sábado, 29 de agosto de 2015

VALTER HUGO MÃE: O FILHO DE MIL HOMENS


Por variadas razões, a minha relação com a obra de Mãe nunca foi pacífica.
A sua insistência numa prosa toda de letra minúscula, mais do que me parecer uma arrojada inovação estilística [que não era] arrepiava-me pelo vazio de objectivos ou razão. Li a máquina de fazer espanhóis, que apesar disso - e de um tom deprimente, com o qual nem sempre me foi simples lidar - considerei um romance notável. Mas a verdade é que, sob uma tal neblina de preconceitos e ideias feitas, a minha ocupação da obra do autor foi sempre incompleta. Desisti de muitos romances seus pelo caminho.

As minhas amigas São e Maria falaram-me agora, com um inesperado encantamento, de O Filho de Mil Homens. Elogiavam-lhe a beleza da prosa poética e, sobretudo, a "perfeição" da história. A São catalogou-o, sem medo, como o melhor que a literatura portuguesa lhe ofereceu nos últimos anos. Tive de o ler.

O que aqui impressiona é uma compreensão do humano, de tudo quanto é humano, muito para além dos códigos e das fronteiras. Ao seu olhar, comportamentos que uma cultura «normal» (segundo uma norma, afinal) repudiaria, ou que uma certa sofisticação renegaria, revelam-se-nos comoventes, transparentes na sua naturalidade simples. Não provêm do mal, mas das debilidades. Não que as pessoas se não julguem. Julgam os outros e julgam-se a si mesmas; têm-se por imperfeitas: a filha que se esquece da mãe, ou a abandona por umas horas - ou chega a pensar em sufocá-la suavemente - sente-se uma má filha, horrorizada com os seus pensamentos; a mãe que não sabe amar o seu filho "maricas", amando-o porém nos mesmos gestos canhestros em que quer e não consegue renegá-lo, ou o renega incompletamente, culpa-se e martiriza-se: porventura por amá-lo tanto...

Não há personagens absolutamente virtuosas, mas uma selva onde se reinventa, nas suas relações, sem qualquer bússola, gente imperfeita, magoada, ferida pela vida ou pela comunidade, em busca de uma felicidade, que - este é o segredo de VHM - nunca se realizará de acordo com as convenções, nem com as expectativas normais, mas em equilíbrios frágeis de sentido: "frágeis" precisamente porque inesperados,
porque adversos à norma, instituindo-se como uma nova norma.  

A beleza, a poesia deste romance, encontra-se nesta visão quase franciscana - o termo é, a esse propósito, de Alberto Manguel, num prefácio ao livro - sobre um mundo de marginais, uma anã, um órfão, um "maricas", uma mulher desonrada..., como um circo de aberrações que [Manguel novamente certeiro] no encontro com o outro, transformam a «angústia» em «regozijo» e «a solidão em afecto.»  

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

JOSÉ CARDOSO PIRES: ALEXANDRA ALPHA



Como já me sucedeu a propósito de outras obras, li, quando jovem, Alexandra Alpha e guardei dele, por muito tempo, a memória de um romance pesado e desinteressante. Agora que sofro de uma febre de re-leituras de J.C.P., extasiado com o autor de quem afinal passara ao lado, mantinha como última resistência este Alexandra Alpha. E lembro-me bem de, há uns meses, concordar com o meu amigo Marrão neste diagnóstico: «O Cardoso Pires é um autor soberbo. O pior dele é "Alexandra Alpha".»

Que engano! Que precipitação e que falta de perspicácia. Alexandra Alpha revelou-me um inesperado Cardoso Pires, armado de uma impiedosa e corrosiva ironia em relação a um universo intelectual, académico. Mas é impressionante o seu conhecimento das referências de que troça: os universitários imbuídos de cultura francesa (anos 60/70), que citam os estruturalismos na filosofia, na literatura, no cinema, nos programas culturais-chic da televisão [seria certamente o canal 2 de então], as palestras, os seminários, a linguística de Kristeva, a psicanálise lacanaiana, de uma ou de outra forma todos estes itens são coleccionados com um prazer e uma perícia de frequentador do meio. Como num roman à clef, todos aqueles personagens, debates, formulações, teorias, remetem para rostos concretos com os quais não suspeitaríamos que José Cardoso Pires, o contador tradicional de histórias - a que chama "fábulas" - convivesse com tamanho à-vontade.


É neste universo cifrado que cresce o menino órfão, adoptado por Alexandra, entre as amigas desta, os companheiros de debate, num mundo em transição, em que floresce uma Lisboa secreta, paradoxal, vetusta mas carregando no ventre insuspeitados gases [a metáfora grosseira é deliberada] de revolta e mudança.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

BRUNO SCHULZ: AS LOJAS DE CANELA


É com certa euforia que descubro [não seria adequada a expressão: «acabo de descobrir», uma vez que me sinto muito longe de haver acabado este processo] As Lojas de Canela, de Bruno Schulz.
Proporcionou-me o encontro David Grossman, autor de Ver: Amor, um romance que talvez não perca tempo a comentar, mas, no que me diz respeito, é resgatado pelo seu amor à obra de Schulz.

A linguagem dos contos, chamemos-lhe as «breves peças» de que se compõe As Lojas de Canela, é de uma riqueza proustiana: a magia, escreve Grossman, «reside na sua fertilidade, uma abundância quase em putrefacção de tantos sucos verbais.» Acrescenta: «Bruno, que sabe dizer tudo de dez formas diferentes, cada uma delas tão exacta como a agulha de uma bússola»; o uso do termo putrefacção pode chocar, mas não é inteiramente absurdo: a verdade é que um primeiro contacto me foi penoso, porque uma tal superabundância principia, porventura, por nos encandear e ferir os olhos. É preciso, pois, que o leitor esteja advertido. Mas também advertido da vantagem de insistir. Se não renunciar, se for aprendendo a nadar no interior daquela poliédrica linguagem, cedo tomará consciência de que se iniciou numa elevadíssima e compensadora experiência da leitura. Dois ou três exemplos, apenas, da extrema felicidade dos recursos de Bruno Schulz:

«Depois de arrumar a casa, Adélia puxava os estores de linho e mergulhava tudo na penumbra. Nessa altura as cores baixavam uma oitava, os quartos enchiam-se de escuro como se fossem mergulhados de repente numa luz de profundidades marinhas que se reflectia nos espelhos verdes da água [...]»

«O cãozinho era de veludo e morno, todo ele vibrante com as pulsações do seu pequeno e apressado coração. Em vez de orelhas tinha duas pétalas, tinha olhos azulados e turvos, uma boca cor-de-rosa onde podíamos, sem perigo, enfiar um dedo, delicadas e inocentes patas com uma almofada por baixo que era rosada e nos enternecia

«A casa abandonada não o reconhecia como dono, os móveis e as paredes espreitavam-no com uma desaprovação emudecida. [...] E depois de andar de um armário para outro, quando acabava por encontrar toda a roupa necessária e se vestia entre móveis que o suportavam em silêncio e com ar ausente, ao ficar finalmente pronto e em condições de sair, com o chapéu na mão, sentia-se no derradeiro instante incomodado por não encontrar a palavra capaz de quebrar aquele mutismo hostil [...]»

Preferi chamar às suas miniaturas «peças» em vez de «contos», porque a lógica do conto é, em geral, outra: a da narrativa curta, que se desenha em direcção a um fim que a complete como um sentido coerente e surpreendente: nestes fragmentos, diferentemente, há a descrição de pessoas, lugares, um momento ou uma situação. Como pinturas. [Schulz era também pintor.] As personagens principais, que
 vão passando de «peça» para «peça», ou de um conto para outro, como se mudassem de aposento, possibilitam-nos captar uma época, uma cidade e seus habitantes, a família do narrador. São figuras maiores, na sua autenticidade como nas suas idiossincrasias, que Schulz revela sempre sob um halo encantador, por insuportáveis que pudessem ter sido. [Imaginem o que seria viver com aquele pai, em acelerada decomposição mental, mas vista benevolamente pelo narrador, sobretudo na sua dimensão criativa e exótica; ou com o tio Carlos, a sós na casa de que não cuida e o repudia.]

Nunca a tal ponto me lembro de assistir à (re)criação de um mundo a partir de peças desiguais e aparentemente desconexas, num fino limiar entre a realidade e o delírio: mas é o que Bruno Schulz faz. "As Baratas" e principalmente "A Borrasca" são maravilhas de inversão mágica - veja-se como, neste último, uma sublime tempestade se abate sobre a cidade, a partir da desarrumação da casa, loiça suja, móveis desarrumados, que parecem acordar todas as noites, explodindo pelos ares e convocando os ventos! O que nos expõe é uma realidade tão intensa e tão completa, que nos custa crer que, dali a pouco, a guerra irromperia, os pilares em que esse mundo assentava desabariam, e o próprio Schulz, cidadão polaco de origem judaica, seria infamemente assassinado por um oficial nazi.