães a pensar que era a partir dessas zonas e, portanto, numa certa direcção que se preparava a invasão, mantendo secretas as verdadeiras movimentações, muito longe dali. Cenários em contraplacado, aviões ou tanques que não eram mais do que uma espécie de carros alegóricos, expostos para ser vistos do ar e induzir em erro, isto é, fazer o inimigo crer que o desembarque, no continente,dos aliados, seria em Calais, e não na Normandia.

sábado, 11 de junho de 2022

ALEXANDRE DUMAS: OS TRÊS MOSQUETEIROS

 

Não me ficaria bem assumir que nunca havia lido Os Três Mosqueteiros. Aliás, de facto li-o, em jovem. Tal como as aventuras de Júlio Verne, ou as de Enid Blyton, Dumas terá sido um autor ao largo do qual não passei. Mas isso sucedeu em outra vida, em outro mundo. Curiosamente, o que me redespertou a curiosidade e levou, agora, ao regresso ao D'artagnan, ao Athos, ao Porthos, ao Aramis, à cortês inimizade entre o rei e o cardeal, à terrível cicatriz de Rochefort ou à perfídia da escultural Milady, foi um romance contemporâneo, cujo título português não lembro, mas se chamava, no original, Clube Dumas (Pérez-Reverte; e, entretanto, um filme com Johnny Depp, que também vi).



À medida que o relia, entremeando com intervalos longe dele, sem lhe tocar, para o retomar meses depois, a maior parte das cenas parecia-me familiar, e esse retorno ao leitor que fui na adolescência, como sabemos, vem sempre tingido de uma alegria contida, do bem-estar do reencontro com um amigo que perdemos de vista. A troça que os parisienses faziam do Gascão chegando, cheio de sonhos, montado numa pileca, as suas irritações e desafios, as estalagens onde pernoitavam, as amantes, as bebedeiras, os duelos. Mas se a minha visão coincidia com a que o autor, muito provavelmente, desejaria que fosse a do seu leitor identificando-se com aqueles rapazes corajosos, bem-dispostos e capazes de tudo pelos amigos, devo dizer que os meus olhos mudaram muito, muito e, sob a ingenuidade folhetinesca, vêem agora personagens com que já não conseguem simpatizar.

Dumas é o primeiro a sublinhar o incómodo, e mais de uma vez o faz. Recordo, entre outras, aquela passagem em que adverte para que podemos escandalizar-nos com o comportamento de uma certa personagem, acrescentando imediatamente que não seria justo avaliar, segundo os critérios do tempo em que vivemos, costumes que eram comuns na época que está a ser descrita. Não poderia estar mais de acordo, em princípio. Mas sabem a que propósito vem o comentário? De que Porthos seduzira uma mulher muito mais velha, a Sra. Coquenard; lhe escreveu cartas, exortando-a a que lhe pagasse as dívidas na estalagem; ou, mais tarde, a que lhe oferecesse a quantia para se equipar como mosqueteiro - ameaçando-a de lhe retirar o amor, comparando a avareza e a mesquinhez dela, que hesitava, com o que outras mulheres não deixariam de fazer por si, excitando-lhe o ciúme. Dir-me-ão: o moralismo é sempre uma má lente na análise da literatura. Sem dúvida. Mas o de Porthos é um exemplo da altivez e do desrespeito face às mulheres ou aos criados que aqui se toma como normal e modelar.

D'artagnan não pensa duas vezes em fazer a corte à mulher do seu senhorio - que, nem de propósito (tão conveniente!), descobrirá, depois, tratar-se de um tratante e de um vendido; nem pensa duas vezes ao cultivar a paixão, por si, da criadinha de Milady, como forma de se aproximar da sua inimiga. Mesmo o modo como enganará Milady, passando, na obscuridade, pelo seu amante, e fazendo sexo com ela, tem qualquer coisa de vil.

Não me choca que Os Três Mosqueteiros se desvende, quando lido na maturidade, como uma trama de arrivismos, arrogância, desprezo pela vida, vingança, falta de escrúpulos, má-fé. Aflige apenas que não se trate tanto de compreender a verdade das pessoas no seu ser íntimo e contraditório, ou de as analisar na sua complexidade psicológica, mas de criar um ideal romântico. O romance é extremamente maniqueísta: separa os bons, ao serviço do rei, dos maus, fiéis ao perverso cardeal. Acontece que não gostaria de ter aqueles "bons" por amigos meus.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

IRENE VALLEJO: O SILVO DO ARQUEIRO

 

Antes de mais, hei-de confessar que aprecio imenso Irene Vallejo e o seu modo subtil de conjugar a leveza do entretenimento e o peso do saber, em obras onde a História (por exemplo a do nascimento do livro e da invenção da sede pela leitura) se nos oferece narrada através de uma multiplicidade de histórias muito vivas e saborosas, sobre imperadores que não sabiam ler (mas haviam desenvolvido um fascínio por livros, e mandavam buscá-los, reunindo-os), guerreiros, sábios, escritores e leitores vários, que transformaram o conceito e o objecto, ao longo de séculos, nestes volumes simples e manuseáveis, que transportamos connosco e nos possibilitam o mergulho em outros mundos.                                                                               

 O Silvo do Arqueiro é um romance da autora. Comprei-o com certa ansiedade, principiei a lê-lo com um interesse que, estranhamente, contudo, parecia ir esmorecendo até à desistência, vá-se lá perceber por que ocorrem estas falhas de comunicação, até que, em dado momento, inesperadamente, a chama reacendeu, o interesse brilhou, percebi que o problema devia ter sido meu e do momento da minha vida em que iniciara a leitura, pelo que voltei ao princípio, cheio de fome.


Alguma coisa no romance é originalíssima. Diferentes personagens vão narrando a sua parte de uma história complexa, com diversas correntes, e não, não seria a mencionada pluralidade de olhares, em si mesma, a novidade. Embora, aqui, o mecanismo que a estrutura funcione magistralmente: refiro como particularmente tocante a mudança de perspectiva, como se se passasse, até, de um elemento para outro, quando Eneias primeiro, Elisa, depois, ignorantes do que o outro escrevera, ou pensara, contam o mesmo acontecimento: a forma como, escapando ao combate contra os nómadas que os haviam emboscado, e secretamente guiados pelo deus Eros (cuja presença Elisa pressente, sem ver), se abrigam da tempestade numa gruta, se aproximam um do outro, e se amam. Nas narrações, diversas, do mesmo acto, que extraordinária transformação de olhar e de sentimentos - do desejo de Eneias, do seu orgulho por ter salvado Elisa, da ambição de sentir-se amado por quem o faça esquecer a esposa que o traíra, para o receio, dela, de que, ao despi-la, o homem descubra as imperfeições físicas da mulher já não jovem, já madura, para o seu desejo delicado, terno, medroso e, por fim,  para a sua entrega. Entrega, mas com a liberdade de uma escolha, e a consciência de que o será, ainda que contra tudo e todos.

A originalidade reside, no entanto, em outro aspecto: que neste universo, aos deuses seja concedida realidade. Eros, já indicado, tem o lugar de um dos protagonistas e um dos narradores, como Eneias, Elisa [Dido], Ana; (também Vergílio surgirá, personagem de um outro tempo, mas com outro estatuto, e a quem só muito mais tarde leremos/ouviremos a fala na primeira pessoa).

Ora, embora, como escrevi, haja deuses que atravessam dimensões para interferir na vida dos humanos, eles apercebem-se de que as histórias que os homens e as mulheres contam, as suas versões dos acontecimentos, são sempre inflaccionadas, tendem ao mito: Eros observa-o, com alguma ironia e uma ponta de inveja. Eles não conseguem ater-se aos factos, nem compreender as causas reais: imaginam que os move o amor, ou a virtude, ou outros sentimentos e desideratos sublimes. O Bem e o Belo, nunca a economia, as riquezas, o comércio, o território. Que fantásticos ficcionistas, sublinhará o deus.

É essa mistura entre o mitológico e a desconstrução do mito como ilusão e falsa narrativa, reveladora, porém, da criatividade humana, o que torna este romance um paradoxal mito que lê, elogia e supera a experiência mitológica.

A escrita de IV mantém uma aura poética e retórica felizes, muito bela, que se adequa ao discurso do troiano, da rainha de Cartago, da vidente ou mesmo do deus. Remeto para um único exemplo, este: "Acaricia a superfície da água, movendo as escamas de sol" e, seguríssimo de os ter impressionado, nada mais acrescento sobre o assunto.

sábado, 4 de junho de 2022

LEONARDO PADURA: COMO POEIRA AO VENTO

 O romance, é claro, foi mudando de vestuário, à medida que diferentes equilíbrios sociais dele exigiam, ao longo dos séculos, objectivos que já não coincidiam com os do seu início, e uma nova classe, chamemos-lhe assim, de intelectuais consolidados e respeitados, o usavava como um laboratório de experiências, com a linguagem, com a forma de narrar, com o tempo, o espaço, as vozes. 

Alguma coisa se ganhou: a consciência do seu papel, o conhecimento da sua história, sem o qual as inovações não seriam possíveis, uma plasticidade que abria portas e criava caminhos. E, como sempre, alguma coisa se perdeu: talvez um fôlego, a visão omnisciente de um narrador invisível, a qual, com todos os defeitos, permitia a estrutura que tudo ligava e, em última análise, que o leitor seguisse variados desenvolvimentos de personagens, histórica e psicologicamente, em tempos e em espaços não coincidentes. O auge desse maneira de contar, intensa e de largo espectro, foi alcançado pelos russos do século XIX. Teve, depois, um fulgor genial e quase incompreensível em Proust. E, com raras excepções (Musil, Mann, para referir duas, evidentes), saiu de cena.



Leonardo Padura, autor cubano, tornado conhecido por ser o criador do detective Mario Conde, numa série de policiais de um realismo tocante, no cenário de uma Havana imbuída de pobreza, amizade e alegria, é um dos escritores contemporâneos capazes de ressuscitar o romance complexo de que vos falava, acompanhando a história de uma época, da revolução, melhor, das revoluções, dos desequilíbrios e reequilíbrios dos anos 40,  50, 60, 70, em suma, do século XX e, neste caso concreto, da sua viragem para o XXI. Já assim fora em O Homem que Gostava de Cães, onde passa em revista o centro do século, a partir de Trotski e Mercador (portanto da Rússia soviética sob Staline e da Espanha na Guerra Civil, e da Europa, ou dos comunistas e, de algum modo, todos os outros, na forma como se definiam sempre relativamente ao comunismo e à URSS). Volta a sê-lo com o impressionante Como Poeira ao Vento.

Também a forma, escorreita, cumpre o modelo do grande romance burguês, no sentido estritamente histórico da palavra: nem uma grande ousadia no uso da linguagem, preferindo-se a eficácia contida para o contar límpido de uma história, nem sobressaltos na estrutura.

Neste romance monumental, em que nos movemos com dificuldade em suspender por um instante a leitura, somos apresentados a Adela, uma nova iorquina de ascendência cubana e argentina (pelo menos é o que ela pensa, trata-se do que lhe contaram), com uma relação mais difícil com a mãe do que com o pai, e que travara, entretanto, conhecimento com um recente refugiado de Cuba, um balsero.

Numa fotografia que Marcos lhe mostra, em que lhe sorri da infância cubana, com os pais e os amigos deles, Adela identifica a sua própria mãe, grávida. Que história secreta, que passado inconfessado, ou simplesmente por contar, encerra essa fotografia, e de que modo explicaria a frieza da mãe em aceitar a paixão e a vida em comum de Adela e Marcos?

A descoberta da fotografia e da questão, ou questões, a que ela obriga, são o mote para um regresso ao passado e à biografia daquele grupo, das suas relações fortes e tempestuosas, da sua situação relativamente ao regime cubano, as suas dúvidas, os seus receios, as experiências traumáticas, o exílio de quase todos eles. É, como dirá Padura em uma entrevista, a história de uma geração, a sua geração. 

A história complexa, tortuosa e torturada, política e cultural, de um país e de um grupo de pessoas que representam a encruzilhada entre a aceitação de uma revolução, que prometia um mundo melhor, e a consciência das perseguições e do controlo. 

domingo, 22 de maio de 2022

ANDRÉ FRANQUIN: DA IMAGINAÇÃO


 Já me conformei com a descoberta relativamente tardia de que nem todas as pessoas gostam de BD. Intrigava-me que os leitores de romance e os apreciadores de pintura não vissem, na banda desenhada, a feliz reunião de ambas as formas, ou seja, a arte de tecer uma narrativa através da ilustração. Quadros: os quadrinhos, que seguimos para compreender o fio dos acontecimentos. Depois, fui percebendo. Nada é assim tão simples. A BD é também uma linguagem, com as suas convenções e exigências: os balões podem desconcentrar, a linha narrativa pode perder-se. Texto em cima dos desenhos não é necessariamente convidativo.

Para quem cresceu, desde antes de aprender a ler, extasiando-se com a colecção de Cavaleiro Andante do irmão, que eu sabia muito bem onde estava escondida (de mim); para quem descobria na casa das primas os comic da Marvel, ou as versões brasileiras "dos Patinhas", a Luluzinha e o Bolinha, o Super-Homem e o Batman; para quem entrou, em silenciosa euforia, no universo do Tintim e, muito depois, no de Astérix; para quem gastou literalmente as páginas de A Marca Amarela e teve a sorte de ser contemporâneo da génese, em Portugal, da maravilhosa revista Tintim, onde se reuniam, por obra e graça de Vasco Granja e Dinis Machado, as personagens originais de três revistas diferentes (a Tintin e a Spirou, belgas, e a Pilote, francesa), parece sempre de lamentar que haja pessoas a quem a singularidade preciosa das histórias em quadrinhos possa ter passado ao lado.



Curiosamente, conheci pouco e mal, na adolescência, o prolífico autor de que decidi falar hoje. Conheci pouco, conheci mal, mas, como dizer?, já poderoso no modo como me tocava, de longe: nessa ausência de familiaridade, formava-se uma célula de espanto e de fascínio, como a propósito de um país que nunca verdadeiramente visitámos, e de que, todavia, nos chegam fotografias ou notícias que nos fazem estremecer.

Eu conto: milénios antes das Fnac, havia, na então cidade de Lourenço Marques, uma livraria de grata memória, que era a "cooperativa". A Coop. Lembro-me deste nome, não saberia hoje dizer-vos de que cooperativa se tratava. Mas sob a loja, acoitava-se uma cave, uma ampla sala onde nos sentávamos a ler, como se estivéssemos numa biblioteca. E aí me deparei com, e vi/li muitos álbuns da revista Spirou - álbuns que encadernavam bastantes números do semanário - em que achei o delirante Gaston Lagaffe. Tudo na personagem e nos gags me enchia as medidas: eram histórias curtas, de uma prancha  (publicadas à razão de uma por número semanal), concluindo numa piada que me fazia realmente rir. O traço impunha-se pela sua diferença e originalidade, o mais afastado possível da "linha clara" (Tintim, Blake e Mortimer, Alix) em que eu fora educado: em Gaston havia um ruído gráfico deliberado, que exprimia, em desenho, uma desordenação criativa e plena de humor, reproduzindo as características de personalidade daquela personagem.

Já estava em Portugal, e não seria certamente um adolescente, quando soube que Franquin, nos anos 50, tinha recebido a missão de continuar as aventuras de Spirou, de que eu não era íntimo, apesar de as folhear na tal cooperativa, e lhe acrescentara algumas das personagens mais mirabolantes: o próprio Fantasio, companheiro inseparável do jovem paquete, a astuciosa e competitiva Seccotine, repórter de O Mosquito, rival de Fantasio, sua amiga e inimiga, o Conde de Champignac, ou o genial Marsupilami, animal de uma espécie desconhecida, com uma cauda longa e multiusos, mais uma plêiade de secundários hilariantes, como o Presidente da Câmara de Champignac (e, bem entendido, o delicioso ridículo dos seus discursos) e vilões inesquecíveis.

Mais tarde, ainda, descobri as suas Idées Noires, gags de um sublime e cruel humor, o sarcasmo à solta, num desenho sombrio, só de relevos  negros. Um modo, soube, de se defender contra as suas crises de depressão. 

Tornando a Gaston Lagaffe, que Monsieur Dupuis, o editor, quer ressuscitar agora pela mão de um outro desenhador (ideia que os fãs de Franquin abominam, sobretudo atendendo a que, em entrevista, explicitamente, o autor confessara que não desejaria a continuação de Gaston após a sua morte), tornando, pois, a ele, num momento em que até faço parte de grupos que se lhe devotam, no Facebook, sinto-me de novo o miúdo maravilhado que sempre fui com uma BD nas mãos. Percebo a igenuidade de Gaston, a sua inventividade mal aceite e mal compreendida, à beira da catástrofe, a dirigir-se  ao precipício iminente, o seu romantismo tímido, a exasperação que a sua preguiça e as suas inovações (brilhantes, na verdade) podem causar entre os outros habitantes da redacção do jornal onde (não) trabalha, mas, sobretudo, e tanto tempo antes de isso estar na ordem do dia, o seu amor pelos animais (uma gaivota sorridente, um gato, um ratinho e um peixinho) e a sua luta contínua contra os parquímetros e contra Longtarin, o polícia que os vigia.

As mais simples ideias ou piadas são, em André Franquin, da ordem do génio. Os fãs pululam.