sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

QUE TAL QUATRO LIVROS PORTUGUESES IMPERDÍVEIS DE 2012 - EM VEZ DE DEZ, OU MESMO CINCO?

Consigo encontrar dez livros portugueses, de 2012, que tenha lido e possa recomendar, agora que estamos em mudança de ano?
A ideia, excelente, foi-me sugerida pelo meu amigo António.
O problema é que, ao longo de 2012, devo ter lido poucos livros publicados em 2012.

Mas «O Retorno», de Dulce Maria Cardoso, é um daqueles que tenho de recomendar muito vivamente; o tema do retorno, que é interessante - e carece já vivamente de historiadores e romancistas que se lhe entreguem, para além do inenarrável Magalhães - é aqui tratado com toda a sensibilidade. E se a visão é parcial, ainda bem: sinal de que se encarnou a perspectiva do jovem narrador, que não poderia ser mais ampla nem mais justa do que aquela.

Outro, naturalmente, é «O Teu Rosto Será o Último», do inesperado e magnífico João Ricardo Pedro. Não vale a pena dizer mais - o post que lhe dediquei é ainda recente.

«A Boneca de Kokoschka», de Afonso Cruz, é também um romance muito recomendável em que, ao contrário de outros da sua autoria [disseram-me, que não lhe li os anteriores...] não se perdem personagens pelo caminho da narração.

Clara Ferreira Alves compilou as suas últimas crónicas em «Estado de Guerra»: para quem, como eu, é leitor assíduo de A Pluma Caprichosa, a reunião destes textos desiguais tem um efeito perturbador. CFA escreve sempre muito bem e interpreta o mundo com uma cultura e uma inteligência ímpares, mas se é brilhante na descrição de personagens ou de situações caricaturais do nosso país, torna-se facilmente insuportável nas exaustivas narrações das suas viagens.
Não consigo chegar a 10 - queria pelo menos alcançar os 5. Falta-me um?
Bem. Não chego lá. Lamento.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

ERSKINE CALDWELL: TOBACCO ROAD



Todas as falas das personagens falantes [porque a mudez, ou a quase-mudez, é uma característica de várias outras] estão impregnadas de Deus. É o Deus todo-poderoso do Antigo Testamento: curiosamente, o Deus omnipotente não parece mais do que um homem muito idoso e muito sábio, com lacunas que as criaturas não deixam de lhe apontar. A pregadora, por exemplo, Sister Bessie, considera que talvez seja preferível deslocar-se, ela própria, a casa de Lov, a fim de explicar à jovem esposa deste  - na verdade uma criança - como deveria comportar-se com o seu marido, ao invés de esperar que Deus lhe fale. Afinal, uma mulher percebe mais de assuntos de mulheres do que um homem. E Deus, por muito omnisciente que seja, não deixa de ser um homem!

Somos postos cruamente em face dos habitantes de casebres dispersos nas imediações de uma antiga estrada de tabaco. Pertenciam a um plantador que partiu, permitindo aos seus ex-trabalhadores que nelas continuassem até ao desabamento. O tempo é o de uma crise inclemente, e estas famílias do sul dos Estados Unidos da América, sem recursos de nenhum tipo, afundam-se numa espécie de vida primitiva, onde os instintos são os únicos instrumentos de adaptação e sobrevivência. Parece uma condenação. O solo desertificado não produz, o trabalho escasseia, as famílias aglutinam-se em barracões imundos, com idosos que se agarram desesperadamente à vida, recusando-se a morrer, e filhos que se multiplicam, para no entanto desaparecer cedo: uns, de morte prematura, outros casando também prematuramente, isto é, aos doze ou aos treze anos, mas a maioria fugindo para Augusta, a cidade próxima.

Compreendo por que sempre ouvi referir este romance como o contraponto de As Vinhas da Ira: aqui, o trágico nada tem de heróico; não há uma luta prometeica contra as agruras ou por uma vida melhor, mas, pelo contrário, o abandono a uma preguiça fundamental e a uma impotência para mudanças radicais: quando muito, um excesso de sonhos impersistentes ou de projectos continuamente adiados.

Neste mundo em que a fome é uma condição perpétua, que debilita e se manifesta na companhia constante de ruídos no estômago; onde a religião é um espeto de culpa e remorso nas consciências, mas não impede que o furto seja um expediente corriqueiro; em que os pais mal conseguem recordar os nomes de todos os filhos que os deixaram, embora alimentem a esperança de que algum possa ter enriquecido, e regresse para os auxiliar; em que se tornam de uma importância crucial o tabaco de mascar [em rigor, dizem-me que se trataria de uma espécie de rapé: o termo inglês é "snuff"] ou uma roupa decente, «de estilo», com a qual possam ser enterrados (apesar de ser a mesma gente que em vida usa andrajos, calças de ganga sobre o corpo, e anda descalça, ou improvisa sapatos: a avó traz, amarrados aos pés, cascos de mula), «neste mundo», escrevia eu no início do extensíssimo parágrafo, pouco mais há a esperar.

Não vejo propriamente malfeitores; vejo este velho Jeeter, preguiçoso e cobarde, que ninguém respeita, ou vejo estas mulheres [a mãe, a avó] cujo desespero faz pegar em paus para afastar, violentamente, de um saco de nabos, o seu legítimo proprietário - um homem que palmilhara muito caminho para os ir comprar por bom preço; entretanto, a rapariga de lábio leporino já se arrastara sedutoramente até ele, para levá-lo a esquecer-se do dito saco e a deixá-lo por um momento desprotegido. No caso da rapariga, também porque à sua fome se acrescenta uma fome de sexo, própria de uma adolescente feia e indesejada. Mas que culpa têm os Lester do seu comportamento? Todos deviam saber que é errado aproximarem-se da sua cabana quando se traz alimento: os Lester, essa matilha famélica que se une, numa complexa manobra de cooperação, para furtar o que quer que acalme os roncos do estômago.

Este é o livro por mim desejado há muitos anos. O livro de que a minha mãe me falava e que eu, muitas vezes, tentei comprar - sempre em vão; não creio que esteja traduzido em português. Encomendei-o, recebi-o, por fim, e leio-o para preencher também uma fome antiga, semelhante às dos Lester. Erskine Caldwell é, aqui, absolutamente brilhante. Esta novela tem qualquer coisa de peça de teatro: a quase unidade da acção, a quase unidade de espaço (com excepção das breves e impagáveis deslocações que se fazem até à cidade de Augusta) e quase a de tempo. Ao longo de vários capítulos, narra-se o regresso de Lov, que fora comprar um saco de nabos [os "turnips"; «nabos», não é?]; a passagem por próximo da casa dos Lester, que o observavam, atentamente, há muito; e a tentativa de estes se apoderarem dos nabos. É esta primeira parte [seguida pela chegada da extraordinária pregadora, Sister Bessie, tanto para dar um sentido religioso ao arrependimento do velho pai ladrão, como para comer alguns dos nabos restantes e conseguir um marido] que serve de fio condutor, agregador de muitos pormenores, a partir dos quais nos vai sendo apresentada a história e as causas cruéis do estado presente daquelas vidas.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

JACQUES BARZUN: DA ALVORADA À DECADÊNCIA



Jacques Barzun faleceu este ano.

João Pereira Coutinho, um jovem conservador inteligente, culto e com sentido de humor, numa crónica referiu-o conjuntamente com Gore Vidal, sublinhando a morte próxima de ambos como uma drástica perda para a cultura.

Sobre Vidal, tenho pouco a dizer: infelizmente, nunca fui capaz de ler até ao fim nenhum dos seus livros. Se há autor maçudo e desinteressante, à luz das minhas tentativas sucessivamente defraudadas de me entusiasmar com o que escreveu, é este romancista norte-americano.

De Barzun, pelo contrário, lera um livro esplêndido, The House of Intellect. Meu primo recomendara-mo e ofereceu-mo, chamando a atenção para a agudeza da crítica às tendências erróneas do sistema de ensino - e isto muitos anos antes de essas tendências se terem tornado moda, e uma moda absolutamente devastadora. O pânico em relação à exigência e ao rigor, a rejeição da frustração como factor de aprendizagem e de crescimento, os ensinos "facilitadores", em suma, o «eduquês», eram já sagazmente detectados e analisados, e as suas consequências (à época, ainda não totalmente previsíveis) antecipadas com uma fundamentação persuasiva.

Mas meu primo dissera-me que, se The House of Intellect era uma livro a não perder, já o "resto" da obra da Barzun parecia dispensável, como se este se tivesse esgotado na sua obra-prima.

Li, porém, recentemente, do mesmo autor, uma história do pensamento, de 1500 até aos nossos dias, chamada Da Alvorada à Decadência; lamento discordar do meu primo: é uma obra que merece a leitura por várias ordens de razões: pela clareza do texto, antes de mais, sem pedantismos nem, por outro lado, excesso de simplicidade ou pouca substância. Pela originalidade e pelo brilho da tese que subjaz à obra - como se depreende do título, a ideia de que não assistimos a um "progresso" do pensamento, mas, pelo contrário, a uma "queda": uma decadência da qualidade, da profundidade, da riqueza intelectual, substituídas por mecanizações do raciocínio e por uma visão científica estreita, herdeira e radicalizadora do divórcio entre dois mundos culturais (as ciências e as humanidades). Finalmente, pela apresentação de pensadores pouco conhecidos, mas inovadores e criativos [Veja-se o caso de Fénelon ou de Beddoes, ou do estimulante Hazlitt], os quais, em diversas àreas [na religião, na filosofia, nas artes, nas ciências, na política], sob o olhar, muito pessoal, que Barzun nos oferece da história da cultura, teriam constituído figuras e momentos essenciais na marcha do Espírito.

Há citações, a negrito, à margem, tanto dos próprios pensadores tratados, como de comentadores, que não sublinham nem repetem a explicação, mas acrescentam algo; há uma identificação dos temas ou dos conceitos que vão surgindo no tempo, e guiando a razão; há uma desmontagem contínua e provocadora das leituras, sobre a história, que se tornaram dominantes e a história consagrou como leituras oficiais da história. Há níveis variados de reflexão, que nos interpelam, e são motivo de discordância do leitor, ou da ampliação e da reformulação dos conhecimentos que tínhamos por assentes.

E, portanto, sinto-me em condições de, relativamente a Barzun, gratamente contrapor, à descoberta que o meu primo me proporcionou, uma descoberta que este não pode ignorar. Da Alvorada à Decadência é um livro a não perder.