sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

MÁRIO DE CARVALHO: UM DEUS PASSEANDO NA BRISA DA TARDE



Descremos de jovens leitores.

A nós, já tão longe deles, que, numa ilusão criada por essa distância temporal tendemos a crer que éramos muito melhores, parece sempre que os jovens hoje não lêem. Não o suficiente. Vêem televisão, ou imergem na riqueza dos seus mundos virtuais. Desprezam o papel, o folhear; falta-lhes a concentração na frase que temos de seguir com os olhos e o espírito.
A experiência, pois, de testemunhar o modo como uma turma do 10º [raparigas e rapazes de 15-16 anos] preparou Um Deus Passeando na Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho, tem qualquer coisa de espantoso.
Porque não estamos a falar de um romance simples.

A linguagem de Mário de Carvalho é para ser saboreada quando se formaram já órgãos adequados, que penetram dificuldades, para delas extrair um prazer superior, mais requintado.

Por outro lado, as personagens deste romance não são contemporâneas - mas as de uma ficção histórica, que o autor reconstitui com um rigor e uma precisão de especialista. Mais: tendo a preocupação de não criar romanos de papel, ou homens com mente e visão de contemporâneos e artificialmente transpostos para a Antiguidade. Não. As personagens estão fixadas ao seu tempo. Mesmo as mais interessantes, as mais críticas dos costumes, as mais iluminadas, são-no até ao limite da própria condição, precisamente como deveria ser. Admiramo-las, mas não pode haver uma identificação. Elas pensam quase como nós, mas não sentem como nós [Jean d'Ormesson, claro!]

O primeiro capítulo é uma prova de fogo: numa linguagem particularmente densa, o narrador surge mais de si próprio do que de uma situação definida, e portanto o leitor não sabe quem ele é, onde está, o que o preocupa. As linhas que nos orientarão irão sendo fornecidas mais tarde, capítulo após capítulo, numa construção paciente: que é, de certo modo, ao mesmo tempo que a construção das personagens e de uma história, a construção de uma cidade algures no Império Romano, sob Marco Aurélio. [Na Lusitânia.] E nós vemos a cidade, pelos olhos de Lúcio, que a viveu sob as formas das suas rotinas, e a redescobre, à noite, ou de ângulos inabituais, como absolutamente nova e desconhecida. [E frágil, e com ameaças que se acoitam nas suas entranhas ou que se vão definindo no exterior...]

Os jovens leram este romance, e ofereceram-nos a experiência da sua leitura, encadeando-a e articulando-a, numa inocência maravilhada, compreendendo e explicando meandros e relações. Discutiram-no com um amor sério, que me comoveu.

Não me lembrava de Um Deus Passeando na Brisa da Tarde. Já o requisitei. Estou a relê-lo. A culpa é deles...

domingo, 1 de dezembro de 2013

JOSEPH ROTH: HOTEL SAVOY



No Hotel Savoy, onde em tempos penosos de um pós-Guerra se reúnem pessoas de diversas proveniências, os clientes são distribuídos consoante os seus bens: os mais abastados ocupam os quartos do rés-do-chão e dos andares próximos deste, enquanto os empobrecidos - que nunca sabem como vão pagar em cada mês, e se empenham ou vendem o que podem - são empurrados para os andares superiores. Roth escreve, em certa passagem: «Como se se pudesse cair para cima

Reconhecemos nesta frase a raiz de um tipo de inversão e de paradoxo em que beberam certamente Gonçalo M. Tavares ou Afonso Cruz, o que, parece-me evidente, só abona a favor destes, e das suas influências e leituras.

Mais do que no seu outro romance aqui já por mim comentado, em Hotel Savoy, que é uma obra-prima de concisão, ou do exprimir de inesperados universos de ideias, em frases curtas, brilhante e revolucionariamente certeiras, Joseph Roth oferece-nos, em cada linha, intuições em que nos detemos, temos de nos deter, descrições sobre que somos obrigados a demorar-nos, imagens cruéis ou subitamente ternas.

Roth ensaia o a que eu chamaria uma escrita de pós-guerra: as frases são blocos de sentido que permaneceram, entre hiatos, crateras, ruínas. Pressentimos sempre que, em redor de cada foco de sentido erguido, à beira de cada período que acabámos de ler, buracos negros esperam por nós. Os períodos são curtos, as ideias brilham com intensidade, enganam-nos enquanto promessas de paz - mas não nos enganam para sempre.

As personagens definem-se nos seus egoísmos de gente rica que não gosta de gastar solidariedade, ou de gente pobre que não pode dar-se a esse luxo. Mas, no entanto, é sempre um laço entre pessoas o que se retém. Humilde, débil. Um interesse íntimo, uma bondade secreta e serena, entre obsessões grotescas, amores efémeros, ou o surgimento de novos negócios. Aguarda-se ansiosamente (desde o princípio, e constantemente) Henry Bloomfield, uma espécie de Godot que nunca se sabe quando virá, e que há-de chegar quando e como ninguém espera:

 «De repente, o Bloomfield apareceu. Com os grandes acontecimentos, sejam eles cometas, revoluções ou casamentos de príncipes, as coisas passam-se sempre assim. Os grandes acontecimentos gostam de fazer surpresa, e estar à espera deles só os adia. [...] A essa hora já não circulavam comboios - Bloomfield também não veio de comboio - acaso poderia o Bloomfield depender dos caminhos-de-ferro? [...] Henry Bloomfield era uma pessoa assim: o certo parecia-lhe incerto, e como todas as pessoas confiavam nos caminhos-de-ferro como confiamos nas leis da natureza, no Sol, no vento, na Primavera, Bloomfield era excepção

Bloomfield insinua um novo mundo. Uma espécie de renegação do passado, mas talvez não tanto.

Em todo o caso, a vida reconfigura-se: porventura um dia se descobrirá que a esperança é, na sua paradoxal e ilusória persistência, uma luz também efémera.