quarta-feira, 19 de agosto de 2020
LUCIA BERLIN: MANUAL PARA MULHERES DE LIMPEZA
Alguns autores são de uma autenticidade crua e aterradora. O que têm para contar são pedaços de si, ou seja, fragmentos de uma vida que os traumatizou e arrastou, de muitas formas, para a pior degradação. Foram vítimas de pais violentos ou negligentes, de relações destrutivas, refugiaram-se no álcool ou na droga, sofreram e fizeram sofrer. A sua obra não é só ou sempre dolorosa de ler, porque, em alguns deles, parece iluminada por um inexplicável carinho e uma espécie de humor irresistível e amargurado. São autores que, escrevendo, nunca escapam à vida. Nas antípodas destes, outros alimentar-se-ão da ficção, de um engano vagamente ligado à sua história, que nos entretém. Ou chega a ser profundo. E podem oferecer-nos, também, uma obra excelente, é claro. A qualidade existe a partir de impulsos e objectivos opostos entre si. Mas os Bukowski, os Genet, os Bellow, ou alguém como Lucia Berlin, viveram uma vida que lhes grita demasiado obsessivamente, para que queiram ou possam dedicar-se a qualquer coisa outra que não expô-la, mostrá-la, revê-la, dá-la a ver.
Lucia Berlin é sobretudo uma escritora de contos. Veja-se Manual para Mulheres de Limpeza. São 43 contos: em nenhum deles existe uma narradora que não seja a mulher que estudou num colégio de freiras para raparigas pobres, e conheceu diversas paixões, de que nasceram, ao todo, quatro filhos. Em nenhum conto se ouve a voz de uma mulher sem filhos, ou da mãe de uma menina, ou de um casal, ou de três rapazes. Não. São sempre os mesmos quatro filhos. E apesar da sua cultura ou do seu talento, a narradora que regressa em cada história é sempre uma mulher que vive sordidamente e aceita os empregos socialmente menos dignificantes: o título alude precisamente a isso.
É uma descoberta: brevíssimas situações em carne viva, um equívoco na infância, quando se julgou que batera numa freira, um velho índio que lhe observa as mãos sempre que se vêem numa lavandaria frequentada por ambos, um aluno inteligente e difícil em certo período da sua vida, quando ensinava Espanhol num outro colégio de freiras, ou os percursos quotidianos entre casas de que é mulher-a-dias. O avô dentista, bêbado e violento, a sua mãe de humor oscilante, as outras mulheres de limpeza, com quem fala sobre as patroas. De muito pouco, LB consegue extrair um fio que nos comove e nos mantém presos, até um final que não é tanto uma reviravolta, mas, muitas vezes a frase inesperada, com o elemento de estranheza ou o humor que surpreende antes de fazer rir.
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