sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

NABOKOV E DURAS: LOLITA E O AMANTE


 

Lolita é, por várias razões, um livro extraordinário.  O Amante também. Mas ambos são romances politicamente incorrectos, assumindo a pedofilia como centro e, portanto, ainda que a ponham em causa, ainda que os leiamos como a sua crítica moral - e nem sequer é líquido que seja essa a pretensão de qualquer um deles -, não o fazem nem podem fazê-lo sem entrar nos protagonistas, sem até certo ponto os compreender [empresa arriscadíssima do ponto de vista dos costumes: criar alguma forma de compreensão dos sujeitos, logo, dos actos, que queremos repudiar como absolutamente infames].


Mas há, entre os dois, uma diferença abismal. Essencial. Enquanto Lolita se desenvolve do ponto de vista de um narrador que é, simultaneamente, o sujeito do desejo, contando-nos, sem arrependimento, o seu amor indigno, adulto e masculino, por uma ninfeta, O Amante introduz um outro ponto de vista. A narradora será, agora, a vítima. Mas a vítima, de facto? 


A menina de quinze anos e meio que inicia a relação com um jovem de vinte e sete, desculpa a sua queda com diversas justificações, umas explícitas, outras subentendidas. Não se trata de amor. É a oposição à mãe, o ciúme antigo e dissolvente em relação ao amor dessa mãe pelos dois filhos-rapazes, é ainda, estranhamente, a necessidade de proteger, da pobreza envergonhada, esta família que se devora a si própria.

Mas cedo percebemos que estas justificações só podem ir até um certo ponto - daí em diante tornam-se má-fé, alibis de uma outra coisa, completamente diversa. E, aliás, essa "outra coisa, completamente diversa", nunca se nos esconde. Está lá.  Nominável, nomeada. É o desejo. O desejo da vítima, que em todos os actos se exibe, e seduz, não ainda inteiramente consciente de que o faz, mas apropriando-se dessa consciência e comprazendo-se nela.


Make no mistake: o culpado é sempre o adulto, e em nenhum momento quero que este post consinta ou alimente equívocos. Mas que, precisamente, a narradora conte a história do ponto de vista do seu próprio desejo, e nunca do da vitimização, apenas transforma uma obra publicada em 1984 num romance mais perturbador, porque se move na obscuridade onde todas as certezas claudicam e as respostas são respostas com o travo do pecado, as únicas possíveis a pessoas que o anjo para sempre expulsou do paraíso.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

MARGUERITE DURAS: O AMANTE

 

Alguma coisa na escrita de Duras começa por participar, para o leitor, da ideia de milagre (embora eu venha abusando da palavra "milagre" e esta palavra seja a última a poder ser banalizada). Mas há nessa escrita uma simplicidade tal, e de tal forma no limiar da oralidade, que se torna difícil compreendermos de onde pode aí nascer uma profundidade, uma riqueza, um dom de nos surpreender, que é constante e, nessa medida, parece advir sem esforço. O dom da linguagem de MD não resulta de uma busca, nem de algum artifício. 

O que nos prende na Autora é que tudo se move em torno de um modo específico de tornar fluidas as oposições: é ficção, mas o carácter real e confessional dos seus romances, se assim lhes posso chamar, tem um peso que sentimos bem; é duro, mas a dureza não cai no cinismo, oculta e revela uma sensibilidade fina: sabemos sempre que lemos a exposição de uma vida marcada.

Por fim, uma espécie de despudor, que nos perturba um pouco. A presença e a respiração  de uma sexualidade na sua infância, ou na adolescência, e dos abusos a que elas conduziriam. Da mesma forma que o seu rosto, que já era na juventude um rosto de velha - também, nela, a sexualidade é vista como uma doença prematura. De que se trata, precisamente? Não é a beleza, nem o encanto. "O lugar do desejo" ou "o rosto do prazer", designa-os ela: "Tal como tinha em mim o lugar do desejo. Tinha aos quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Esse rosto via-se muito. Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no."


Mas ninguém  como Duras para, sobre isso, sobre esse desejo e esse prazer pressentidos, prematuros, impudicos, provocadores, recordar e capturar a vida frustrada de todos, adultos e jovens, a tristeza de sua mãe, mesmo nos momentos de alegria, aquele "'desespero tão puro", aquele "desencorajamento de viver." 


Em tudo identifica os sinais: no modo de vestir, por exemplo - o desleixo no modo de vestir da mãe, como um abandono, ou (no caso da menina de quinze anos e meio que era ela própria) a incongruência de um chapéu e de uns sapatos de lamé como um acto de sedução ainda não inteiramente consciente de si; os sinais são a revelação de sentimentos, atitudes, expressões da vida. Os planos concebidos para os filhos reduzem-se a sinais. Ou simplesmente as poses para a fotografia. (Admirável descrição).


Ou ainda os sinais da pobreza envergonhada, talvez a mais terrível das pobrezas.  Os sinais de uma relação familiar fracturada, perpassada pela má-fé, por fim destruída e nunca refeita, nunca recomposta. 


Este livro é também uma investigação dolorosa à memória, uma pesquisa metódica da parte do amor e da parte do ódio que sempre coexistiram; um mergulho na escuridão da adolescência. Mas sem salvação, nem resgate. Sem perdão.  Um mergulho desencantado. 


domingo, 21 de fevereiro de 2021

HOMERO E AS TRADUÇÕES "EXECUTADAS" POR FREDERICO LOURENÇO

 

Se tiver em mente Um Estranho numa Terra Estranha [título fabuloso, não é?], livro que continuo pacientemente a "grocar", ou a tentar "grocar",  situo-me logo numa questão sobre que duas personagens conversam, que é a da quase impossibilidade de tradução de "marciano" para as línguas terráqueas, em particular o Inglês, e vice-versa. O especialista em marciano refere que o problema é que, em grande medida, a própria língua decide o que posso verter em outra língua, uma vez que há um mapeamento definido por aquela que me proponho traduzir: definido por palavras que só fazem completamente sentido no interior dos modos de vivência ou das categorias existenciais inerentes ao mapa mental em que essa língua foi inventada. Mudar de língua, traduzir, não é apenas mudar de língua. É trair, de facto, porque exige, subrepticiamente, que mudemos de mapa mental.



As experiências e a realidade de um inglês ou de um italiano ou de um francês contemporâneos são, até um certo ponto, similares. As analogias parecem-me possíveis. Não haverá uma intraduzível mudança de mapa. Do japonês ou do chinês para qualquer língua ocidental, já seria menos fácil.  Que fazer, então, sem cair em anacronismos ou sem depreender semelhanças aparentes, que ocultam profundas diferenças, quando se trata de traduzir os textos da Grécia Antiga ou da Antiga Roma? As similaridades existem. Sem dúvida. Somos todos humanos, enfrentando problemas de sempre. E herdámos o seu legado de um modo tão evidente, que a possibilidade de reconhecimento tem de existir. Mas quanto às linhas que perdemos, soterradas sob tantas transformações, culturais, religiosas, de visão do mundo? Como reencontrá-las de forma a mapear o que um Grego ou um Romano queriam dizer - ou melhor: podiam querer dizer - no interior do mapa em que se exprimiam?


E é aí que um tradutor - falo aqui apenas na qualidade de tradutor de um autor que é muito mais do que isso: o professor, o romancista, o helenista - como Frederico Lourenço faz uma diferença evidente. As suas interpretações de Odisseia e de Ilíada são trabalhos exaustivos e profundíssimos de compreensão de uma mentalidade e de um modo de vida. Atestam-no as introduções, as notas-de-rodapé, as explicações que enquadram e nos afastam do nosso próprio mapa cultural. O mesmo relativamente à sua tradução do Antigo Testamento (e, depois, do Novo), mas também não é do que aqui venho falar. Nós não somos um Grego. Nós não sentimos nem pensamos como Homero, nem como Homero pensa que pensariam Ulisses ou Heitor. Estamos em outro mundo. E se nos encontrássemos, viajando no tempo e sabendo falar grego, ainda assim, porventura, comunicaríamos pouco ou mal. Porque falar grego antigo, e até dominando variações de comunidade para comunidade, não é apenas falar grego antigo. É falar um mundo que já não nos pertence. E acredito que FL nos devolva, incólume. Enfim, quase incólume.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

BEIJAR SEGUNDO O HOMEM DE MARTE


 "- Anne, que é que há de tão especial na maneira de beijar daquele rapaz?

Anne ficou sonhadora, depois sorriu.

- Devia ter experimentado..

- Sou demasiado velho para mudar. Mas tenho interesse por tudo o que diz respeito a este rapaz. Tem alguma coisa diferente?

Anne ponderou na pergunta.

- Tem.

- O quê?

- Mike dá a um beijo toda a atenção. 

- Ora bolas. Isso também eu faço. Ou fiz.

Anne abanou a cabeça.

- Não.  Já fui beijada por homens que o faziam bem. Mas nenhum deles dava a um beijo toda a sua atenção.  Não podem. Mesmo que o tentem com toda a boa vontade, partes do seu espírito estão concentradas em outras coisas. Perderam o último autocarro... as hipóteses que têm de conquistar a rapariga... ou nas suas próprias técnicas de beijar... ou, por vezes, preocupados com o emprego, ou com o dinheiro, ou com o marido ou com o papá ou com os vizinhos que o podem apanhar. Mike não tem técnica... mas quando dá um beijo não está a fazer mais nada. É-se o seu universo completo... e o momento é eterno, porque ele não tem planos e não vai a lado nenhum. Apenas nos está a beijar. - Ela arrepiou-se. - É irresistível. "


Robert A. Heinlein, Um Estranho numa Terra Estranha

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

DOS IMPRESCINDÍVEIS


 

No meu último post, justamente, referia uma distinção, que sinto não ter suficientemente clarificado, entre obras imprescindíveis a priori e outras que apenas se tornam imprescindíveis depois de as termos lido.


A leitura de um livro é suficiente para, por si só, o tornar importante para nós.  Dava disso alguns exemplos. Mas só o acidente de ter lido esse livro o tocou de uma espécie de carácter, que é o facto de, doravante, estar agregado ao meu mundo e ser, nele, uma referência. Lê-lo tornou-o importante para mim. Mas se eu pudesse assistir de fora, divinamente consciente de todos os mundos possíveis, poderia dizer: essencialmente, um mundo em que eu não tivesse lido este ou aquele livros, seria pouco diferente de um mundo em que tivesse a sorte de os ter lido.


Dei o exemplo de Em Busca do Tempo Perdido como, em contrapartida, uma obra imprescindível em si mesma. Porquê?


Socorro-me de uma ideia de Tchekhov.  Escreveu ele, e é uma afirmação conhecida e abundantemente citada, que, numa peça dramática, o fio tem de estar tão bem concebido na uniformidade do seu todo, e de tal forma sem distrações ou desperdícios, que, se uma espingarda aparece "casualmente" pendurada numa parede, no I acto, já sabemos que essa arma será usada, no III acto, para matar alguém.  Cito de memória e muito livremente.


Isto é verdade. Gosto de Tchekhov e de tudo quanto ele escreveu. Sobretudo dos contos. Já aqui confessei que o considero o melhor de todos os contistas e o pai inegável dos que valem alguma coisa. A sua busca de uniformidade é judiciosa. Contudo, Proust é o contrário disso: numa obra que se dispersa por tantos volumes, por diferentes idades e tempos de vida do narrador e das personagens com que essa vida se entrelaça, tudo são encantadores distracções e desperdícios, as memórias desenhadas aqui não têm minimamente a preocupação de que, do ponto de vista da narrativa, venham a ser recuperadas como explicação do que ocorre ali, e contudo, se nos distanciamos, tudo antecipa e retoma, tudo intimamente se liga e mutuamente se compreende, tudo, tudo (mesmo os hiatos, as incongruências) terá sido inevitável na construção da catedral móvel que é  Em Busca do Tempo Perdido.


Não vejo como o encantamento provocado por essa consciência, por esse amor pelo romance de Proust, pelo meu contínuo e infinito regresso ao seu texto, para descobrir o que não estava lá antes (aparentemente), não me tenha transformado, não me tenha, até certo ponto (e não sei se é, de facto, só "até certo ponto"), ensinado a ler, ensinado até a escrever, e estabelecido um específico grau de exigência. Devo afirmar que esta obra me é imprescindível porque nasceu com ela, sem dúvida, o leitor que hoje sou.


Sem vaidade o digo. Não a escrevi, sou apenas um leitor rendido.

Mas compreendem que, assim imprescindíveis, existem poucas mais.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

IRENE VALLEJO: O INFINITO NUM JUNCO

 Considero os livros um bem de primeira necessidade, evidentemente. E penso que qualquer livro que tenhamos lido se nos tornou imprescindível: porém, no concreto, poucos livros são imprescindíveis a priori, no sentido em que, se não tivesse descoberto Gulliver, por exemplo, ou Ravelstein, ou, sei lá!, Moby Dick, viveria sem eles. Poderia viver sem eles. Já Em Busca do Tempo Perdido é um livro  que deveria, teria de ler: não o ter conhecido seria uma perda terrível, ainda que nunca viesse a sabê-lo. Não se equivoquem em relação ao que dificilmente tento exprimir. Não que as outras sejam obras menores; acrescentaram muito à minha cultura: no entanto, se os não tivesse lido, teria lido outros - que os não substituiriam, é certo, mas seriam diferentes escolhas, outros possíveis, num mundo literário onde, infelizmente, já sei que não poderei ler tudo.



Se há, recentemente, um livro que considero absolutamente imprescindível, é um pequeno milagre de uma espanhola chamada Irene Vallejo: O Infinito num Junco. Basta gostar-se dos livros e do acto de ler, para que este livro sobre livros e sobre o acto de ler nos ofereça um conhecimento histórico que nos permite pensarmos sobre o que fazemos quando pegamos num romance, abrimos a capa e seguimos os caracteres através de que encetamos esta escuta de alguém que não nos ouve, talvez tenha até morrido, mas, no entanto, nos fala, descreve, narra. Nos põe perante pessoas, vidas, lugares.


A leitura é a tal ponto um acto simples e habitual, que nos esquecemos de que tem de ter uma história. 


Quando a humanidade inventou a escrita (e fê-lo diversificadamente: ora escritas com uma descendência, que se reconstituíam em novas formas, ora outras que eram inventadas paralelamente); quando as elites dominavam a técnica  (escribas, sacedotes, intelectuais); quando a técnica se propagava entre outros leitores - a leitura era, e foi durante muito tempo, um acto utilitário, não um acto de prazer. E um acto rígido, intermediado pela boca e pela voz - toda a leitura era leitura em voz alta - e não o acto de absoluta intimidade, no silêncio, no recolhimento, que hoje praticamos, entre o leitor e o seu livro.


Ora O Infinito num Junco, cujo subtítulo é, precisamente, "A invenção do livro na Antiguidade e o nascer da sede da leitura", conta-nos eufórica e minuciosamente essa riquíssima História. O aparecimento das escritas nos seus contextos culturais, a escolha do melhor suporte, desde a argila, o papiro e o pergaminho, ao papel, a criação das bibliotecas, as excursões, nas mais inóspitas condições, para se reunirem todas as obras então conhecidas, o amor dos grandes guerreiros pelos livros, que os guiavam e lhes ofereciam modelos de vida, os livros sagrados, os livros iconoclastas. É uma história absolutamente maravilhosa, de lutas, paixões e mudanças, de uma sede que se foi descobrindo, um prazer que teve de se inventar. É sobre essa trama que, inconscientemente, se sustenta o acto com que eu, com certa negligência, retiro um livro de uma prateleira, acerto a luz do candeeiro na medida exacta, me sento, o abro e, secretamente, mudo de realidade.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

ROBERT A. HEINLEIN: UM ESTRANHO NUMA TERRA ESTRANHA

Em pleno confinamento, com menor acesso a livros novos (não porque os não possa encomendar - e encomendarei -, mas porque me agrada o acto, tornado impossível, de os folhear em livrarias, os medir e me apaixonar), tomei uma decisão. Vasculhar e resgatar, às minhas estantes, um conjunto de livros, entre os que já li há muito, e relerei de bom grado, ou os que, por uma razão ou por outra, abandonei a meio, ou, então, os que nunca tive tempo para iniciar: havia prioridades, e esses iam ficando para trás, até acabarem esquecidos. Digo imediatamente que lista obtive nesta campanha: Um Estranho numa Terra Estranha, sobre que aqui falarei. Os Despojados, de Ursula K. Le Guin; O Sonho dos Heróis, de Adolfo Bioy Casares; As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault; e, por que não?, esse monumento de que algumas cenas lembro muito vivamente, cuja história recordo "de uma maneira geral", mas que, tantos buracos negros a propósito de situações e personagens, me fazem crer que relerei com a surpresa de uma primeira leitura: Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. 

 Um Estranho numa Terra Estranha é avassalador. Era jovem de mais quando o descobri. Tinha noção de que Valentine Michael Smith, o protagonista, fora amado pela geração hippie como um precursor, um homem de uma inocência total, um outsider, verdadeiramente. Mas tratava-se de uma referência distante, que não teve peso na forma como então li o romance de Heinlein. Ele leva-nos não apenas ao reconhecimento de um homem ingénuo, quase idiota (se pensarmos na figura de O Idiota, de Dostoievski), mas da busca, iniciada por essa personagem, de uma compreensão sem arestas nem sombras; do "grocar" da realidade estranha e nova com que deparava, sendo o neologismo usado como uma tradução impossível - ou que palavra empregaríamos? - do verbo "to grock", com que Heinlein inventa um termo para essa absoluta  coincidência espiritual entre o sujeito que conhece e o objecto conhecido. 
Mas se Valentine Michael Smith é de uma enorme candura, ele possui um tremendo poder (que não sabe quando usar, entre os terráqueos, e que, é claro, também terá tido o valor de um símbolo, para os hippies e todos os rebeldes que tomavam este romance como uma nova bíblia). Em todo o caso, quando, na fc, os aliens apareciam sempre como os radicalmente "Outros", incompreensíveis e aterrorizadores, é encantadora esta personagem de um marciano (de facto, um humano que nasceu e viveu até tarde entre os marcianos, daí a designação de "o homem de Marte"), com a delicadeza e as boas intenções que os habitantes da terra quererão usar em seu proveito e manipular. Por uma vez, o alienígena não será o monstro.

 Vejam só a beleza do início: "Era uma vez um marciano chamado Valentine Michael Smith." Está lá o "era uma vez", que nos remete para a incredibilidade de uma mera fantasia, o "Valentine", nome do padroeiro dos namorados, o "Michael", como o arcanjo, e o "Smith", como todos nós, o senhor todo-o-mundo, o anónimo, o ninguém especial. E não é verdade que na sua aparente simplicidade, esta primeira frase nos agarra como nos agarravam, na infância, os "era uma vez" das histórias que nos contavam?

Os indígenas do planeta terra, chamemos-lhes os terráqueos, não são necessariamente más pessoas. Apenas indivíduos produzidos pelas suas culturas, pelas convenções em que crêem, e pelos cálculos materiais que aprenderam a fazer, e não talvez por mal, nem por

egoísmo ou por serem interesseiros, mas porque a sua moral contém desde sempre a ideia terra-a-terra de que um homem bom é um homem esperto, e as boas pessoas são as que se amanham, ainda que à custa dos outros. Que diabo, nem todos podem ser Kant. E, como diriam os meus alunos, Kant não serve para a existência quotidiana.  

Os diálogos, extensos, que transformariam rápida e facilmente em uma peça de teatro o romance, nunca cansam. São profundos e divertidos. A conversa entre Jill Boardman e Jubal Harshaw, esse misto de cínico e de epicurista dos tempos modernos, tem o witt e a fluidez de um típico diálogo escrito por Oscar Wilde. As réplicas deste homem, que parece não se interessar por nada senão pelo seu bem-estar, mas se decide a um último arremedo de crença na moral e na justiça, apoiando Valentine Michael Smith, são de uma sagacidade e de uma penetração mordazes e agudíssimas.

Um Estranho numa Terra Estranha é também, tanto quanto recordo (e com isto estou a dizer que a minha releitura ainda não chegou a esse ponto) uma história de amor particularmente deliciosa. Com um beijo de se perder a respiração. Um beijo com uma tal concentração da energia na experiência, como nenhum humano da terra aprendeu ou seria capaz. Grocaram?