sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A MINHA LISTA DE ALGUNS LIVROS (OS QUE ME OCORREM) LIDOS EM 2010



Meu amigo Vasconcelos acaba de engordar o grupinho de seguidores deste blogue. As minhas primeiras palavras são, pois: bem-vindo, António. Soube que o meu amigo tentou comentar - e o comentário não apareceu. Bem, não foi censura do blogue, que não possui qualquer dispositivo para seleccionar comentários. Contudo, acontece que tenho conhecimento (por um telefonema do próprio) do que A. V. me sugeria nesse comentário. Que apresentasse uma lista de uns quantos livros, de entre as minhas leituras do ano que finda, que me tivessem agradado especialmente. Começo por conduzi-los aqui, onde o homem do fraque apresenta a sua própria lista, com algumas sugestões que me ficam debaixo de olho. Quanto a mim. O livro que recomendaria em primeiro lugar é: de Cholokhov, O Don Tranquilo. (Só li o volume I de uma série deles, 4 0u 5). [O problema é que não consegui encontrá-lo nas livrarias. Nem encomendá-lo - estava esgotado, em qualquer uma das possíveis edições. Pessoalmente, fui buscá-lo ao depósito de uma biblioteca, de onde me chegou às mãos poeirento e de capa francamente danificada. Não posso, contudo, deixar de sugeri-lo, porque se um livro por que tanto se espera e se batalha, não decepciona quando por fim se alcança, é porque vale realmente a pena]. Chico Buarque, Leite Derramado Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia (para quem gosta de poesia: excelente) Ken Follett, Os Pilares da Terra (volumes I e II) George Orwell, Homenagem à Catalunha (tenho de falar aqui dele; é encantador na captação do espírito do catalão) Dostoievski, O Jogador José Saramago, As Intermitências da Morte. (Também gostei q.b. de A Viagem do Elefante e de Caim) Mario Vargas Llosa, A Cidade e os Cães Alguns policiais, sobretudo de autores nórdicos, que estão na moda. Por exemplo: Camilla Läckberg, A Princesa de Gelo E algumas releituras: Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite Joseph Conrad, O Coração das Trevas Ernest Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram Mark Twain, Huckleberry Finn Uma boa festa, um bom ano e boas leituras.
Itálico

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

AUDE LANCELIN, MARIE LEMONNIER: OS FILÓSOFOS E O AMOR

Não me lembrava muito bem deste livro, sinal de que não terá tido a importância que eu esperava ao comprá-lo. Na altura, fora atrás dele seguindo uma recomendação. O título completo é cativante; leio-o em letras brancas sobre um suculento fundo vermelho: Os Filósofos e o Amor. Amar, de Sócrates a Simone de Beauvoir. Platão Lucrécio Montaigne Rousseau Kant Schopenhauer Kierkegaard Nietzsche Heidegger Arendt Sartre. Prefácio de: Eduardo Lourenço. Mas então, relendo com gosto, um capítulo aqui, um capítulo ali (principio por Kant, salto para Sartre/Beauvoir, regresso a Nietzsche, coitado...), vejo-me assaltado por lembranças que se reconstituem, déjà-vus que se encaixam, e o livro ilumina-se-me no íntimo.

A ideia parece promissora: a filosofia tem tanto que ver com o amor, que nunca esquecemos, desde o liceu, como a própria palavra contém, na sua etimologia, o termo que em grego significa «amor», «inclinação». Sócrates, pelo menos o Sócrates inventado por Platão, que se confunde com a origem e com o destino da filosofia, é um homem que se ocupa obsessivamente com o amor: quer quando o refere (cf. O Banquete) quer, e talvez principalmente, quando evita referi-lo. Mas para além desta primeira ligação entre a filosofia e philia (enquanto impulso de todo o filosofar), mais duas ligações interessaria averiguar: 1. não será que alguns outros filósofos fizeram do amor um tema central? Que tinham a dizer, que disseram sobre ele? E, finalmente: 2. não foi a vida de certos filósofos um testemunho eloquente de amores, interditos ou não, que os ajudaram a pensar essa coisa, ou em que a sua filosofia do amor se reflectiu?

Naturalmente, o perigo de um empreendimento deste género é o da confusão entre a reflexão filosófica sobre o amor e a biografia amorosa de filósofos. Todavia, desde que se previna metodicamente tal confusão, mostrando, pelo contrário, como se não está em face de duas dimensões mutuamente alheias, mas que se interpenetram e influenciam, a obra tem pertinência e sentido. Aliás, essa dialéctica parece-me o melhor do livro: não ignorávamos as inclinações e os casos amorosos de Sócrates; nem a estranha aridez da vida erótica de Kant; nem a trágica paixão de Nietzsche por uma mulher pela qual alguns dos melhores espíritos (com seus respectivos corpos) se apaixonaram também; nem a estranha, tumultuosa e atormentada relação secreta entre Heidegger e Hannah Arendt; ou o tipo particularíssimo de parceria entre Sartre e Simone de Beauvoir. O que vale a pena é pensar essas experiências à luz das interrogações que os moviam, como vivências sobre que reflectiam ou que a sua reflexão de algum modo marcava.

O «casamento» entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir é, a esse respeito, interessantíssimo. A teoria e a prática nem sempre coerentes; o que ambos acordavam e diziam sobre o que era a sua relação, em contraste com o que terceiros dela disseram; a própria diferença entre o que cada um afirmava e aquilo que secretamente desejava (e viria a lume em cartas só posteriormente conhecidas) obrigam-nos a estar conscientes dos riscos da obra de Aude Lancelin e Marie Lemonnier: algo que a qualquer momento poderia resvalar para uma espécie de literatura cor-de-rosa, a palpitar de revelações chocantes sobre os famosos - mas que, na medida em que evita cuidadosamente as armadilhas da facilidade, só pode tornar-se um fascinante livro: trata-se, afinal, de mostrar como o amor foi vivido e pensado, pensado e vivido, ao logo do tempo, por pensadores dotados de corpo. A filosofia não é necessariamente uma ascese. E, no sentido que hoje atribuímos à palavra, Platão não era seguramente platónico. [P.S: a propósito do corpo: o que eu tinha em mente é que o amor é sempre físico, ainda que não seja erótico ou sexual. Existe um corpo que, olhando carinhosamente o amigo (ou pai, ou mãe), olha no fundo um outro corpo; é o meu rosto que sorri à minha filha, é a minha mão que lhe afaga os cabelos...]

NIETZSCHE PARA LOU ANDREAS-SALOMÉ, QUANDO SE CONHECERAM

«De que estrelas caímos nós um para o outro?»

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

MIGUEL DE CERVANTES: UMA CITAÇÃO DO QUIXOTE

«Estando eu um dia em el Alcaná [rua de Toledo com muitas bancas de mercadores, nota de J.P.] de Toledo, chegou um rapaz a vender uns catrapázios e papéis velhos por uma moeda; e como sou um aficcionado da leitura, mesmo que sejam os papéis rasgados das ruas, levado por esta minha natural inclinação, agarrei num dos catrapázios que o rapaz vendia, e percebi-lhe caracteres que reconheci serem árabes. E como, apesar de os conhecer, não os sabia ler, andei vendo se aparecia por ali algum mourisco aljamiado [isto é, «conhecedor de castelhano», JP] que os lesse, e não me foi muito difícil topar semelhante intérprete, pois mesmo que procurasse um de outra melhor e mais antiga língua, o toparia. Por fim, a sorte fez-me deparar com um, que, dizendo-lhe eu qual era o meu desejo e pondo-lhe o livro nas mãos, o abriu a meio, e lendo um pouco nele, começou a rir-se.

«Perguntei-lhe de que se ria, e respondeu-me que de uma coisa que aquele livro tinha escrita na margem, como anotação. Disse-lhe que ma dissesse, e ele, sem deixar a risota, disse:

«- Está, como disse, aqui na margem escrito isto: "Esta Dulcineia del Toboso, tantas vezes nesta história referida, dizem que teve melhor mão para salgar porcos do que outra mulher qualquer de toda a Mancha".

«Quando ouvi dizer «Dulcineia del Toboso», quedei-me atónito e suspenso, porque logo se me representou que aqueles catrapázios continham a história de D. Quixote. Com esta imaginação, dei-lhe pressa de que lesse o princípio; assim o fazendo, mudando de improviso do árabe para castelhano, disse que dizia: História de don Quixote de la Mancha, escrito por Cide Hamete Benengeli, historiador árabe.»

Mil perdões pela tradução que aqui ouso. Posto isso, vamos ao que importa: delicio-me com este embuste - Cervantes pretensamente revelando, numa determinada passagem do D. Quixote de La Mancha, de que é o autor, como teria descoberto certos «catrapázios» contendo essa história (atribuída, pois, originalmente a um tal historiador Cide Hamete Benengeli). Como o D. Quixote é moderno. Como Cervantes, em 1605, já inventava e usava meios para criar a verosimilhança do seu romance. Como, depois, este recurso veio a ser repetido, ao longo da história da literatura - e nunca se esgotou.

CITO

«[a escrita] é também uma escuta

Mariana, em comentário ao meu post anterior

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O MEU BALANÇO BLOGOSFÉRICO

Mariana escreve, em poucas linhas, um post que acerta em cheio no lado mais interessante da blogosfera: a riqueza da comunicação. Não menciono esse texto porque este menciona o meu blogue, ora essa. Faço-o porque também eu tenho vontade de alinhavar, em jeito de balanço (injustamente parcial), alguns tópicos sobre o quanto essa experiência me trouxe.

Quando iniciei o Profissão: Leitor não tinha quaisquer peneiras. A sério. Nem me lembro bem da história - recordo aquela espécie de fome de escrever sobre os livros que amo, numa perspectiva completamente despretensiosa, de leitor, não de académico nem de crítico. Às vezes, um livro surgia como pretexto para falar mais sobre o modo como o encontrara, do que sobre ele; mais sobre as minhas emoções ao lê-lo, do que sobre ele; mais sobre a minha vida (subjectiva e objectiva) em redor do dito, do que sobre ele. A quem raio poderia isso interessar?

E, no entanto, interessou. Suponho que as minhas primeiras seguidoras terão sido algumas ex-alunas que, um dia, me reviram, e a quem referi o blogue. Depois, chegaram leitoras brasileiras de nomes delicados e sonantes, com os seus próprios inesperados blogues. Entretanto, uma Minhota descobriu-me (a propósito de um texto sobre Dona Tartt) e, com o lirismo da sua visão e da sua escrita, veio dar-me conta do que significavam para si as leituras [em] que eu [me] expunha. A seguir, tropeçou em mim Beatrix Kiddo, cujo blogue, Tenho Estado a Ler Whitman, me permitiu a descoberta assombrada de como achar a frase memorável (que B. vai, julgo, pescando e reunindo num caderno mágico) e casá-la eternamente com a imagem justa (que B. pesquisa infatigavelmente). Mas não só: através de Beatrix abriu-se o meu horizonte blogosférico: alguns blogues de verdadeiros eruditos, que nem me atrevo a comentar para não lhes parecer demasiado simplório - mas que não resisto a consumir, como um viciado -, ou os leitores cultos e cheios de curiosidade, que, no longínquo Brasil, sinto tão próximos (Velton Clarindo e Jamil) ou, em Portugal, os perfeitos Anita no Alfarrabista, Rua da Abadia e a A Namorada de Wittgestein.

Só mais tarde Mariana se cruzou comigo. E a minha sede de cultura brasileira (onde eu já encontrara literatura, poesia e música sublimes, cinema e teatro muito bons, o melhor e o pior da televisão, uma imprensa excelente e variadíssima, um trabalho de tradução cuidado, rigoroso e extremamente amplo...) foi sendo mitigada pelo seu blogue profundo e riquíssimo, repleto de caminhos e de surpresas, de jogos de linguagem e de reflexão, não desdenhando dos casos de vida, da profissão, música por todos os poros, cinema. Mariana discute comigo. Obriga-me repensar e a voltar atrás em certos preconceitos. Lança barcos como quem dispara setas, sem repouso. Indica-me novos blogues: fez-me descobrir Zé Alberto, ousado e inventivo amigo do rendilhado barroco de Agustina e da ferocidade provocadora de José Vilhena.

E, tenteando, tacteando, sinto-me profundamente realizado neste blogue pelo que ele tem de abraço, de conexão, de comunicação vital. Como diz um certo anúncio: Podia viver sem ele?! Podia. Mas não era a mesma coisa...

domingo, 26 de dezembro de 2010

CITANDO SOLOMON: ACERCA DO ESTILO EM FILOSOFIA

«Mas o estilo em filosofia não é unicamente uma questão de [...] sensibilidade literária: é em primeiro lugar um estilo de pensar, uma abordagem da vida e não somente uma maneira de escrever. Um estilo não é superficial mas profundo, não um jogo mundano mas uma visão do mundo, uma profunda expressão daquilo que uma pessoa é. Um estilo é ele próprio uma filosofia, ou, para inverter os termos, a filosofia é, primeiro que tudo, uma questão de estilo

Robert C. Solomon, Living With Nietzsche - uma das minhas prendas natalícias. (Tradução minha, para o bem e para o mal...)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

UMA MENSAGEM BREVE

Aos meus leitores, os desejos sentidos de um bom Natal e de que, no conjunto das suas prendas (penso logo em prendas: que fútil sou!, querem ver que nem falo de «paz» como as misses...?), venham alguns livros por que possam apaixonar-se.
Conto muito com uns quantos.

Logo volto.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

FRADIQUE MENDES: O INEFÁVEL PACHECO

«Pacheco não deu ao seu País nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque «tinha um imenso talento». Todavia, meu caro sr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida sobre eminências sociais: deputado, director-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par, presidente de Conselho - Pacheco tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento. Mas nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquele imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos colectivos, a massa compacta da Nação murmurando em redor de Pacheco «que imenso talento!» o convidavam a alargar o seu domínio e a sua fortuna - Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio como no cofre de um avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos óculos, bastavam ao País que neles sentia e saboreava a resplandecente evidência do talento de Pacheco

Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes [VIII]

EÇA DE QUEIRÓS: A CAPITAL



Às vezes, pergunto-me se não foi com Eça de Queirós que aprendi a captar o cómico das coisas. Sim, eu sei, a génese do meu sentido de humor, valha ele o que valer, tem uma impagável dívida que contraí com o meu avô, o meu tio, o meu irmão, o meu primo. (Deve ser um humor excessivamente masculino, este que só parece ter como referência os homens da minha família); mas, em última análise, avô, tio e primo formaram-se na leitura de Eça de Queirós, citavam-no abundantemente, lembravam e imitavam falas como: «Homem, deixe-me olhar para si, que você é um monstro» (Alves & Cia.), ou: «Para ver as igrejas, Titi, para ver as igrejas» (que é a justificação apressada do hediondo Rapozão, quando, em A Relíquia, cai na asneira de dizer à tia, rica e beata, que gostaria de ir a Paris, esse «antro de perdição!», como exclama imediatamente a velha senhora).

É difícil, depois de o ler, não ficarmos a falar e a escrever como Eça, com a sua ironia incisiva e cáustica, sintetizada em frases breves, implacáveis, sob a aparência inocente e anódina que lhe advém dos diminutivos e das expressões típicas de velhas, padres e arrivistas lusos. É difícil que não nos deixemos penetrar pelo seu veneno saudável. É difícil que, a prazo, a sua visão do ridículo da hipocrisia não se aproprie dos nossos próprios olhos.

Todo o Eça me foi importante. O livro que ainda hoje prefiro é o mais queirosiano da sua obra; não me faz a menor confusão que, em outro sentido, secreta e objectivamente, possa até ser o menos queirosiano de todos. Falo, evidentemente de A Capital: se este romance, publicado postumamente, teve já demasiada intervenção de algum descendente (que o terá rescrito, mais do que revisto), a verdade é que o que ficou e aí está é, no espírito e na letra, puro Eça de Queirós.

Não deixa de ser tocante a história do «rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos» e um sugestivo velho «paletó cor de pinhão», que, acreditando na poesia que lhe transborda da alma, vem à capital em busca da oportunidade de publicar a sua obra. A catadupa de gente que o despreza, ou que o quer converter a algo, ou que deseja simplesmente aproveitar-se da sua ingenuidade e do seu sonho, ou que o ama, ou que o ridiculariza, ou que o expõe, ou que o agride, a sombra de um amor ideal e impossível, a descrição de certos hotéis ou de certos restaurantes, infectos e absurdos, ou das situações em que os equívocos se reproduzem como coelhos, fazem de A Capital um romance em que o trágico e o cómico genialmente se unem naquela substância perante a qual nunca sabemos se havemos de chorar ou de rir.

Detenham-se, por exemplo, na narração de um jantar que se irá preparar às custas de Arturzinho, para que este se dê a conhecer (e à sua obra) à sociedade ilustre e cultivada de Lisboa. «Aperfeiçoavam o plano primitivo: além da leitura, poderia haver música.; seria necessário convidar o Sarrotini; para fazer um brinde à imprensa, convida-se o Carvalhosa! E Artur via elevar-se pouco a pouco aquela festa, como um grande troféu que se orna. Melchior acabou por afirmar que a coisa "havia de dar brado no país!"»; e vejam, com um horror movido a gargalhadas, o desequilíbrio em que se vai fazendo esta festa até um certo fim, que eu não deverei - por muito que me apeteça - aqui revelar.

Regresso sempre a Eça de Queirós. O mundo dá voltas, descubro - felizmente - autores novos (que são muitas vezes, por paradoxo, autores bem antigos), sigo variados rumos, rio-me de outras comédias e de outros comediantes: mas, inevitavelmente, retorno a Eça. Leio a meu filho umas páginas de Alves & Cia., um pouco espantado de que ele não ria como eu, retomo pela quinta vez a leitura integral de Os Maias, vasculho as cartas mais divertidas de Fradique Mendes. E folheio capítulos de A Capital. Convivo com o Ega, o Alves, o Rapozão, o Fradique, a viúva Pacheco (num texto absolutamente extraordinário). Busco esse inolvidável Pacheco, homem dado por brilhante, em Portugal inteiro, embora nunca tivesse escrito ou dito algo que se aproveitasse, porque, avaro, aferrolhava no crânio, como num cofre, as suas melhores ideias e as mais interessantes frases. E, pelos olhos do autor, vejo o Portugal que é essencialmente o mesmo de sempre. O mesmo de sempre.

domingo, 19 de dezembro de 2010

FRIEDRICH NIETZSCHE: A GAIA CIÊNCIA


Agora que tenho andado sem leituras novas, acabando, simultaneamente, vários livros começados em diversas fases, interrogo-me sobre qual o livro de que gostaria de falar no blogue. Existe algum que me tenha marcado inesquecivelmente e ainda aqui não referisse? A pergunta, como perceberam, é uma ironia de efeito retórico. Existem inúmeros, claro. Aliás, deixem-me já tomar nota de alguns, para me lembrar mais tarde: A Montanha Mágica, de Thomas Mann. O Idiota, de Dostoievski. Os fabulosos: Canção de Amor de Mr. Prufrock, e: Terra Devastada, ambos de T. S. Eliot. E o Quijote? Ou o bizarro Almas Mortas, norteado por uma ideia absolutamente impagável?

Deixemo-nos de divagações. Duas razões me põem no trilho de um certo livro cuja leitura resgato hoje à memória: o facto de Beatrix citar amiúde esse autor; e o facto de me ter lembrado dele no decurso da discussão com Francisco (que aqui já também mencionei). Começo então por dizer de que autor se trata: Friedrich Nietzsche. Livros seus poderiam ser vários, de entre aquela série de Obras Escolhidas, numa tradução cuidada, que a Relógio D'Água editou. Mas decido-me: nenhum Nietzsche me influenciou como o Nietzsche de A Gaia Ciência.

Não que todos os meus conflitos com o filólogo-filósofo estejam definitivamente sanados. Não poderiam está-lo, uma vez que há poucos pontos comuns entre nós dois (perdoem-me a ousadia da comparação): ele é um filósofo e um escritor de génio e eu sou um leitor limitado; ele leva a sério a plenitude do pensar por si próprio, enquanto, pelo contrário, algo do espírito de rebanho faz parte da minha condição: Nietzsche, a despeito dos factores históricos e culturais que terão determinado o seu pensar, pensa sempre autónoma e indomavelmente. Já eu estou demasiado preso ao que a minha História e o meu tempo me ensinaram a «dever» pensar.

É Nietzsche que me ensina, aliás, a reconhecer em mim mesmo essa cobardia: «A reprovação da consciência», escreve ele, «mesmo entre os mais conscienciosos, é fraca em comparação com o seguinte argumento: "Isto ou aquilo é contrário aos bons costumes da tua sociedade". O olhar frio, a boca contraída da parte daqueles entre os quais e para os quais a pessoa foi educada, eis o que mesmo o mais forte teme. Que é que ele verdadeiramente receia? O isolamento! Este argumento é capaz de abalar mesmo os melhores argumentos para uma pessoa ou para uma causa. Assim se exprime, em nós, o instinto gregário.» [A Gaia Ciência, # 50]. Mas, talvez precisamente por causa da auto-crítica a que ele me conduz, detecto, nos seus textos, a respiração oposta, a inteligência contrária ao «instinto gregário», a liberdade e a coragem que chamam por mim, comigo se confrontam e nunca me deixam dormir.

A Gaia Ciência é uma poesia singular: escrito em parágrafos, tão ao jeito de Nietzsche, alguns brevíssimos, outros relativamente longos, e naquele tom religiosamente ateu, aforístico e arrogante que o caracterizam, este livro compraz-se com o paradoxo e a constante deslocação de ângulo (frequentemente: inversão) relativamente àquele em que assenta o hábito e o senso comum. É fascinante seguir a lucidez e a habilidade subtis de uma tal operação de mudar de enfoque, da procura de um olhar fresco e sem lastro, desmistificador, irónico e perigoso. É uma poesia (insisto: muito mais do que uma filosofia) à procura da alegria do saber: uma alegria que nos parece impiedosa e injusta, porque é sempre a assunção da vitalidade e da força que empurram «continuamente para longe de nós algo que quer morrer».

A Gaia Ciência é - foi sempre, para mim - o livro de um inimigo. Um inimigo fortíssimo e sem o qual teria ficado mais pobre. Não é qualquer um que consegue ser tamanho e tão digno inimigo: competente e completo. Digo-o com o reconhecimento e o carinho que lhe são devidos. Gosto muito dos meus amigos. Todavia, sei que - raramente, mas às vezes - surgem inimizades que fazem mais pela nossa evolução do que algumas amizades.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

CAMILO PESSANHA: VIOLONCELO

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trémulos astros,
Soidões lacustres...
_ Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
_ Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.

Camilo Pessanha, in Clepsidra

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

E QUANTO ÀS OBRAS MAGNÍFICAS QUE NADA TÊM A DIZER?



Numa demorada discussão com o meu amigo Francisco, hoje, apercebi-me de que nos divide a importância da «mensagem».

Francisco exige mensagem à arte. Considera insatisfatória uma obra que, mesmo tocando-lhe nas vísceras e nos sentimentos, não lhe fale igualmente à razão. A tudo tem de subjazer uma intenção - e o trabalho do receptor é sempre um trabalho hermenêutico, o desvendamento de uma narrativa intrínseca. Só faz sentido, para o meu amigo, o que é verbalizável. Aquilo de que se dirá: «Percebo o que queres dizer, autor».

Meu amigo entende que o objecto de arte que não contém um discurso a revelar é um objecto de arte menor e pobre. A Miró, Francisco preferirá sempre o Picasso da Guernica.

Do meu ponto de vista, pelo contrário, é menor & pobre uma arte que se deixe resumir a um discurso (ético, político, religioso, o que seja). A arte, mesmo quando contém uma concepção sobre o real no seu ventre, é arte na medida em que a supera, em que se torna essencial para além dessa concepção.

Francisco pede-me exemplos; digo-lhe: a expressão artística de Nietzsche é sempre maravilhosa, até quando, na minha perspectiva, está errada. Consigo fruir, fascinado, o movimento do seu pensar, mesmo nos momentos - frequentes - em que filosófica ou ideologicamente não estou de acordo com o conteúdo desse pensar. A poesia de Camilo Pessanha, que me prende e me deslumbra, não fala à minha razão. Interessa-me muito pouco semanticamente. Ligo-me a ela pela sua sonoridade, pela transformação das palavras em pura música.

E, finalmente, os surrealistas nunca me falaram à razão: falavam-me à desrazão. Nunca me interessaram pelo propósito, mas pelo despropósito. Até eles tinham um programa revolucionário? Quando começaram a tê-lo, começaram a escangalhar-se...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AXLE MUNSHINE, O VAGABUNDO DOS LIMBOS



A Banda Desenhada sempre teve um lugar estranho e um estatuto ambíguo. Consumida, quase como provocação, pelos jovens da minha geração, dificilmente poderia ter importância no elenco da Arte séria. Era um pouco como o que o graffiti hoje é: uma forma de expressão irreverente, que os adultos teriam de odiar e desprezar e de que os mais novos se serviriam necessariamente como arma para desafiar a lógica e a estética dos pais.

Pergunto-me em que se tornará a BD - ou em que se tornou -, agora que já nem os jovens se interessam por ela, considerada obsoleta num mundo onde tudo se move tridimensionalmente. Provavelmente, um reduto de maluquinhos, fanáticos, fetichistas - ou (coincidente ou alternativamente) de académicos que fazem do Batman ou do Homem-Aranha objectos de dissertações carregadas de minúcias hermenêuticas.

Todavia, seria injusto que, neste blogue, longe em geral da Banda Desenhada mas sobre leituras (e não se «lê» uma BD, tanto quanto se «vê»?) não falasse acerca dessa arte que alimentou as minhas tardes intermináveis, me fez passar por mudanças bruscas de emoção, das mais subtis - ainda a ser compreendidas e treinadas pelo puto emocionalmente ignorante que eu era - às mais óbvias; povoou a minha imaginação e, sem dúvida, a ampliou, lhe deu recursos insuspeitados, lhe abriu corredores numerosos do espaço-tempo, lhe possibilitou sinapses improváveis.

Poderia falar de Tintim, o meu primeiro herói; ou de Corto Maltese, o meu último herói, e aquele em cujo grafismo despojado e sombrio mais trabalho me deu penetrar. Mas não. Acabarei por falar de Axle Munshine. Por causa das personagens; da ilimitação de mundos por onde se passeia o protagonista, em busca de uma quimera; por causa do desenho em que esses mundos alternativos nos são mostrados: e por causa da ideia que move as aventuras do «vagabundo dos limbos»: o que é o sonho senão indício de um universo alternativo, uma realidade pararela? E, posto este pressuposto, que sucede quando, no seu mundo, um homem [Axle] sonha uma mulher [Chimeer] cuja essência o ilumina e transtorna; que ele sabe que não pode deixar de existir, mas existe certamente alhures? Que sucede quando a pessoa a que nos sentimos mais intimamente ligados pertence a uma realidade de que estamos para sempre desligados, a que não acedemos nem provavelmente acederemos, um universo outro e para sempre outro?

Axle Munshine foi meu guia. Se não na vida prática, pelo menos no domínio da fantasia. Não o esqueci. Os seus álbuns desapareceram no tempo. Todos. Meu filho, a quem procurei mostrar alguns, numa biblioteca, não se interessou por esta longa odisseia intergaláctica em demanda do impossível. Ele é de uma geração para a qual os impossíveis não merecem demasiada atenção. Não sou Axle Munshine. Seria incapaz da sua insensatez. Mas, em teoria, não invejo a sensatez de meu filho.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

e.e.cummings: a poesia criando a sua regra


No texto em que descrevia o que fora a nossa sessão de homenagem a Tolstoi, o jovem João d'Eça aboliu as letras maiúsculas. Num comentário ao post, dizia-se que tal se deveria à pressa, ou à influência de valter hugo mãe.

Posso escrever unicamente com minúsculas. Na poesia, então, a tendência generaliza-se; é muito difícil resistir. Mas parece-me que o facto significa, antes de mais, que seguimos uma moda. Podemos fazê-lo se ela nos for útil, enquanto o é, na medida em que o seja. Mas, dois pormenores: 1: não vale a pena reivindicar o acto como um gesto de originalidade e rebelião, porque se há coisa que deixou de ser é um gesto de originalidade e rebelião. 2: não vale a pena encontrar-lhe uma fundamentação teórica, como seja a pretensa «democratização» das palavras, porque as palavras não têm necessidade de ser cidadãs de uma qualquer democracia, tanto mais que as empregamos para exprimir diferenças, mais do que uma sonhada igualdade entre elas. [Escrito pós-comentário de Mariana: Ou, pelo menos, não vale a pena confiar excessivamente na tentativa de teorização fácil que tende também a impor-se...]

Dito isto, falemos daquele poeta em quem essa opção foi verdadeiramente original, um gesto de rebeldia e subversão, de modo a desconstruir a forma gramatical a priori, o modelo convencional da fabricação da frase, ou do verso, ou da poesia: e.e.cummings.

Nos poemas de e.e.cummings tudo é possível: um pontuação que interrompe abrupta e erradamente, uma exaltante liberdade no uso dos meios da escrita, ligações e intervalos estranhos e inovadores. Mas basta prestarmos atenção ao seu lindíssimo poema, na lindíssima tradução de Augusto de Campos, que se transformou numa lindíssima balada, cantada na inesperada voz de Zeca Baleiro - apresentada no meu post anterior - para percebermos que, na poesia de cummings, se trata de uma busca muito séria e expressiva de sentido e de beleza. E essa busca, esse sentido, essa beleza justificam e compreendem que tenha de se escavar a norma, subvertendo-a, para dela extrair a pura maravilha.

Os que vieram depois, se quiserem, continuem por aí. Mas não se esqueçam de que, agora, é fácil. Não se esqueçam de que, para serem «originais» por esse caminho, chegaram talvez demasiado tarde. E de que não há muitos e.e. cummings.

e.e. cummings: somewhere i have never travelled (na voz de Zeca Baleiro)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

JOHANN W. GOETHE: FAUSTO


Fui, por várias razões, um leitor compulsivo do Fausto.

Por causa de uma curiosidade, digamos, cultural, a propósito de uma obra que impregna a cultura e a arte ocidentais, por causa da história de uma paixão posta à prova (precisamente entre Fausto e Margarida), por causa da «Noite Clássica de Walpúrgis», que reúne, numa delirante orgia, seres demoníacos das mais diversas mitologias, e por causa de Mefistófeles himself: um diabo que encarna o lado mais inteligente e sofisticado do mal, como aristocratizando a perversão (o contrário, por acaso, do que a pintura ao lado sugere) não pode deixar de exercer sobre nós esse fascínio perigoso e arriscado que explica a nossa paixão desesperada por todos os Hannibal Lector da literatura ou do cinema.

Fausto é, no fundo, a origem inescapável de muitas obras tardias, que aprendemos a amar: desde algumas das mais eruditas - a ópera de Gounod ou o cinema de Murnau - até outras, consideradas, porventura, superficiais, como Tintim: há que não esquecer que, por exemplo, nas aventuras de Tintim, a impagável diva Bianca Castafiori canta obsessivamente - e com efeitos catastróficos muitas vezes - a ária das jóias, do Fausto, de Gounod: ela representa uma Margarida opulenta e corpulenta, de grandes mamas e já, talvez, demasiado velha para a personagem.
Ou que dizer, por outro lado, de Margarida e o Mestre, romance magnífico de Bulgakhov, que por todos os seus poros respira o mito fáustico e a cultura goethiana? Não poderíamos amar tão perdidamente estes caminhos sem enfrentar o seu fundamento e ponto de partida.

Li-o por dever e por prazer: às vezes simultaneamente por dever e prazer, mas, durante longas passagens, sem qualquer prazer, como se a minha alma estivesse sob um contrato que não pudesse quebrar. É um poema em que se exprimem ideias e imagens a que daremos importância mais tarde: não no acto de as ler, e sim quando, depois, talvez muito depois, nos apercebemos de que constituiram, no nosso espírito, uma visão intensamente trágica, de que nunca mais nos libertaremos.

Há livros que interessam pelo prazer que proporcionam como leitura, ainda que os esqueçamos assim que chegarmos à última página; e outros cuja leitura se tornará imprecindível pelo trabalho que, sobre nós, se iniciará quando a concluímos, depois de passada a última página: imprecindível para sempre.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

MURIEL SPARK: MEMENTO MORI



Leio Muriel Spark. Já fora anteriormente laçado por O Apogeu de Miss Jean Brodie, não resisti a trazer da livraria Memento Mori.
Bastam poucos capítulos para sentirmos que um veículo se pôs silenciosamente em marcha e nós estamos no seu interior. Talvez quiséssemos ter mais tempo para inspeccionar os aposentos em que viajaremos: fazer uma visita à carruagem, antes de decidir se nos apetecia mesmo seguir viagem. Demasiado tarde. Não podemos saltar em andamento.

O primeiro laço que nos retém é a linguagem, de uma simplicidade sem ruído: mas esse não-ruído visa ocultar um segredo. Assim principia a história: algo fora dito a Dame Lettie, num telefonema anónimo - que não era, aliás, o primeiro, pois vinha sendo regularmente repetido -, mas não sabemos o quê. Surpreendemos as emoções que o telefonema provoca (a curiosidade, o medo, o leve espanto das personagens); assistimos a reacções, mas não sabemos qual foi a mensagem que as suscitou. Quando a polícia ou o irmão de Dame Lettie Colston lhe perguntam o que lhe havia sido dito, esta responde: «O costume!»

Pouco depois - muito pouco depois, três ou quatro páginas a seguir -, saberemos que frase é essa que, num ritual sinistro, tem sido telefonicamente formulada; mas, mesmo aí, continuaremos sem perceber com que intenção. Já para não lembrar que não sabemos quem o faz. O segredo enquista-se-nos no espírito, atormenta-nos. Precisamente em torno desse segredo, directa ou indirectamente, várias personagens vão emergindo. Emergindo parece-me aqui um termo adequado. Em cada capítulo «emerge» uma nova peronagem, que o capítulo anterior vinha antecipando: elas olham-se, chocam entre si, pensam, conversam. (Os diálogos são brilhantes). É quanto basta para que os caracteres se tornem de uma inegável consistência. A narradora não se perde em dissertações psicológicas acerca de cada uma, nem disso carecemos para ver como são. O que são. Talvez as não compreendamos inteiramente, mas percebemos nas entrelinhas, isto é, nas suas reacções ou nas suas manias, os tipos neuróticos diante de que estamos, presos a si mesmos e aos padrões em que se encerraram.
É curioso: aprendemos, pois, a vê-las e a prevê-las a partir, paradoxalmente, do que deveria ser uma certa imprevisibilidade do seu comportamento. Porque também nessa imprevisibilidade se captará, por fim, uma rotina, um padrão. Por exemplo: que a propósito da situação que aflige Dame Lettie (o insistente telefonema anónimo), Godfrey Colston, seu irmão, mais do que preocupar-se com o problema propriamente dito procure o pretexto para se comparar com ela e para confirmar se a irmã estará «menos bem conservada», revela-nos o eixo e os limites daquela personalidade. Do mesmo modo, ao fazer da questão da«perda das faculdades», a respeito de todos, a sua questão permanente, recorrente, Godfrey faz-nos ter noção do que poderá ter sido a experiência traumatizante da vida com a sua mulher (uma talentosa escritora que, com a idade, efectivamente, veio «perdendo faculdades»), mas também nos deixa adivinhar o medo, que o assombra, de que as suas faculdades possam vir a degradar-se.

Já em O Apogeu de Miss Jean Brodie a repetição adquiria uma função decisiva. Repete-se uma frase que desvenda, fatalmente, o seu inverso (ali, era justamente a ideia do «apogeu» que, afinal, deixa adivinhar o pressentimento da decadência); exprime-se um optimismo que oculta um pavor, como se por enunciar aquilo em que queremos acreditar o pudéssemos tornar verdadeiro e espantar a possibilidade oposta, que nos assobra. Muriel Spark fabricou, portanto, uma história, tal como a anterior o era, ambígua e subtil, cuja realidade raramente está no que é dado a ver ou no que é dito, mas precisamente no que não é dito; ou cuja realidade terá de ser arrancada, como se de uma psicanálise se tratasse, a sinais, a sintomas: a uma redundância que se auto-anula, a um silêncio com segundo sentido, a uma falha, a uma distância. Toda a riqueza da obra reside nessa ironia. É fácil, de resto, perdermo-la de vista, confundindo o conteúdo manifesto com o latente: quanto a mim, já houve um realizador que o fez. Veja-se o caso de um certo filme sobre Miss Jean Brodie.

sábado, 4 de dezembro de 2010

UMA CITAÇÃO EM SEGUNDA MÃO: MAS A CITADORA É TAMBÉM INTERESSANTE

«Temos de proteger sempre aquilo de que os outros fazem troça em nós

Roland Barthes, citado por Adília Lopes

GONÇALO M. TAVARES EM ENTREVISTA A CARLOS VAZ MARQUES







«[...] o livro é uma coisa absolutamente extraordinária. É de outro mundo e de outro tempo. O livro é outro ritmo: não é para aquele minuto, não é para aquele dia, é para aquela semana.
[...]

«O livro é o objecto de culto da lentidão

TOLSTOI: RESSURREIÇÃO




Sobre uma sessão de homenagem a Tolstoi aquando dos cem anos de sua morte (e relativamente à qual, em post anterior, me confessei um tanto nervoso), poderão ler tudo aqui: é o sumário dos acontecimentos feito pelo jovem João, de quem fui parceiro na rara aventura de falar, para uma sala cheia, acerca de Lév Tolstoi (ou Leão, como aí se diz).

Mas há outra coisa. E é do que agora venho aqui falar. Nessa Sessão, João d'Eça referia um romance de Tolstoi, Ressurreição, que eu não conhecia. Em poucas palavras, expôs o núcleo da trama: e tão bem o fez que - não no próprio dia, e talvez nem no dia a seguir, mas, assim que pude - me dirigi à Biblioteca minha vizinha e o requisitei.

Ressurreição é inesquecível. Não se admite que um leitor que se apaixona por Ana Karenina (a personagem da obra homónima, que li, aliás, só recentemente) e encontre em Guerra e Paz uma fonte de descobertas poéticas e filosóficas, não veja em Ressurreição um romance maior. Trata-se, como em todo o Tolstoi, da queda e da possibilidade [ou não] de resgate das suas personagens. Trata-se, como em todo o Tolstoi, da reflexão sobre a culpa - sobre as reais implicações de uma culpa antiga, que ressurge do passado - e sobre a verdadeira dimensão da liberdade. É a minha consciência que decide dos meus actos? Ou a consciência sobrevoa, mais ou menos em diferido, esses actos a que chamo «meus» mas são, antes do mais, determinados por medos, cobardias, disposições genéticas, uma imagem a que a sociedade espera que eu corresponda?

Tolstoi constrói uma situação que é o centro dramático de todas estas questões: chamado a participar de um julgamento, como jurado, o príncipe Nekliodov é posto perante Katiucha Maslova, prostituída desde nova, acusada de ter envenenado um cliente. Mas Katiucha é uma mulher que, em jovem, o próprio Nekliodov seduziu e perdeu, num período da sua vida - tão subtilmente captada por Toltoi na complexa diversidade de facetas - em que a consciência moral está como que adormecida, aguardando, diminuída em face da força da busca do prazer e do bem-estar, que se impõe, egocentrista e brutal.

Por outro lado, esta situação e este tema são, nas mãos do génio que é Tolstoi, pretexto e instrumento para o exercício de observar e apontar pequenas e fugazes movimentações do espírito. A consciência nunca é monolítica: uma personagem não é absolutamente boa nem absolutamente má. Erra, mas perante o seu erro, enfrenta-se e começa, verdadeiramente, a conhecer-se a si própria: os sentimentos transformam-se a cada instante, retornam ao ponto de partida, ou dali se escapam precipitadamente; quer reparar e não quer reparar o mal que fez, põe em luta razões para amar e para odiar o mesmo objecto, desilude-se com o que fez e, por outro lado, justifica-o. Tudo é incerto e vago, mesmo quando estabelece um propósito e decide torná-lo o eixo da sua «ressurreição».

E nisto, não só nisto mas «nisto» sobretudo, Tolstoi é o mais actual dos romancistas, o mais subtil. O que menos julga as suas personagens: o que abrange, divina e compreensivamente, todos os lados de todos homens.