segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

CONCURSOS DE LEITORES: UMA NOTA

Acho curiosa a ideia de um concurso - não me levarão a mal a sinceridade - em que, para ganhar como prémio um certo livro, o concorrente tenha de responder a perguntas acerca desse mesmo livro.
Pressupõe-se que já o leu? [E para que o quereria então receber?]
Ou trata-se de adivinhar a resposta?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

JAROSLAV HASEK: O VALENTE SOLDADO CHVEIK


Sempre vi o Império Austro-Húngaro como uma das mais ricas expressões civilizacionais da humanidade. Uma obra-prima de talento e bom-gosto.  É bem verdade que se, e em praticamente todas as artes, olharmos para algumas das personalidades e obras produzidas no seio desta monarquia, não podemos deixar de ficar impressionados. Pela qualidade e pela quantidade.

Paradoxalmente, esses mesmos artistas eram em geral muito críticos, se não hostis, em relação ao império que, visto por dentro, não passaria porventura - afinal - de uma manta de retalhos, unindo pela força e pela burocracia povos que se não reconheciam nessa unidade; com um regime jurídico pormenorizado e caricato; advogados e juízes e polícias que velavam ridiculamente pelo cumprimento extremo de alíneas meramente formais, e espiões absurdos, que vigiavam cada cidadão, controlando todas as palavras e lendo, nas mais inocentes, perigosas armadilhas contra o Estado.

Hasek escreveu, a partir desta matéria-prima, um romance delirante.

A sua personagem central, o Chveik do título, é uma peça indigesta para o sistema.
Não tem outra força que não a da sua ironia.
Aliás, como ele mantém do princípio ao fim uma absoluta opacidade, nunca sabemos muito bem que intenção o move, ou sequer o que pensa: ao contrário daqueles romances em que se procura exprimir o fluxo contínuo da interioridade, a interioridade da personagem permanece-nos oculta. Chveik vai-nos sendo exposto unicamente através das suas palavras ou de reacções bizarras; o equívoco começa, pois, por se gerar: estamos perante um pateta cuja inocência atinge os píncaros, um pobre de espírito, ou perante um revoltado astucioso, na sua indiferença estóica em face dos males, das contrariedades, das punições que sofre? Mas essa ambiguidade contém, em si mesma, um eficaz efeito de surpresa e de comicidade, tanto mais que o narrador a cultiva, exprimindo-se sempre como se acreditasse na ingenuidade e na bravura de Chveik, e como se a possibilidade de este estar simplesmente a troçar de todos os outros nunca sequer lhe ocorresse.

Não que Chveik seja um filósofo. Não tira lições da vida, nunca se examina a si próprio, nem reflecte acerca do mundo. Também não é um político, embora a sua atitude remeta para uma certa forma de resistência, um pouco à maneira de Bartleby. «I would prefer not to.» Ele não participa propriamente do movimento do mundo. Deixa-se arrastar. A sua astúcia permite-lhe quando muito tirar partido das situações, não provocá-las. Muitas vezes, ou sempre, o que lhe suceda de melhor não tinha sido premeditado.
Chveik não combate, limita-se a abrir os braços e a apreciar tudo quanto ganha. A sua heroicidade não foi desejada, nem construída, nem verdadeiramente corresponde a um desígnio. A imagem de bravura que irradia não é mais do que a boa sorte dos boémios e das crianças, a mão que deus põe por baixo dos que não querem saber senão de estar de bem com uma vida que quer estar de mal.

Mas capítulos como o de Chveik sendo escoltado por dois soldados, um «trinca-espinhas» e um «pote», ou o da missa campal, em que ele próprio assiste o oficiante, um extraordinário capelão bêbedo e sem fé, de quem entretanto se tornara impedido, são impagáveis e imperdíveis.

Escrever um texto humorístico é muito difícil. A situação cómica carece de todos os sentidos; um comediante faz rir não apenas pelo conteúdo do seu discurso, mas graças à voz, à expressão, ao gesto, à oportunidade e a um certo modo de o dizer. Ora há, na leitura, um distanciamento que abstrai de tudo o que pudéssemos testemunhar com os nossos sentidos. Naturalmente, existem técnicas de escrita de humor - o inesperado necessariamente, o contraste, a inversão. Ainda assim, as técnicas não produzem de imediato o cómico. Por isso mesmo, porque me parece tão difícil, dou particular importância aos textos que me fazem rir. Deste ponto de vista, O Valente Soldado Chveik é um romance de um humor corrosivo e certeiro, absolutamente extraordinário.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

in O VALENTE SOLDADO CHVEIK [ de JAROSLAV HASEK ]

«De verdade, nunca compreenderei a razão por que os doidos se zangam de estar tão bem instalados. É uma casa onde se pode passear todo nu, uivar como um chacal, ser furioso à vontade e morder até fartar e em tudo o que se quiser. [...] Há lá dentro uma tal liberdade que os socialistas nunca ousariam sonhar nada de mais belo. [...] Toda a gente tinha a liberdade de dizer aquilo que muito bem queria, tudo o que lhe passasse pela cabeça. Parecia que se estava no Parlamento.»

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

TIAGO PATRÍCIO: TRÁS-OS-MONTES [QUESTÕES DE ESTILO]



Vou principiar este post por uma confissão; a seguir, abandono a sobredita, para me referir a Trás-os-Montes, Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, 2011; por fim, retomarei a confissão, de modo a extrair dela algumas dúvidas que gostaria de aplicar ao caso de Trás-os-Montes.

Vamos, pois, realizar o plano.

1. Um dia, aí pela minha juventude, pensei escrever um romance que reuniria todos os clichés que particularmente me enervavam. Fá-lo-ia, bem entendido, com uma intenção crítica e irónica. Desisti da ideia, quando me dirigi esta pergunta muito simples: E como se distinguiria um romance ironicamente carregado de lugares-comuns, de um romance ingenuamente feito de lugares-comuns? Que outros indícios, que outros instrumentos teria de acrescentar, para que se entendesse: Isto é deliberado, tem uma intenção subterrânea, autodestrói-se de propósito e com um propósito?

2. Um leitor deste blogue, leitor meu cujas opiniões acerca de livros vou pesquisando com interesse e consideração, mencionou Trás-os-Montes como, na sua perspectiva, um dos melhores livros publicados em 2012.
     Passara-me despercebido. Comprei-o.
     Na badana, Eduardo Pitta, desconcertado, adverte-nos para que a «narrativa abre de forma desconcertante», acrescentando: «A economia narrativa não prejudica (antes pelo contrário) a idealização do mundo rural.»
     Muito bem. Sinto-me já electrizado. Concentro-me nas primeiras linhas, preparado para me desconcertar, e leio: «Teodoro vivia numa casa cansada.»

3. A metáfora da casa cansada nada tem de desconcertante. É, ao invés, uma metáfora gasta e morna - embora, verdade seja dita, na enumeração das características desse cansaço, a metáfora pareça acordar, ganhar luz e tornar-se interessante: «uma casa com dores de costas que reagia mal aos dias húmidos e tinha dificuldade em dormir à noite.»

4. Mas, num certo sentido, é como se essa «abertura desconcertante» [que principia por não sê-lo, mas ao longo do período desata a sê-lo] esgotasse o fôlego estilístico do autor, que, daí em diante, se limita a contar os seus episódios num registo seco, sem nenhum risco e sem nenhuma surpresa.
Os episódios, que têm por objecto o crescimento de quatro crianças transmontanas, não se desenvolvem segundo qualquer fio condutor que os una na promessa de algo, mas, pelo contrário, como uma série dispersa de minúsculas estórias; deste carácter fragmentário resulta, aliás, que as personagens não consigam profundidade: como pode ser, o mesmo Teodoro cujas primeiras descrições nos conduzam a imaginar um garoto sempre um pouco deslocado, tímido, inibido, obcecado com a sua procura de padrões e de simetrias, o mesmo que se aventura, mata desapiedadamente pássaros, perseguidor e brigão?

5. Fixemo-nos, por um momento, no despojamento estilístico que, notoriamente, tanto impressionou os críticos e o júri. Deve ser a isso que Pitta se refere como «economia narrativa»; ou que leva o presidente do júri, Vasco Graça Moura, a afirmar: «as qualidades de escrita reportadas à dureza de um universo infantil numa aldeia de Trás-os-Montes e à maneira como o estilo narrativo encontra uma sugestiva economia na expressão e comportamentos das personagens.»

6. Regressemos à minha confissão inicial: perante um texto que não se aventura nem corre riscos estilísticos de monta, como posso perceber se se trata mesmo de uma «economia narrativa» [e expressiva] deliberada, «uma sugestiva economia na expressão e comportamento das personagens», ou do sinal de uma incipiência, sintoma de pouco talento e nula inventividade?

7. A minha descoberta de "Trás-os-Montes", o livro, porém, não acaba aqui. Porque numa noite de insónia em que uma passagem do romance me não saía do espírito [não por eu saber de cor as palavras, mas por me soar continuamente na memória uma certa melodia desse trecho], desci à procura do livro, abri-o e, num ponto marcado, li:

     «A missa em latim, a que Teodoro não chegou a assistir, como um discurso codificado como um todo, era uma decantação da linguagem de Deus, com marcações que as pessoas decoravam para dar as respostas certas naquela homilia fechada. Era o prazer da repetição infinita.»

     Percebo então, num fiat lux, que esta simplicidade é a de uma economia muito bela e, evidentemente, procurada, eu diria: sábia e pacientemente procurada; percebo sem mais sombras que um período, como o que venho de citar, deve ter sido relido pelo seu autor, evitando a tentação da exuberância, excluindo outras possibilidades, até lhe restar um parágrafo muito próximo da perfeição na sua clareza e na sua simplicidade. Confiro: vou descobrindo outros parágrafos, outras passagens, páginas inteiras. A mesma simplicidade que é, para usar a palavra do autor, «uma decantação», em busca de evidências essenciais, de uma pureza clara.

8. Para já, é simplesmente um livro a que deverei tornar, na convicção de que os preconceitos que fui cultivando não mo deixaram descobrir na sua límpida pureza. Se o premiaria? Não. Se está na minha lista dos melhores que li? Não. Se merece a descoberta, o regresso, o reatar...? Tratemos disso...

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

GÉRARD DE NERVAL: SYLVIE



Trata-se de um livro a que, por variadas razões, o acesso está longe de ser simples.
Não se encontra traduzido para português, nem à venda propriamente «numa livraria perto de si».
Poderia, pois, não gastar espaço-tempo com um "post" sobre um romance que a maioria dos leitores não irá ler.

Não me é possível.
"Sylvie", de Gérad de Nerval, era já para mim um livro de culto antes de o haver lido.
A primeira menção que me eriçou foi a de Umberto Eco. Eco, nessa conferência em que se expunha como um apaixonado pela novela em causa [a que dedicou muitos anos de estudo e uma tese essencial no seu percurso académico] refere-se por sua vez à impressão que "Sylvie" já tinha causado em Proust. Cita-lhe artigos e cartas.

Proust descreve "Sylvie" como uma narrativa cujo conteúdo parece encantadoramente difuso, como se envolto em neblina: como se assistíssemos a algo através de olhos semicerrados. Regressando à sua própria leitura, Eco disseca depois minuciosamente os movimentos de regressão e de antecipação de que "Sylvie" é composto, essa complexidade temporal genialmente tecida pela memória. 

Meu primo, a quem ofereci um exemplar, considerou-o um texto revolucionário. E acrescentou: «Sobretudo, se pensarmos na época em que foi escrito.»

Eu próprio ainda o não tinha lido nessa altura, de forma que a minha curiosidade e o meu interesse estavam sob uma pressão incomportável e já insuportável. Quando recebi e pude por fim abrir o sobrescrito com o meu "Sylvie", e começar a lê-lo, no vagar a que me obrigava uma língua não materna, fui percebendo, em primeiro lugar a influência exercida sobre Proust [a digressão da memória, ou o tom onírico de um narrador que nunca parece inteiramente desperto, continuamente mergulhado na substância da sua memória, de modo que tudo quanto evoca surge, realmente, imerso numa neblina]; tudo está ao pé de nós, mas tocado de um halo de lonjura. É uma técnica, bem entendido: este efeito de lonjura e de irrealidade deve-se ao domínio do tempo por um narrador que nunca se fixa no presente, e nunca nos deixa entender inteiramente se se recuou para um primeiro momento anterior, ou para um segundo momento, ou para um terceiro. Eco mostra que os recuos não nos reenviam para um único tempo pretérito, mas para diferentes tempos, para diferentes momentos da história do narrador. E, por estranho que seja, esse facto não torna confusa a narrativa. Não nos perdemos - aliás, talvez nem percebamos que estamos a regressar a diferentes estações do passado [seria preciso a leitura conscienciosa e advertidíssima de Eco], nem isso faz a menor diferença, do ponto de vista da compreensão. Mas provoca o efeito referido, a leveza onírica, a irrealidade subtil, a percepção diáfana.

Em todo o caso, o carácter «revolucionário» que o meu primo atribuía ao conto/novela/romance não se deveria tanto à técnica, à forma brilhante de narrar, e aos seus efeitos, mas ao conteúdo. E no tema reencontro algo que certamente inspirou Freud e que certamente inspirou Nabokov. É absolutamente notável, de facto, esta ideia de um sentimento amoroso em relação a uma mulher, cuja arqueologia revela o amor por uma outra jovem no passado do narrador, experimentada ainda por cima na indecisão do amor por uma terceira jovem, na mesma época.

A actriz de teatro que hoje (no presente da narração) fascina o narrador é, pois, simultaneamente símbolo e nostalgia do amor inconsumado por uma personagem que a sua memória guardou da infância, a qual, por sua vez, foi amada em antítese com Sylvie, em tudo oposta, e em tudo "inferior", até ao reencontro, muitos anos mais tarde, que lhe revela uma outra Sylvie, amadurecida, desejável, fascinante.

Nerval escreveu, portanto, a história de um amor complexo que, sem que disso nos demos conta, é talvez a história de cada um dos nossos amores: se é verdade que em cada pessoa a que nos devotamos residem reflexos, nunca analisados, porventura incompreendidos, do que amámos em outras pessoas, ao longo da nossa vida; se é, então, verdade que, no amor por cada um, amamos uma pluralidade.