domingo, 28 de agosto de 2022

PIERRE LEMAITRE: AU REVOIR LÀ-HAUT

 

Tendo ido passar uns dias em Paris, neste quente Agosto em que tudo são turistas e bichas, mas, ainda assim, nenhum mal é suficiente para diminuir a luz e a energia da cidade, aproveitei para procurar os livros que os franceses andam a ler. Via-os, de várias idades, sobretudo mulheres, mas também rapazes (e raparigas, bem entendido), provavelmente estudantes, no metropolitano, sentados ou de pé, com um livro na mão. Atentei em capas, semicerrei os olhos para perceber títulos, ou para descodificar o nome de autores.



Numa livraria, tropecei num romance de Pierre Lemaitre. Prémio Goncourt. Não se tratava de uma novidade, mas Lemaitre é um escritor de que gosto muito, culto e cruel, e este romance, que inspirou um filme (também premiado), situado no fim da I Guerra Mundial, sobre dois jovens desmobilizados que não conseguem readaptar-se (da sinopse: Car la France, qui glorifie ses morts, est impuissante à aider les survivants) atraiu-me deveras. 

O tempo e o lugar, o terrível pós-guerra em Paris, são a concentração de tragédias várias:
 
Enquanto se esperava [pelo reembolso integral dos estragos, por parte da Alemanha derrotada], o custo de vida não cessava de aumentar, as pensões ainda não haviam sido pagas, os prémios, atribuídos, os transportes [estavam] caóticos, as provisões, imprevisíveis, e portanto traficava-se, muita gente vivia de expedientes, intercambiando bons negócios, cada um conhecia alguém que conhecia mais alguém, passava-se, de um para outro, os endereços, [...]

Respira-se a influência de Proust, sobretudo na caracterizacão de Paris da época [a divisão onde, praticamente, habita M. Péricourt - não que necessitasse dessa circunscrição, uma vez que todos os andares do edifício lhe pertenciam - poderia ser o quarto em que Proust consumia o tempo a criar a sua obra], bem como a de Céline, na escrita crua sobre a guerra, o sofrimento, os poltrões, os salauds. Os poderosos, em suma, sejam os superiores hierárquicos no exército, sejam os podres de rico (que, paradoxalmente, a guerra tornara ainda mais ricos) na sociedade elegante do Jockey Club parisiense.

No meio de todas as personagens, entre as quais os protagonistas, Albert e Édouard, dois sobreviventes da guerra que querem apenas subsistir no dia-a-ia, ganha importância uma outra figura, bela e sinistra, de homem ambicioso e sem escrúpulos, proveniente de uma aristocracia arruinada, mas, por isso mesmo, de tudo capaz, desde o assassínio, ao casamento de conveniência, para fazer fortuna e reatar o lugar a que aspira na bela sociedade: Henri d'Aulnay-Pradelle.

Pradelle reaparece inesperada, implacável e constantemente. Se, por um lado, as suas "aparições" têm uma nota forçada (hesitei em acrescentar "amadora", a propósito do autor), como se Lemaitre recorresse em excesso à coincidência, por outro lado, essa espécie de poder ameaçador conferido a Pradelle, esse seu faro para achar continuamente o rasto das presas, e para estar, como uma sombra temível, sempre no caminho de Albert e Édouard, faz, dele, a figura que nos gela, o homem bonito, viril e mau, com o halo diabólico de um tenente Hans Landa, por exemplo, a que deu vida o genial Christopher Waltz em Sacanas sem Lei.

Mais do que tudo, Pierre Lemaitre é o grande mestre contemporâneo do controlo do tempo narrativo. Veloz ao apresentar uma sucessão de acontecimentos e de surpresas, para que, à semelhança dos romances policiais, que também escreveu, o leitor se sinta viciado, mantém-se, simultaneamente (e paradoxalmente), muito lento na preparação do momento esperado: se sabemos, pela sinopse, que Albert e Édouard,   "desafiando a sociedade, o Estado e a moral patriótica, imaginam um golpe de envergadura nacional, de uma audácia inaudita e de um cinismo absoluto", não adivinharemos nem seremos postos perante as premissas do "golpe" senão quando as condições estiverem reunidas para o compreendermos e acreditarmos nele. Assistiremos, então, ansiosos e com receio, à discussão (de dias) entre os dois amigos, o criativo e sonhador, e o realista e medroso, sobre a hipótese (e a imoralidade) de um tal conto do vigário, sempre com a esperança, de caminho, de uma vingança decisiva contra d'Aulney-Pradelle.

sábado, 13 de agosto de 2022

TATIANA SALEM LEVY: DOIS RIOS

 "Vim até Dois Rios para poder sair de Dois Rios, e ao mesmo tempo sinto a força que tenta me deter, o sonho persistente de que os dias voltem a ser o que eram: eu, uma menina, meu irmão ao meu lado."


Trago-o da Biblioteca, sem referências. Não conheço a autora, não ouvi falar do livro, o título não me atrai particularmente. É obscuro. Não fa


ço ideia da razão por que o escolhi.

Abro a capa verde, dura, da excelente Tinta-da-China (mas será ainda a mesma? e será realmente a editora quasi-marginal que, na minha imaginação, sobreviveu sem abdicar da qualidade?), inicio a leitura e, imediatamente, sinto-me a respirar o ar puro de um Português, bem escrito, de entoação brasileira, as frases a levar-me com elas de uma forma inebriante. Gosto tanto do Português do Brasil quando pela pena dos melhores, a correcção em que palpita uma flexibilidade impossível entre nós. Tatiana Salem Levy escreve muito bem. A sua escrita é uma contínua descoberta. Um breve exemplo, apenas: "Minha vontade de beijá-la de repente se tornou vontade de beijar o mundo inteiro, as crianças, os velhos, as prostitutas, as gordas, os sarados, as magras, o homem da barraquinha, o surfista, a mulher do sanduíche natural, o mar, a areia, as palmeiras, de sair voando e beijar os chilenos, os argentinos, os porto-riquenhos, os angolanos, os russos, os japoneses, as aves, os elefantes, o chão, a terra batida." Quanto saber e quanta arte no aparentemente gratuito desta enumeração. 



No Rio de Janeiro, onde a narradora da primeira parte do romance, que se chama Joana (é o seu nome e o nome dessa primeira parte) encontra e se deslumbra com Maria-Ange, tem a sua génese a luta entre duas esferas da realidade, quase diríamos entre duas realidades: a mãe obsessiva-compulsiva, silenciosa, incapaz de pisar as pedras brancas da calçada, abrindo e fechando vezes sem conta a porta, ou lavando, no duche, as mãos até as fazer sangrar, a ausência de um irmão que se dispôs a correr mundo, deixando-a com a mãe como se ela não estivesse realmente doente, ou como se fosse da responsabilidade da irmã, e um passado que a cerca e oprime, acumulando-se até desde antes de ela ter nascido; e a liberdade e o grão de loucura introduzidos pela presença de Marie-Ange, fazendo possível o que os anos e a rotina haviam tornado impossível, abrindo janelas numa vida de mulher solitária e cuidadora infeliz. Com a sua beleza feita de imperfeições (talvez os olhos assimétricos, a cicatriz de um transplante de coração...) animadas por uma luz e por uma alegria incontidas, Maria-Ange, como o nome indicia, é um anjo salvador. Metaforicamente, claro.

"Dois Rios" é o passado. Escrevi bem: não "representa" ou "significa", mas "é" esse passado nunca avaliado. A viagem, com Marie-Ange, à pequena povoação, sustentada pela colónia prisional onde o tio de Joana fora prisioneiro político, e viviam os avós maternos e a mãe dela (esse avô, precisamente um dos guardas prisionais), entrelaça as duas esferas e os dois tempos da sua realidade. A amante francesa pressente, mas não compreende inteiramente o significado de Dois Rios e de seus habitantes, impregnados de memórias profundas: as férias de Joana e de Antonio, em casa dos avós, a morte do pai, a mãe tornando, em lágrimas, para os buscar, o afastamento de Antonio, o progresso das obsessões de Aparecida. [Na verdade, perceberemos que Marie-Ange sabe  sobre tudo, mais do que julgávamos, mas fiquemo-nos por aqui].

A segunda parte do romance, que tem por título Antonio, tem como narrador o irmão de Joana e, como objecto, a sua versão do passado, ao mesmo tempo que a história do seu amor pela mesma Marie-Ange, noutro lugar e muito tempo antes de ela ter viajado ao Brasil e conhecido Joana.

A forma como, no todo destas duas partes, contrastam e se contradizem a visão de Joana, e a de Antonio, sobre os factos, mostra que, na tentativa de os recontar, cada um deles inventa e omite. E, contudo, nós, leitores, percebemos a verdade, através desse choque de interpretações e de mentiras. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

KATHERINE FAULKNER: GREENWICH PARK

 É a estrutura, ainda antes de acabarmos de ler o livro e a dominarmos, portanto, completamente, mas à medida que, capítulo após capítulo, a vamos intuindo (primeiro) e compreendendo (aos poucos), o que começa por nos chamar a atenção. Sentimo-nos orientados, seguros. Sob a dispersão de elementos (uma carta, não sabemos de quem, ou para quem, nem sequer referindo-se exactamente a quê; ou diferentes pontos de vista de personagens diversas, como se, sob o nome de cada uma, a abrir um "seu" capítulo, fôssemos ler uma parte da narrativa escrita por ela; ou breves momentos, sem contexto, como relâmpagos, que não sabemos o que nos indicam ou prenunciam), adivinhamos um alicerce forte, um fio inquebrável, um plano que se vai provando e, a seu tempo, se desvendará inteiramente.



Por outro lado, a escrita, propriamente dita, impõe-se: o poder de observação e de descrição ilumina situações corriqueiras, comuns, gestos, pensamentos, e quem leu a minha crítica anterior lembrar-se-á de que sou sensível aos autores atentos a detalhes dos comportamentos. Surpreende que uma técnica já tão apurada se dê a ver numa autora muito jovem, em luta com o primeiro romance.

É um pouco mais do que um policial para ocupar dias de férias, e muito menos do que uma obra inesquecível. Alguns clichés, apesar de tudo,


distanciam  bastante  Katherine Faulkner de uma Donna Tart, que, para mim, em matéria de policial contemporâneo continua sendo o nec plus ultra. Seja como for, o modo como se nos convida, aqui, a penetrar na experiência da gravidez de três personagens, as cunhadas e uma misteriosa intrusa, e nas vidas de cada uma das duas primeiras, com os seus maridos, ou convivendo entre si (uma vez que a terceira será, por muito tempo, uma jovem obscura e estranha, sobre quem julgamos, apenas, imaginar a motivação e os motivos), é muito bem urdido. O tempo em que a narrativa vai sendo medida é, aliás, em semanas, o da gravidez de Helen, a narradora principal. Instalamo-nos, pois, com as famílias, no seio dos seus sonhos e expectativas, enquanto, com alguma apreensão, reparamos em subtis linhas de fractura, talvez segredos inquietantes, pequeníssimas nódoas, capazes, porém, de alastrar até à catástrofe.

É também, em dado passo, um romance sobre a invasão do nosso espaço, quando mais precisamos de o preservar e nos resguardar, por quem não tem o cuidado ou a preocupação do pudor e da discrição. A invasão perante a qual, no entanto, a nossa solidariedade e a nossa piedade (que, neste caso, serão, talvez, dois nomes para a cobardia) nos deixam impotentes. É uma descrição com o condão de nos irritar.
A leitura é nervosa, urgente. Com aquela pimenta de muitas explicações serem possíveis (serão as suspeitas que Helen tem sobre Rachel justas? será, antes, Helen louca, como alguns indícios sugerem?). Queremos saber mais, mais rapidamente, impacientamo-nos. É um thriller psicológico, chamam-lhe eles. Pois.

sábado, 6 de agosto de 2022

ANDRÉ GIDE: AS CAVES DO VATICANO

 Já pensava, sempre pensei, aliás, desde que pela primeira vez o li, que André Gide é o mestre da elipse. Seguimos uma sua história com interesse e prazer, mas necessitando da concentração que, se se descontrai, leva a incompreender, por um instante, uma sequência que Gide não quis nem precisou de tornar explícita.

Um outro aspecto que este romance revela é a atenção do autor a gestos e pormenores do quotidiano, que utiliza tão bem: uma maneira de sentar, uma expressão conseguida com as sobrancelhas, a descrição de quase nada que introduz, na narração, uma vivacidade encantadora.



O modo como Nietzsche, seguramente, e talvez Dostoievski, o marcaram, fá-lo elevar personagens pouco menos do que comuns, a caracteres que, em situações-limite, se mostram de uma inesperada profundidade trágica. Algum desconforto relativamente à existência, que os morde por dentro e os torna conscientes da sua inautenticidade, provoca-lhes súbitas angústias e sobressaltos de liberdade.

O título deste romance, hoje, parece deslocado. Vejam ao que o associam: As Caves do Vaticano. Não remete para um tipo de livros que se tornaram, entretanto, populares, sobre os pecados e os segredos da organização de que o Papa é o líder? Na verdade, é a história de famílias unidas por casamentos, de um filho bastardo, desconhecido, até então, dos meios-irmãos, e de um grupo de crápulas que concebe o extraordinário plano de convencer alguns inocentes de que o Papa fora raptado, aprisionado e substituído por um falso Papa, de modo que haveria que juntar dinheiro para resgatar o legítimo. Constaria, do que se propala sobre o rapto, a conspiração de lojas maçónicas e assistimos, ao longo da narrativa, a conversões inesperadas, amores impossíveis e o frente-a-frente de um protagonista com a liberdade absoluta, sob a forma da possibilidade do mal gratuito.



Alguma coisa no movimento deste romance tem uma dimensão cândida e improvável, como numa aventura de Arsène Lupin. Típico de um romantismo de época, se nos lembrarmos de que As Caves do Vaticano foi publicado em 1914. Mas a escrita, clássica e muito bela, é de uma força que resgata de certas imperfeições. Proust escreveu a Gide: Por fim, li o seu romance com paixão. É verdadeiramente uma Criação, no sentido genesíaco de Miguel Ângeli; o Criador está ausente, é ele quem tudo faz, e não é uma das criaturas. Vejo-o a determinar as idas e vindas de Fleurissoire como o Deus colérico da Capela Sistina a fixar a Lua no Céu.

Se Proust o diz...

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

DBC PIERRE: VERNON LITTLE, O BODE EXPIATÓRIO

 "Ela dá uma espécie de gargalhada irónica; só pode ser irónico quando se dá uma gargalhada e se soluça ao mesmo tempo."


A primeira coisa que podemos dizer acerca deste romance é que se trata do retrato, cheio de um ácido sentido de humor, de uma certa América. Por "uma certa América" entendemos, é claro, a daquelas cidades texanas, junto à fronteira com o México, que conhecemos sobretudo do cinema: pessoas que se conhecem e interferem na vida umas das outras, mulheres, frustradas, de tipos sem horizonte, homens que bebem porque a vida é insuportável, batem nas esposas ou abandonam-nas, uma dada família cujos membros estão em todos os postos, da polícia à Câmara, charlatães de segunda classe e, claro, adolescentes que se interessam demasiado cedo por armas, ou escolas onde ocorrem massacres porque um desses jovens se fartou de ser vítima e, além disso, tem uma espingarda ou uma pistola à mão de semear.

A tragédia permite um tipo de humor que corta como faca. Sucede quando e porque há um desencontro entre a grandeza dos acontecimentos terríveis e a ridícula pequenez e incompreensão da cruel sublimidade do destino, por parte dos que o sofrem. É, ao contrário da tragédia grega, aquilo a que chamamos tragicomédia. Não é um humor para todos os estômagos, mas DBC Pierra executa-o com mão de mestre. A personagem principal, o Vernon Little do título, que é também o narrador, lembra imediatamente Holden Caulfield, de The Catcher in the Rye, do genial Salinger: a mesma linguagem desbragada, a mesma inteligência arguta, uma idêntica sensibilidade, que se esconde no tom trocista, e a mesma incapacidade de se entender com um mundo


adulto, que o não compreende e persegue.

Na verdade, neste caso, persegue, de facto, não se trata de paranóia juvenil. Vernon Little serve como bode expiatório de um massacre perpetrado, na escola, pelo seu amigo, Jesus, que se suicidará de seguida. O povoado está inconsolável, mas aos familiares enlutados dos jovens mortos, parece quase insuportável que se não possa castigar alguém. Resta Vernon, cuja amizade com Jesus o eleva a potencial cúmplice. 

E assim, aos 15 anos, Vernon Little, objecto do jogo de gente que o leitor não esquecerá, como a própria mãe, neurasténica, o homem que se faz passar por jornalista, ansioso por aproveitar a história de, como apresenta a sinopse, "um adolescente com um talento especial para estar no sítio errado à hora certa", tudo fará para escapar ao destino que se lhe impõe. 

Primeiro romance publicado por DBC Pierre, esta estreia literária viria a ser distinguida, por unanimidade, com o Booker Prize (2003).