sábado, 31 de dezembro de 2016

QUE ESTE VENHA A SER O ANO QUE SEMPRE QUISERAM


Espanta-me um pouco que os meus posts tenham tantos leitores; não o digo com vaidade, realmente apenas com surpresa. O meu mais lido de sempre, sobre O Retorno, vai em quase 3 milhares de acessos.

Espanta-me também que, com tantos leitores, este blogue tenha tão poucos seguidores. 93, nem mais um. Não o digo como lamúria, apenas - uma vez mais - com surpresa.

A todos, os que são seguidores e me lêem, os que são seguidores e não me lêem [espero que os não haja: de resto, como leriam esta mensagem?], os que me lêem mas não se tornam seguidores, os meus votos de um excelente 2017. Com momentos fantásticos proporcionados pela leitura. Mas também com fantásticos momentos entre leituras.

Obrigado pela paciência.

JOHN RUSKIN TRADUZIDO POR MARCEL PROUST: LA BIBLE d'AMIENS


John Ruskin era um excêntrico. Mas há muito que procuro lê-lo na íntegra, cativado por aquelas passagens, de que achei citações, em que perora contra o progresso tecnológico; pelo olho sensível com que se apercebeu da importância dos pré-rafaelitas e pela divulgação que fez da obra destes; pela influência que exerceu desde cedo sobre Marcel Proust, o nec plus ultra da literatura no meu cânone pessoal; e porque o meu primo mo aconselhou diversas vezes, sobretudo a propósito dos seus geniais vislumbres sobre Veneza.

Foi, obviamente, meu primo quem me ofereceu La Bible d'Amiens: a visão (como chamar-lhe de outra forma?) que Ruskin teve da cidade e, no coração da cidade, da sua sublime catedral. Mas, mais do que o acesso ao texto inteligente e profundo de Ruskin, tive-o numa tradução do próprio Proust, que principia por nos apresentar a obra e o autor.

É Proust, aliás, quem nos explica em que sentido devemos interpretar a escolha da palavra «Bíblia» no título. A Bíblia de Amiens é o pórtico ocidental da catedral, uma bíblia no sentido próprio e não figurado, uma «bíblia de pedra»: «esse mundo de santos, essas gerações de profetas, esse séquito de apóstolos, esse povo de reis, esse desfile de pecadores, essa assembleia de juízes, esse esvoaçar de anjos, uns ao lado dos outros, uns em cima dos outros» [Caramba! que maravilha.]

No seu prefácio, Proust abre-nos o universo do mestre: faz a ligação, que o leitor deleitado agradece, entre diferentes obras de Ruskin, tão erudito que raramente se repete de texto para texto, mesmo quando o que já referiu em algum, viria tão a propósito em outro, como ilustração do que está tentando sustentar agora. Percebemos a admiração, o êxtase. Percebemos tudo quanto Marcel Proust reconhece dever a Ruskin: mais do que ideias, conhecimentos, experiências (tanto de leitura como de peregrinação aos lugares mencionados), também uma certa forma de dirigir o olhar e, sem dúvida, uma sensibilidade própria na escrita. Mas Proust não é o discípulo cego - ele distancia-se, intui os erros e expõe-no-los com a sua perspicácia.
«Não é que eu desconheça as virtudes do respeito, é mesmo a própria condição do amor. Mas nunca ele deve, quando cessa o amor, substituir-se-lhe, para permitir-nos crer sem exame ou admirar por confiança,»

O desvio sistemático que Proust identifica em Ruskin, a sua «parte frágil», é a «idolatria». Curioso termo para designar um crítico cristão. Chamar-lhe-íamos «fetichismo», não fosse a conotação que a palavra veio ganhando. Em síntese: o Belo é uma via para a verdade; John Ruskin busca, na beleza das obras cristãs, uma expressão da presença de Deus. Porém, de tal modo a coisa bela emana a verdade, que é como se a contivesse, a encarnasse. A partir de então, objectivamente, não a vemos já como símbolo do que devemos adorar, mas como o que é adorável por si mesmo.

Todavia, até «a parte frágil» devém encantadora. Em Ruskin, segundo Proust, ou nas singulares formulações em que aquele capta as coisas de que nos fala, encontramos uma elevada beleza, e essa beleza, por vezes ambígua e desconfortável para o leitor, toma uma autonomia própria ainda que o que ele afirma deslize para a «idolatria», ou que não seja factualmente verdadeiro. É sempre uma interpretação que nos atinge, nos delicia, mesmo que não creiamos nela e não possamos aderir ao seu conteúdo. Um exemplo, dado por Proust, desse desconforto ante o erro apresentado numa formulação muito bela: «Não é menos certo que essa passagem de Pedras de Veneza é de uma grande beleza, ainda que seja muito difícil compreender as razões dessa beleza. Ela parece-nos repousar sobre algo de falso e temos algum escrúpulo em deixar-nos arrastar

Posto isto, o poder de Ruskin é assombroso. E multímodo. Pessoalmente, atribuo à palavra «Bíblia», aqui, um sentido diferente, sabendo que nunca esteve no espírito da escolha de Ruskin: o seu livro acerca desta catedral deve ser visto como uma Bíblia de Amiens. Diante dos nossos olhos estupefactos reconstitui-se a cidade desde os seus primórdios, e vão-se redepositando as sucessivas camadas históricas e culturais que, num dado momento, a cristalizaram como uma cidade de águas, qual Veneza. Ruskin narra os episódios da formação de França a partir de Amiens, e a origem, a originalidade e a expansão do seu cristianismo. Nada é irrelevante: somos o «viajante inglês inteligente» que observa, pela janela do comboio, as 50 chaminés, de entre as quais sobressai uma, que não lança fumo, e é uma flecha em direcção aos céus; lembra Saint Firmin, que introduziu a fé num povo pagão, sob a ocupação romana, mas ensinado por Druidas; conta episódios históricos, ou mitos, ou meras mas saborosas lendas populares sobre Clodion, Mérovée ,Childéric, e sobre Clovis e Clotilde, reis dos Francos. Apresenta-nos caminhos alternativos para nos aproximarmos da catedral, consoante o tempo de que disponhamos, ou o estado atmosférico do dia. Por todos os poros da sua escrita magnífica e exaltada, sentimos a atenção ao pormenor e a capacidade de resgatar ao esquecimento algum detalhe em que porventura não repararíamos. Proust evoca um episódio revelador: Ruskin destaca, algures, uma das figuras minúsculas dispostas junto ao portal das Livrarias na catedral de Rouen; descreve-a com uma delicadeza e um charme inesquecíveis. Marcel Proust foi, um dia, visitar a catedral, que aliás já conhecia, em busca dessa figura. Pareceria impossível detectá-la: são centenas de criaturas de poucos centímetros. E, porém, reconheceu-a - Ruskin oferecera-lhe, de algum modo, a imortalidade, arrancando-a a centenas de peças que se confundiriam, quase semelhantes, numa massa anónima; interessara-se por aquela, como se dissesse: é esta, ei-la!, e concedeu-lhe vida, extraindo-a do nada.  

Um dia, terei de visitar Amiens, com a Bíblia nas mãos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

ARTHUR MILLER: FOCUS


Hesito na confidência que não há-de abonar a meu favor: mas quando me falaram acerca de Focus, de Miller, parti imediatamente do princípio que se tratava de um romance da autoria de «Henry» Miller, o qual, ainda para mais, escreveu vários com títulos de idêntica terminação latina, como Nexus ou Sexus. Foi, portanto, já no momento em que o encomendava, que se desfez o ridículo equívoco - era Arthur Miller, que a minha ignorância não reconhecia senão como dramaturgo, o autor do célebre Morte de um Caixeiro Viajante.

É um romance que tem por tema a identidade. Como na obra de Pirandello, onde, frequentemente, um pormenor físico (por exemplo, o nariz que pende para o lado direito) é suficiente para transformar certa personagem e, transformando-a, alterar o modo como os demais a percepcionam, também o entrecho de Focus assenta no facto de Mr. Newman começar a usar uns óculos que, por alguma estranha e súbita razão, mudam não apenas a sua fisionomia, mas, digamos, a essência da sua fisionomia: Newman, que não é judeu, começa a ser visto como um judeu.


Este ensaio (chamemos-lhe assim, apesar de ser uma obra de ficção) sobre a identidade, e sobre o que faz uma identidade, ou acerca das características mínimas que configuram a maneira como nos olham, e como nós próprios passamos a olhar-nos, é brilhantemente conseguido. O romance vive de uma estrutura eficaz na forma como joga com os equívocos. Apreciem, por exemplo, o modo como o protagonista descobre que não terá, afinal, quaisquer possibilidades num emprego para que se candidatara, e cuja empresa ele acreditava, durante muito tempo confiante, que o chamaria.

 Newman, que, repito, não só não era judeu mas, acrescento, até um anti-semita - alimentando um anti-semitismo não violento, uma repelência visceral em relação ao "outro" - vai viver situações em que se tornou, ele, o alvo do desprezo, do desrespeito, do afastamento dos amigos e vizinhos, despromoção, despedimento.

À época, anterior à intervenção dos EUA na Grande Guerra, estamos perante uma América profundamente anti-semita, em que se assiste a uma "limpeza" dos bairros, e os vizinhos não-arianos se vêem insistentemente pressionados a mudar; onde, nos trabalhos de atendimento ao público, se faz questão de que não sejam visíveis pessoas de "aspecto judaizante"; onde pregadores e associações de cariz nazi atraem a si fanáticos unidos no ódio ao outro. Mas o que é o outro, o que faz do outro um outro, sendo os EUA uma nação que se criou e recriou integrando fluxos de novos imigrantes em busca de um sonho? O que faz do outro um outro num país que foi sempre um mosaico heterogéneo?

O romance falaria por si, sem proselitismo, sem explicações suplementares. A passagem escusada seria, pois, aquela, já nos derradeiros capítulos, em que o judeu do bairro argumenta com Mr. Newman, de forma a, indirectamente, se esclarecer o leitor sobre a lição a retirar. Espanta, até, que Miller, numa narrativa em que tudo funciona tão subtil e subliminarmente, tenha sentido necessidade dessa explicitação do seu ponto de vista. Mas o próprio facto de percebermos que esse episódio é inútil, mostra até que ponto Focus, mais do que o texto didáctico e político que, necessariamente, também é, importa e vale literariamente, como uma obra de arte maior.     


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

DOMINGOS AMARAL NA TV


Houve um tempo em que os "intelectuais", por razões de compromisso ético, viam a intervenção pública como um imperativo. Eram entrevistados, vinham à televisão, falavam em comícios. Acrescentavam o microfone e o megafone à pena. O homem ser estrábico, roufenho ou gago, devinha irrelevante em face deste seu dever político ou cívico. Os "intelectuais" eram engagés. Viam-nos e ouviam-nos porque a sua voz física, ainda que entaramelada, exprimia uma posição.

Há-os, ainda. Escritores que pensam que o seu estatuto lhes confere um suplemento ideológico. Os candidatos à presidência convidam-nos, os partidos convocam-nos. Mas existe, cada vez mais, outra coisa, também.

A «outra coisa» consiste em escritores que evoluem (ou degradam) para comentadores. Não por terem uma posição cívica a defender, mas porque sim. Ou que evoluem (degradam) para personalidades-residentes em programas de política, cultura e/ou entretenimento. Se nada tenho a opor à ideia por princípio, se reconheço até que alguns literatos são excelentes comunicadores (vale sempre a pena escutar Clara Ferreira Alves, por exemplo, e Pedro Mexia tem wit), devo acrescentar que outros há que se não percebe ao que vão. Ou por outra, percebe-se: dará sempre jeito acrescentar uns tostões à mesada. Mas não deviam preocupar-se com a sua imagem? Não seria de pensar duas vezes antes de se aceitar um convite? Verificar se têm talento para aparecer no pequeno ecrã, se falam bem em público, se não fazem tristes figuras? Lá dizia o Salazar, que, ao menos nisso, via longe: Isto da televisão é um teste decisivo para os políticos: poucos lhe sobreviverão... Bem, pois para os "intelectuais" também.

Desagrada-me cair  numa argumentação ad hominem, mas, caramba! Domingos Amaral, que é um romancista que se lê com certo gosto e algum proveito, tem aceitado ir falar de futebol num programa, das suas irritações em outro, de não sei que mais em não sei onde mais. O homem vai a todas e, sinceramente, não devia. Porque se atrapalha, é pouco claro, se fixa em duas ou três ideias que não relaciona nem desenvolve, porque não consegue argumentar. Vê-lo no último Irritações explicar a diferença entre Fidel Castro, um «filho da puta genial», como lhe chamou, e outros ditadores, tornou-se um exercício penoso. Nem sequer por razões ideológicas, mas porque não se percebia o que diacho queria dizer e onde queria aportar, numa salgalhada em que já considerava que «Hitler nos fascina mais do que Estaline», sem entendermos em que aspecto é que isso valorizaria ou desvalorizaria Fidel.

Mesmo admitindo que há gostos para tudo, talvez as pessoas, sobretudo as que são boas em certos meios, devessem fugir daqueles outros meios que só revelam o seu lado pior.