terça-feira, 18 de maio de 2021

PEPETELA: LUEJI. O NASCIMENTO DE UM IMPÉRIO

As terras de África são extensas, povoadas por diferentes aldeias, com laços entre si e com um poder central, ora de vassalagem, ora de cumplicidade, ora de guerra. Atravessa-se florestas densas, rios habitados por jacarés, atravessa-se hortas, para se chegar de um povoado a um outro. Muito tempo antes dos conquistadores Europeus chegarem, prontos a dominar, a escravizar, a extorquir e, secundariamente, evangelizar e ensinar, já estes povos haviam desenvolvido sistemas complexos de poder, comunicação e diplomacia. No romance de Pepetela, esta grandeza e esta riqueza de terras, a perder de vista, e esta sofisticação de meios de organização social, são expostas com um pormenor que não poderia deixar de exercer fascínio sobre um leitor Europeu, que, séculos volvidos, imaginava ainda uma África onde viviam, à vinda do invasor, bandos de indígenas nus, sem cultura nem Estado. (O que não seria propriamente o meu caso, diga-se). Num romance particularmente bem conseguido, do ponto de vista da escrita, de que falarei de seguida, e construção narrativa, assistimos ao nascimento do império, sob a rainha Lueji e, paralelamente, séculos mais tarde, à experiência do grupo angolano de bailado que, em Luanda, se prepara para recriar a história dessa magnífica Lueji. A descoberta do amor por Lu e Uli é muito bela. Secretamente apaixonados um pelo outro, significando este "secretamente" que nem os próprios estão conscientes do que sentem, porque não conseguem olhar-se como objectos desse tipo de amor, demasiado influenciados pela ideia de que, conhecendo-se e brincado desde pequeninos, não podem senão ser como irmãos, Lu e Uli são bailarinos amadores, e têm, no bailado, uma relação especial, um conhecimento particular dos movimentos um do outro, como se ninguém mais pudesse ser, pelo menos daquela forma sigular, o par do outro. É nessa ligação dos corpos, no bailado, que a sua paixão se tornará evidente - por causa de uma expressão abusiva e de espanto do coreógrafo checo, que abrirá, de súbito, os olhos aos demais dançarinos e, por fim, aos próprios amantes inconscientes e relutantes. Tudo o que este grupo pretende, nos anos 70, é reconstituir a saga de Lueji, contra os seus desejos elevada a rainha: os irmãos de Lueji, que mataram o pai, não serão banidos, mas afastados da possibilidade de reinar, que o mais velho, Tchiguri, toda a vida teve como objectivo. É nestas relações de amor-ódio entre os irmãos (o trecho que nos narra as brincadeiras eróticas, incestuosas, na adolescência, entre Lueji e Tchiguri, é estranhamente perturbador e muito bonito), de intrigas, de organização de exércitos próprios, que a jovem rainha terá de aprender em quem confiar, a quem se aliar, quem vigiar, o que fazer em cada momento da vida e do poder que nunca pediu. Ela não quer a guerra, nas terá de estar preparada. Num português-angolano, maravilhoso e apetecível, tão inesperadamente próximo de Saramago em certos momentos, mas mais ousado nas construções em que o discurso directo e o indirecto se confundem, recorrendo a palavras como "desconseguir", "maka" ou "salimentar" (por "se alimentar") Pepetela consegue forjar com autenticidade o português africano, que, infelizmente, em Mia Couto se transformou numa espécie de postal, sem a mesma autenticidade.