domingo, 22 de maio de 2022

ANDRÉ FRANQUIN: DA IMAGINAÇÃO


 Já me conformei com a descoberta relativamente tardia de que nem todas as pessoas gostam de BD. Intrigava-me que os leitores de romance e os apreciadores de pintura não vissem, na banda desenhada, a feliz reunião de ambas as formas, ou seja, a arte de tecer uma narrativa através da ilustração. Quadros: os quadrinhos, que seguimos para compreender o fio dos acontecimentos. Depois, fui percebendo. Nada é assim tão simples. A BD é também uma linguagem, com as suas convenções e exigências: os balões podem desconcentrar, a linha narrativa pode perder-se. Texto em cima dos desenhos não é necessariamente convidativo.

Para quem cresceu, desde antes de aprender a ler, extasiando-se com a colecção de Cavaleiro Andante do irmão, que eu sabia muito bem onde estava escondida (de mim); para quem descobria na casa das primas os comic da Marvel, ou as versões brasileiras "dos Patinhas", a Luluzinha e o Bolinha, o Super-Homem e o Batman; para quem entrou, em silenciosa euforia, no universo do Tintim e, muito depois, no de Astérix; para quem gastou literalmente as páginas de A Marca Amarela e teve a sorte de ser contemporâneo da génese, em Portugal, da maravilhosa revista Tintim, onde se reuniam, por obra e graça de Vasco Granja e Dinis Machado, as personagens originais de três revistas diferentes (a Tintin e a Spirou, belgas, e a Pilote, francesa), parece sempre de lamentar que haja pessoas a quem a singularidade preciosa das histórias em quadrinhos possa ter passado ao lado.



Curiosamente, conheci pouco e mal, na adolescência, o prolífico autor de que decidi falar hoje. Conheci pouco, conheci mal, mas, como dizer?, já poderoso no modo como me tocava, de longe: nessa ausência de familiaridade, formava-se uma célula de espanto e de fascínio, como a propósito de um país que nunca verdadeiramente visitámos, e de que, todavia, nos chegam fotografias ou notícias que nos fazem estremecer.

Eu conto: milénios antes das Fnac, havia, na então cidade de Lourenço Marques, uma livraria de grata memória, que era a "cooperativa". A Coop. Lembro-me deste nome, não saberia hoje dizer-vos de que cooperativa se tratava. Mas sob a loja, acoitava-se uma cave, uma ampla sala onde nos sentávamos a ler, como se estivéssemos numa biblioteca. E aí me deparei com, e vi/li muitos álbuns da revista Spirou - álbuns que encadernavam bastantes números do semanário - em que achei o delirante Gaston Lagaffe. Tudo na personagem e nos gags me enchia as medidas: eram histórias curtas, de uma prancha  (publicadas à razão de uma por número semanal), concluindo numa piada que me fazia realmente rir. O traço impunha-se pela sua diferença e originalidade, o mais afastado possível da "linha clara" (Tintim, Blake e Mortimer, Alix) em que eu fora educado: em Gaston havia um ruído gráfico deliberado, que exprimia, em desenho, uma desordenação criativa e plena de humor, reproduzindo as características de personalidade daquela personagem.

Já estava em Portugal, e não seria certamente um adolescente, quando soube que Franquin, nos anos 50, tinha recebido a missão de continuar as aventuras de Spirou, de que eu não era íntimo, apesar de as folhear na tal cooperativa, e lhe acrescentara algumas das personagens mais mirabolantes: o próprio Fantasio, companheiro inseparável do jovem paquete, a astuciosa e competitiva Seccotine, repórter de O Mosquito, rival de Fantasio, sua amiga e inimiga, o Conde de Champignac, ou o genial Marsupilami, animal de uma espécie desconhecida, com uma cauda longa e multiusos, mais uma plêiade de secundários hilariantes, como o Presidente da Câmara de Champignac (e, bem entendido, o delicioso ridículo dos seus discursos) e vilões inesquecíveis.

Mais tarde, ainda, descobri as suas Idées Noires, gags de um sublime e cruel humor, o sarcasmo à solta, num desenho sombrio, só de relevos  negros. Um modo, soube, de se defender contra as suas crises de depressão. 

Tornando a Gaston Lagaffe, que Monsieur Dupuis, o editor, quer ressuscitar agora pela mão de um outro desenhador (ideia que os fãs de Franquin abominam, sobretudo atendendo a que, em entrevista, explicitamente, o autor confessara que não desejaria a continuação de Gaston após a sua morte), tornando, pois, a ele, num momento em que até faço parte de grupos que se lhe devotam, no Facebook, sinto-me de novo o miúdo maravilhado que sempre fui com uma BD nas mãos. Percebo a igenuidade de Gaston, a sua inventividade mal aceite e mal compreendida, à beira da catástrofe, a dirigir-se  ao precipício iminente, o seu romantismo tímido, a exasperação que a sua preguiça e as suas inovações (brilhantes, na verdade) podem causar entre os outros habitantes da redacção do jornal onde (não) trabalha, mas, sobretudo, e tanto tempo antes de isso estar na ordem do dia, o seu amor pelos animais (uma gaivota sorridente, um gato, um ratinho e um peixinho) e a sua luta contínua contra os parquímetros e contra Longtarin, o polícia que os vigia.

As mais simples ideias ou piadas são, em André Franquin, da ordem do génio. Os fãs pululam.