sexta-feira, 29 de julho de 2022

GEORGE SAND: ELA E ELE

 

A primeira denúncia que tenho de fazer, com nome escarrapachado e tudo, é do Português da tradutora, Inês Pedrosa, intelectual mais ou menos consagrada, com um curriculum em que avulta a direcção da Casa Fernando Pessoa, e que, não obstante, não sabe como se escreve o plural da palavra "carácter". A exibição impudica do erro ocorre mais vezes do que aquelas que poderiam justificar haver-se tratado de um lapso. Pode parecer pequena coisa, mas, precisamente, numa pessoa com créditos, é inaceitável.


A
autora de Ela e Ele é George Sand. Num prefácio perspicaz, Henry James chama a atenção para a fragilidade que separa, muitas vezes, a realidade e a ficção. Neste romance, Thérèse Jacques e Laurent de Fauvel são os nomes de personagens que replicam, aparentemente com excessiva exactidão, respectivamente George Sand, aliás Aurore Dupin, e Alfred de Musset, e a paixão que vivem, tumultuosa e arrebatada, constitui a narração do amor escandalosa e insanamente sofrido por estas personalidades reais. Mesmo a correspondência apresentada ao longo da história é, ao que julgo, o conjunto de cartas que com efeito Sand e Musset trocaram nos momentos de maior raiva ou de maior ternura.

O ponto de vista da narradora, claramente, é a de Thérèse. Nunca o de Laurent ou o de Palmer, esse terceiro elemento de um instável triângulo. Chega a ser espantosa a confirmação da alta conta em que se tem a maturidade, a ponderação, a superioridade enfim, da mulher. O seu amor é virtuoso, generoso, carregado da dose adequada de uma maternal doçura, que tudo perdoa. A paixão de Laurent é egoísta e infantil. Imatura. Não dito, mas pressentidamente: de homem.

Mesmo Palmer, menos jovem, mais experiente e sábio, é, apesar de tudo, alguém que se engana na avaliação que faz de si próprio. É homem: "[...] muitos homens que têm a aspiração e a ilusão da força possuem apenas energia, e Palmer era daqueles sobre os quais podemos enganar-nos durante muito tempo."

A posição de George Sand torna-se, pois, ambígua: se há e houve sempre na sua filosofia subjacente a valorização da esfera do masculino, da camaradagem e da amizade entre homens, como atestam, desde logo, a escolha do célebre pseudónimo, ou a insistência, da parte da personagem Thérèse Jacques, em que o que procura em Laurent de Fauvel é ser seu amigo (isto antes de se começar a pensar em amor), não sua amiga, todavia o espírito e o amor femininos, contendo, aparentemente, a capacidade infinita para se dar e para sofrer, é o que o romance verdadeiramente enaltece.

Podemos sempre perguntar-nos se a autora, ou a narradora, ou a personagem, se não se equivocam. Se na sua avaliação do amor de Thérèse, a distinção entre a parte de mãe e a parte de amante é tão clara e distinta como ela crê, ou quer crer, ou quer fazer crer. Se em algum tempo transitou, de facto, de um amor erótico, para um amor piedoso, quando afirma que deixou de desejar Laurent, e visa apenas ajudá-lo, como a um filho. Sem ressentimento, mas também sem ardor erótico. [E Palmer, com quem deveria casar-se, que entendesse que não se expressava, nesta "ajuda", nenhuma infidelidade].

Digamos que a estrutura narrativa está muito bem construída, apesar dos pontos mortos introduzidos pelas longas epístolas; que a reunião de ingredientes para suscitar os mal-entendidos está muito bem arquitectada (um exemplo: Palmer não tinha como não pensar que Thérèse embarcara com o seu amante, uma vez que ela, preocupada com o  estado de saúde de Laurent, o levara efectivamente ao barco; o acompanhara, a bordo, durante a tarde, e não regressara com o marinheiro que Palmer esperava, uma vez que esse se embebedara, nem para o local combinado, porque Thérèse gastara todo o seu dinheiro, e não podia dirigir-se para aí).

E a trama está, realmente, tão bem planeada, que, a partir de certo momento, nos interrogamos contínua, apreensiva e obcecadamente, se Thérèse Jacques cometerá o erro de voltar para Laurent de Fauvel.

sábado, 16 de julho de 2022

FERNANDO ARAMBURU: O REGRESSO DOS ANDORINHÕES

 É inevitável, se conhecemos bem a obra de uma Virginia Woolf ou de uma Elena Ferrante (e, para a conclusão, basta-me referir estes dois exemplos), reconhecermos que o romance tem género. Mesmo que não tivéssemos informação sobre se estávamos a ler um texto escrito por um homem ou por uma mulher, e independentemente do sexo do/a narrador(a), a intuição revelar-se-ia certeira. Há uma sensibilidade inconfundível, um olhar, uma maneira de valorar, e a importância de problemas a que subjazem já escolhas emocionais. Quando se aventou a hipótese de que, sob o nome "Elena Ferrante", que ninguém sabia realmente quem fosse, podia ocultar-se um escritor, um homem, eu sorri interiormente, sentindo o maior dos desprezos pelos inventores da suposição. 



Do mesmo modo, existe uma escrita masculina, talvez mais difícil de 


detectar enquanto tal, porque, em geral, foram sempre os homens a impor o padrão, e um modo de ver ou narrar passaram, nas suas características típicas masculinas, por "universais". Enquanto a consciência de uma autora foi sempre uma excepção que se deixava ver, a consciência de um autor disfarçava-se melhor e a sua voz soava como normal

Olhemos para O Regresso dos Andarinhões abstraindo, por um instante, de qualquer dimensão histórica ou política. Sem nos determos numa avaliação ética do conteúdo, esquecendo que a norma é, hoje, a do politicamente correcto, de tal forma que a grelha masculina deveio excepcional e, de alguma forma, "errada" (a ponto de se ter tornado quase inaceitável escrever-se como um homem), este é, contudo, o romance de um homem até à medula. As emoções, a interpretação dos factos ou dos conflitos, a tristeza, são as de um homem. O desamparo também. E se um leitor do sexo masculino, como eu, consegue compreendê-lo até à identificação (ainda que mantendo um distanciamento ideológico, e julgando-o, racionalmente, pelo seu egoísmo ou pela sua incapacidade de comunicação), uma leitora verá, provavelmente, apenas um bruto: um incapaz de lidar com o novo poder das mulheres. 



Estou a simplificar, evidentemente. A apreciação assumida por uma autora e uma psicóloga como Ana Cristina Silva mostra-o. Mas é um romance que pede esse acompanhamento psicológico, complexo, subtil, sem maniqueísmos, nem a busca de distrinça entre os verdugos e as subjugadas. Uma leitura não ideológica, de facto: tão só compreensiva (de tudo, de todos, de todas) e compassiva.

Já no extraordinário Pátria era precisamente isto que me fascinava: todos têm voz, e as vozes, mais ou menos condicionadas, opostas, exprimem o seu sentido e o sentimento que as justifica. Aqui, claro, menos: o ponto de vista é o do narrador, e é ele que fala sobre, e julga, as outras personagens. É o ponto de vista de um homem que não fez as pazes com o pai, critica a mãe, embora se apiede da sua condição, não suporta o irmão, ama e odeia a mulher com quem deixou de se entender, e de quem se divorciou, procura manter com o filho "estranho" uma relação de camaradagem e decidiu que se suicidará antes de um ano volvido sobre o início da escrita destas notas. É um professor de filosofia do ensino secundário (como não me identificaria com tal narrador?), amargurado, falhado, infeliz. Mas percebemos que as suas razões e argumentos são frágeis e pessimistas. Se a palavra anti-herói se aplicar, há-de aqui servir mais do que nunca ou do que em qualquer outro lugar. É um romance sobre o homem como esfera de perda de poder, e como fracasso.

sábado, 9 de julho de 2022

KEN FOLLETT: O BURACO DA AGULHA

 Principio por uma citação aparentemente anódina:

"O vento e a água continuavam na sua eterna disputa, o vento descendo para provocar as ondas e o mar chiando e cuspindo ao chocar contra a terra, os dois condenados a lutar para  sempre porque um não podia ficar calmo enquanto o outro estivesse ali, mas nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."

Não escolho este trecho apenas porque constitui uma descrição muito bem escrita, nem por causa do animismo romântico que, atribuindo emoções e intenção às forças cegas da natureza, introduz uma profundidade e uma tensão dramáticas na visão que o leitor tem da ilha em que um casal vive a sua recuperação, após um acidente, mas porque, implícita e subtilmente, a eterna luta entre o vento e a água reflecte, expõe (e explica, mais do que o narrador quereria ou deveria fazer sem se tornar excessivo) o estado de espírito que impregna a relação entre Lucy e David Rose. Chocam porque a frustração é terrível, porque são duas pessoas cujos sonhos se desagregaram e porque, na ilha agreste, não podem amar-se, mas também não podem separar-se: "nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."



Este é o primeiro romance - o primeiro romance a sério, excluindo novelas de aventuras e guiões - de um Autor que viria a ser bem conhecido, Ken Follett. Por que razão, perguntava-me alguém, um "primeiro romance" não pode ser já uma obra-prima? Por que esperamos, de um começo, as falhas e incompetências do autor estreante, cuja qualidade apenas a escrita posterior poderia resgatar? Não sei. Mas, no caso concreto, porque este primeiro romance, apesar de algum sucesso na época, desapareceu sem quase deixar rasto, recalcado pela produção de obras tão marcantes como Os Pilares da Terra.

Escrito na década de 70, O Buraco da Agulha revisita os anos 40 (o início de 1944) e, no ambiente de guerra, retoma as dificuldades, os medos e as esperanças de personagens que, lendo hoje, resistem absolutamente como personagens, psicologicamente profundas, vivas, verosímeis e interessantes. O próprio Follett, num prefácio em que se debruça sobre o romance, décadas volvidas após a sua primeira edição (como ele gosta de fazer), lembra que haver tomado como protagonista uma mulher, Lucy Rose, era, então, desconcertantemente novo. O frente-a-frente entre essa mulher desamada, e Faber, o implacável ("poderoso", escreverá Follett) e tenebroso espião ao serviço dos alemães, é um imprevisível e fortíssimo motor de suspense.

Mas, sobretudo, o modo de narrar revela já uma perícia extraordinária: diferentes situações e personagens que vão surgindo paralelamente, sobre um fio invisível que se prepara para os confrontar, numa estrutura muito bem conseguida, que nos mantém apreensivos e cativos.

E no cerne desta intriga de guerra e espionagem, um facto histórico extraordinário: "uma farsa gigantesca, meticulosa, cara e ultrajante". A encenação da reunião de forças, armas e aquartelamentos, em pontos determinados de Inglaterra, de modo a levar os alemães a pensar que era a partir dessas zonas e, portanto, numa certa direcção que se preparava a invasão, mantendo secretas as verdadeiras movimentações, muito longe dali. Cenários em contraplacado, aviões ou tanques que não eram mais do que uma espécie de carros alegóricos, expostos para ser vistos do ar e induzir em erro, isto é, fazer o inimigo crer que o desembarque, no continente,dos aliados, seria em Calais, e não na Normandia.