quinta-feira, 24 de agosto de 2017

CARLOS MALHEIRO DIAS: OS TELES DE ALBERGARIA



Posto preto no branco: "Carlos Malheiro Dias deveria ter sido o nosso maior romancista depois de Eça de Queirós. É mesmo justo dizer que dele tinha as virtudes sem dele ter os defeitos." Escreveu-o João Gaspar Simões num artigo sobre a prosa e o romance contemporâneo, que nem sei por que acaso me prendera. Curioso que eu nunca, sequer, até àquele momento, tivesse notícia desse autor que mereceria o 2° lugar no pódio, ou até o 1°, se faz o menor sentido afirmar que possui as qualidades e lhe faltam os defeitos do campeão.

Haveria que tirar a limpo. Sob o efeito de uma espécie de febre, pedi em livrarias, vasculhei em bibliotecas. Não o conheciam. Transitei para a fase da encomenda. Na Fnac, não sabiam a quem encomendar. Na Gatafunho, uma pesquisa esforçada e cortês concluíu isto: que Os Teles de Albergaria e outras obras de Carlos Malheiro Dias haviam esgotado numa editora que nunca mais as reeditou e talvez tivesse mesmo falido; que, mais próximo de nós, alguma coisa do Autor fora publicada pela Vega, ou pela Nova Vega, aí pelos anos 80, e que podiam tentar. Tentaram. Uma semana, duas semanas, três - nada!

Não é incrível que um Autor com essa qualidade tenha de todo desaparecido na voragem do tempo? Que o hajam esquecido? Que não voltasse a ser editado, e que nem em sótãos sobrassem exemplares de capa desbotada? É um exemplo do género de reedição a que se dedicará a minha editora, quando eu tiver uma.

Compro, finalmente, a um desconhecido que, na internet, apregoa os livros que tem para venda. Recebi o meu exemplar de Os Teles de Albergaria, em muito bom estado, numa edição de capa dura e fitinha para marcar, do velho Círculo de Leitores, do qual nunca mais ouvira falar.

A semelhança da escrita com a de Eça de Queirós é assombrosa. Fica-se, inicialmente, com a sensação de estarmos a ler uma obra perdida do próprio Eça, um romance resgatado a uma qualquer sua arca. Os mesmos adjectivos que introduzem uma súbita ironia, o "grave", o "sólido", o "amplo" corrosivos; o idêntico recurso aos diminutivos ou ao "inho", que mancha de ridículo a humildade lusa: o Luisinho ou o Amadeuzinho; a mãozinha ou o licorzinho. O mesmo prazer na descrição de personagens em que, sob uma espécie de namoro com a beatitude religiosa, se insinua a inveja mais mesquinha, a preguiça e a gula, certamente a luxúria: abades à pesca de almocinhos ou jantarinhos, de olho brilhante focado em todos os prazeres materiais; ou beatas ressequidas, tomando o ressentimento ou o seu desprezo pelos outros por alguma forma de virtude.

Onde o aparente epígono de Eça de Queirós, o imitador inspirado, se afasta do Mestre e, provavelmente, o supera, é no fundamento filosófico e político do seu romance. Em Eça, a política resume-se ao pântano. É o escarro. A patetice dos Pachecos e dos Abranhos, dos deputados ineptos e dos pequenos interesses elevados a motor, a pulhice. Não passa disso. Pode ser devastador, mas mesmo na pele de Fradique Mendes não franqueia o limite do ridículo. Malheiro Dias, pelo contrário, procura que a saga dos Teles de Albergaria seja um microcosmo a partir do qual se reflicta a História política e das ideias do país, sobre o eixo do combate entre o absolutismo e o liberalismo, até à implantação da República. Assim, João de Albergaria, o último patriarca da linhagem, envelhecendo no centro trágico da desagregação da própria família dividida, devotara-se ao opus magnum da sua vida: essa  obra, monumental e para sempre inacabada, é um sistema filosófico e político, em que ele aspira a compreender por que razão falhara a ideia e o ideal do liberalismo (tal como o via Mouzinho da Silveira), e como ressuscitá-los através da sua filosofia, sustentadora de uma ética, uma pedagogia, uma teoria da sociedade e do governo.

As personagens de Carlos Malheiro Dias, em Os Teles de Albergaria, estão carregadas ainda de uma outra profundíssima tensão. Como decifrar, nas diferenças morais e de agir  entre elas - por exemplo em Joaquim, o filho moralmente são, e em Luisinho, imagem do vício e da maldade - a parte resultante da educação, ou do meio, e a parte genética, ou, como se diria então, devida a um sangue degenerado e ruim. Encontramos nessa análise a familiaridade com o pensamento dos teóricos em voga no seu tempo, como Lombroso, apostados em identificar, nos traços físicos dos criminosos, a evidência atávica da malvadez e da perversão que os determinaria ao crime.

Luís Forjaz Trigueiros, numa interessante introdução à leitura do romance de Malheiro Dias, aconselha a que nos detenhamos nas páginas da conclusão. A que nos demos bem conta da reencarnação do génio russo (Tolstoi, Eisenstein) com que é narrada a movimentação multímoda e complexa das tropas e da multidão anónima, vista «de cima e de longe». Luís F. Trigueiros cria uma insuportável expectativa. «O leitor vai ler a obra e julgar», responsabiliza-nos ele, convicto. A expectativa não será frustrada. O final é sublime.

sábado, 12 de agosto de 2017

JON RONSON: SO YOU'VE BEEN SHAMED


Ronson escreveu várias reportagens, que vieram sendo publicadas numa série de livros identificáveis pela composição gráfica e pela caricatura estilizada do autor, praticamente reduzida ao cabelo espetado e aos óculos redondos.

A sua escrita é simples, eficaz e divertida. Os temas chamam, de facto, por nós: há aquele a partir do qual se fez um filme estranho sobre homens com "alegados" poderes psíquicos, utilizados pelo Exército; um outro sobre a natureza e a banalidade do psicopata (banalidade num sentido não estranho ao que Arendt emprega, quando se refere à banalidade do Mal: escusamos de procurar sempre o torturador ou o assassino em série: esses seriam os psicopatas incomuns. Se falamos de um traço
de carácter, mais vulgar do que julgaríamos, então o psicopata pode ser o meu vizinho, ou um professor que tive, ou porventura o meu patrão, senão eu mesmo...); ou este livro, acerca da vergonha e da humilhação públicas.

Uma considerável parte do humor de Ronson tem que ver com a improbabilidade de certas personagens que entrevista, ou de situações absurdas em que essas personagens o puseram. A sua passagem por uma clínica da sinceridade como único meio de defesa contra a vergonha é hilariante. Depois, pensamos melhor. Isto são os EUA, que diabo! A mesma América que elegeu Trump: o que há de improvável nesses idiotas?

Jonah Lehrer (de quem tanto apreciei Proust era um Neurocientista, ainda a desgraça se não tinha abatido sobre o Autor), Justine Sacco ou Lindsey Stone são três exemplos, entre outros, de pessoas que nunca mais recuperaram a sua vida, por efeito de erros, seus, que a multidão anónima das redes sociais nunca perdoou. Os casos não são similares: Lehrer foi apanhado a inventar ou a distorcer frases de Dylan, como se as citasse. Inquirido sobre a exacta proveniência dessas citações, por um jornalista céptico e manhoso, mentiu sucessivamente. Exposto, foi sujeito a um vexame sem precedentes. Mas Sacco ou Stone são vítimas de afirmações que não mediram - as quais, porém, uma vez registadas em tweet, nunca mais as largariam, ou largarão. E "nunca mais as largarão" significa que já perderam muito do que é importante na vida de um adulto. Refiro-me a haverem sido despedidas, ficarem sem amigos ou ao afastamento da família mais próxima. Ainda hoje: escrevam-lhes os nomes no Google, e verão. Lá está a triste história de cada uma. Todos eles, Lehrer incluído, marcados para sempre.

A análise de Ronson nunca é profunda, mas toca aspectos que nos assustam e obrigam a pensar. A sua visão não está construída desde o início: altera-se à medida que sonda o tema, e que entrevista mais alguém capaz de acrescentar uma informação ou uma experiência; e essa autenticidade da sua busca, a coragem de questionar os seus próprios preconceitos, sempre na mira de uma coerência ética, não são pormenores despiciendos no interesse deste livro.