domingo, 17 de fevereiro de 2019

MARIA JUDITE DE CARVALHO: OBRAS COMPLETAS



Num prefácio difícil, Baptista-Bastos considera, elogiando embora as narrativas de Maria Judite de Carvalho, que elas não deixam de estar datadas. A caracterização levar-nos-ia a uma discussão sobre o que entendemos pela palavra. Se «datado» significa, neste caso, que muitos destes contos se referem a um outro Portugal, que os mais jovens não reconhecerão decerto (onde um «fato de cheviote» teria uma enorme importância para certo empregado de escritório, cuja promoção fora sendo sucessivamente ignorada, ou onde uma viúva viverá durante muitos anos presa à memória do marido), se datado significa isso, podemos compreender a classificação; mas se, como eu penso, um texto «datado» é aquele em que o tempo nos desligou, não apenas de algumas referências - como certas situações, ou o emprego, nos diálogos, de palavras ou fórmulas desusadas -, mas do núcleo, tornado entretanto extemporâneo e estrangeiro, quase ininteligível, então a obra de Maria Judite de Carvalho, que reencontramos nos belos volumes que vêm agora sendo reeditados, está bem longe disso.

Em primeiro lugar, pela escrita propriamente dita. Pela sensibilidade e delicadeza de uma expressão contida, poética, encantadora; em segundo lugar, pelas pessoas captadas sob o foco existencialista, que no-las oferece vivas, concretas, familiares, tristes, absurdas; por fim, pela própria qualidade dos entrechos: de anteriores e porventura longínquas leituras, não me recordava que MJC fosse capaz de construir máquinas narrativas tão complexas e surpreendentes - julgava lembrar-me, até, de uma certa inocência típica de «senhora dada a escrever», mais do que de «Escritora», na verdadeira acepção da palavra. E nada é mais errado nem mais injusto.

Alguns dos seus contos longos, Os Armários Vazios, por exemplo, são, a vários níveis, de uma concepção e de um desenvolvimento magistrais. Os pormenores não são gratuitos, conferindo aos "twists" mais rocambolescos uma credibilidade que tudo torna verosímil: as personagens são tão vivas, tão bem trabalhadas, tão próximas, que nos inteiramos do drama dos seus desencontros (sendo que, em MJC, até os encontros são habitados por um desencontro em gestação) como se ouvíssemos a história de conhecidos.

Toda a obra ficcional desta "discreta flor das nossas letras", como lhe chamou Agustina Bessa-Luís, dada agora a que a descubramos, numa justa e esmerada reedição em quatro volumes.