quinta-feira, 23 de julho de 2020

OLGA TOKARCZUK: CONDUZ O TEU ARADO SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS



Olga Tokarczuk ganhou o Nobel de 2019. Eu sei: o concílio sempre teve os seus esqueletos no armário (falo apenas de critérios dúbios, politicamente correctos, no pior sentido da palavra, e das injustiças daí decorrentes), mas ainda assim, pensamos que quando alguém que não conhecíamos "é distinguido" - estes lugares-comuns do universo dos prémios -, merece, no mínimo, que tentemos conhecê-lo, e nos pronunciemos.

Acontece, porém,  que a expectativa acaba condicionando, para o bem ou para o mal. E quando comecei a ler Conduz o Teu Arado, senti-me desiludido. A despeito de uma escrita muitíssimo interessante, que me tocou imediatamente, uma visão excêntrica (a da narradora, afinal uma excêntrica professora reformada, a braços com a sua tradução de Blake), um ambiente e um tema intrigantes, diversos e inexplicáveis assassínios que se vão sucedendo numa remota aldeia polaca, tudo isto é como que desperdiçado ao serviço de uma história que me pareceu maçuda, e de que me afastei paulatinamente, até que parei de ler e me agarrei a outros romances.

Porém, passado algum tempo (vários meses, de facto), lembrei-me dele e resolvi retomá-lo; a temperatura da expectativa e do interesse baixara, a memória da desilusão já não pesava sobre mim, e, pelo contrário, as inúmeras qualidades do livro começaram a fazer-se ouvir, a história ganhou um fulgor que nunca lhe sentira, de modo que voltei umas páginas atrás para reatar a leitura de um ponto seguro. O estado de espírito era outro, o romance é admirável e, já não estando eu previamente predisposto ao enfastiamento, fui gozando tudo quanto tinha para me oferecer.

A escrita, para já.  Ao contrário da instauração de uma "igualitarização" na redacção das palavras (muito em voga de novo, na recusa de dar mais  importância a umas snobes, optando por fazer desaparecer todas as letras maiúsculas, o que resulta,  quanto a mim, de uma digestão apressada e irrazoável do estilo do poeta William Carlos Williams), Olga Tokarczuk faz questão de que algumas palavras se escrevam com maiúscula, sem razão gramatical, sem outro motivo para além do poder misterioso e incontestável que delas se quer fazer emanar: "Noite", "Corças", "Horror", "Animais", "Morrer", "Alma" ou "Crepúsculo" são exemplos de palavras que merecem sempre maiúsculas (aliás,  na senda de Blake, que respira em todos os poros deste romance). Pode julgar-se um pormenor, apenas, mas é de pormenores que se gera a atmosfera de uma escrita.
Por outro lado, e considerando que a narradora e as suas teorias esdrúxulas sejam omnipresentes, tende-se para uma expressão  de uma inocência inventiva que é belíssima, como se ouvíssemos uma criança.

Os títulos dos capítulos  são sublinhados, como se de epígrafes se tratasse, por versos de Blake, o poeta a que, como já disse, a narradora se dedica. Não poderia gerar um efeito mais dramático: as palavras de William Blake são misteriosas, prenhes de sentidos ocultos, graves, nocturnas. Delimitam e adensam o carácter enigmático  do romance. Tudo são sinais, indícios, símbolos.

Com excepção de Dyzio, um jovem estudante que colabora nos trabalhos de tradução da poesia de Blake, desconhecemos os nomes das outras personagens. De quase todas, pelo menos. São tratadas por cognomes, Pé Grande, Papão,  padre Sussurro, Sobretudo Preto, Cinzentinha, etc, que, se introduzem um elemento caricato na relação do leitor com elas, nem por isso as distanciam ou as tornam menos personalizadas. Diria que tudo na personalidade e nos comportamentos delas é muito vivo, e se vai tornando significativo, aos olhos da narradora (e, por interposta pessoa, aos nossos) segundo o seu grau de respeito ou desrespeito pelos animais.

Será esta série de mortes violentas, em última análise, uma vingança dos animais,  o que faria da narrativa uma espécie de fábula? Ou a obra de alguém que age em vez deles, o que a tornaria antes um policial? É este romance - pergunto, por fim; e não posso responder, sem revelar mais do que devia - um elogio da causa dos animais e da natureza, mas, simultaneamente, uma advertência para quão pouco resta transpor, de modo a que a causa boa se transforme numa forma de fanatismo?

A cada um a responsabilidade da sua leitura.



3 comentários:

sonia disse...

Confesso que a esta altura de minha vida não tenho condições emocionais de ler ou ver qualquer coisa que se refira a maus tratos aos animais. Tenho duas cachorrinhas que são minhas filhas queridas. Vivo com elas 24h e cada vez mais sinto amor pelos animais. Um amor imenso!!!

josépacheco disse...

Absolutamente do seu lado também nesse amor.

angi disse...

O pai do meu filho mais novo - um amigo de longa data! - enviou-me o livro porque diz que a personagem lhe fez lembrar de mim! kkkk Assim li o livro com a curiosidade de me descobrir!!! Achei muito interesse este exercicio e quase sei onde "estou"! (mas, juro que nunca matei ninguem nem o conseguiria fazer!)