quinta-feira, 22 de novembro de 2018

SANDRA CATARINO: OS FIOS



De onde subitamente nos chega esta voz, que eu não conhecia e de que nunca tinha ouvido falar? De onde esta forma jovem, incomum, revolucionária, sedenta de novo, mas sob a qual pressentimos a maturidade e o talento que levaram séculos a forjar, a completar, a afinar? De onde, pois, esta insustentável leveza, ou este peso que faz do voo um voo grave, se me entendem, isto é, um voo que não seja puro desperdício e experiência inconsequente?

E é mesmo romance ou é poesia? É mesmo a intriga que se vai tecendo nos seus diversos fios, ou seja, diferentes pessoas com histórias diferentes, que se cruzam, ou é sobretudo o uso da palavra que se lê com os olhos e a mente, mas se repete em surdina, saboreando-se com a boca e com o ouvido a felicidade da frase perfeita, do período perfeito, do parágrafo perfeito, página após página, capítulo após capítulo?

E é isto o testemunho da tradição, o relato de acontecimentos numa vila de costumes e crenças rurais e relações quase ainda feudais, ou é isto a inteligência compassiva e cultivada, que penetra psicologicamente nas pessoas, compreendendo-as no desequilíbrio entre as suas expectativas e as suas dores? Por outras palavras: para além da dúvida relativamente à forma, também a dúvida em relação ao que se narra. Será um conteúdo antigo, ou moderno? rural, ou cosmopolita? de experiências feito, ou da teoria? enraizado no particular de um tempo e de um lugar profundamente portugueses, ou universalmente aberto para a compreensão do homem e da mulher intemporais? Ou, como me parece o caso, não existe qualquer dilema, e é tudo e o seu oposto simultaneamente?

É um livro surpreendente, porque, na sua breve extensão (duzentas e poucas páginas, capítulos curtos como poemas ou como setas!), demora, todavia, muito tempo a ler. Porque nos fixamos em frases, as relemos, capturados por um inexplicável encantamento, e porque voltamos atrás. E nos apetece, frequentemente, recomeçar a experiência pela primeira página.