quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

JOSÉ LUÍS PEIXOTO: DENTRO DO SEGREDO


Uma confissão: não sou, nunca fui um devorador de livros de viagens. Lembro-me de me ter sentido particularmente curioso a propósito de um, sobre Veneza, cujo autor é um homem que, entretanto, se transformara em mulher: ou seria o inverso? E há Jack Kerouac. Continuo a confissão, correndo o risco de perder mais três leitores cultos a cada nova linha? Não li Kerouac. Ah, pior: a única razão por que, em dado momento, andei à procura da sua obra, deveu-se à descrição, impagável, feita pelo meu primo, de uma passagem de Kerouac acerca de uma família, que lhe dera abrigo por algum tempo, e cujo homem (marido, pai...), muito predisposto para o riso, gargalhava, incontivelmente, de cada vez que Kerouac abria a boca, mesmo para dizer a menor das banalidades. «Já ouviram isto? Este tipo é de mais! Ah ah ah! Pare, que não aguento rir-me assim, ah Meu Deus...» Quando souber precisamente em que livro reside essa passagem, essa família, esse homem, essas gargalhadas, tornarei à busca de Kerouac.

Entretanto, Dentro do Segredo foi-me emprestado por uma amiga adorável. José Luís Peixoto partira, num fascínio compreensível, para uma viagem à Coreia do Norte, enclausurada, secreta, mítica, odiada, e igualmente odiadora, e da sua experiência coreana resultou este livro que me não deixa fugir, como um romance.

     A primeira coisa a dizer é que, segundo julgo, Peixoto segue, nesta obra, o método mais eficaz, mais interessante e, porventura, também o mais belo, para se aproximar de uma realidade "estrangeira" [em todas as acepções do termo], conhecendo-a [na medida das possibilidades, sendo que todo o conhecer consiste numa interpretação] e dando-a a conhecer [na medida das possibilidades, sendo que "dar a conhecer" significa expor uma interpretação a leitores que a interpretarão por sua vez]. E que método é esse? Chamemos-lhe impressionismo. Nada de chavões, de estudos, ou gráficos. Não há uma sistematização, apenas fulgurações, cintilações. Apenas um recolher de sinais, minúsculas impressões, situações, momentos. Lugares e pessoas, ou melhor, ângulos e instantes de lugares e de pessoas. Instantes, porque o tempo é sempre o rio que traz, no seu leito, os múltiplos, ínfimos aspectos, e imediatamente os leva consigo, antes que os tenha chegado a guardar.

A descoberta do afecto dos adultos pelas crianças, expresso em afagos, abraços, atenção, cuidado, quando se esperava a indiferença da massificação, ou um inesperado bailado de que todos participam, independentemente do género ou da idade, e em que se aproximam e olham, quando se pensava que qualquer contacto físico, sequer de olhar no olhar, seria evitado [sobretudo em relação aos estrangeiros], ou o pormenor horrendo do uso culinário da carne de cão, e a omnipresença das imagens dos líderes, ou a exaltação com que o discurso dos guias os ilumina, em sucessivas narrativas mitológicas, a imponência sempre paredes meias com a degradação [o restaurante rotativo que não roda, no alto de um hotel: e porquê?, pergunta-se Peixoto: uma avaria? economia...] são exemplos de diversas entradas para uma realidade que visitamos pelo olhar do autor.

É uma realidade de que não nos apropriamos absolutamente. Nem pensar. Nunca. Mas até as contradições são relevante - e neste caso, as contradições entre o que sabíamos ou, claro, julgávamos saber, e as percepções que disparam contínuas e ousadas linhas de fuga à carga ideológica com que nos preparávamos para enquadrar e reconhecer o que fossemos vendo.

Saímos porventura confusos, mas não decepcionados. Fechamos o livro com a sensação de que não sabemos o que são os norte-coreanos, porque não são realmente o que eram de antemão no nosso espírito; mas, como dizia a minha adorável amiga, redime-nos uma inesperada ternura por esta gente pequena, tímida, frequentemente seca, culturalmente incompreensível; uma ternura difícil, tingida de certa desconfiança e algum cepticismo, reconheçamos. São um povo que ama as suas crianças: meninos alegres, confiantes, bem tratados. Mas que, civilizacionalmente, revela dois aspectos que me fazem pensar: um colectivo delírio ideológico e o desrespeito pelos animais.

domingo, 20 de janeiro de 2013

ESCREVER DE OUVIDO E MAIS DO QUE ISSO

Rui Zink tem sido continuamente entrevistado, a propósito do seu último romance, A Instalação do Medo.

Gosto de Zink como artista que não recua diante de quaisquer riscos. Gosto da sua faceta de provocador. Apresentar uma dissertação [mestrado? doutoramento?] tomando como tema a obra de José Vilhena, requer, inegavelmente, uma coragem, uma ironia e uma liberdade de espírito que são invulgares no nosso país de gente respeitosa e de coluna vertebral em arco.

Isto avançado, tenho de acrescentar que nunca considerei Rui Zink um escritor maior.
O que dele tenho lido enferma, em geral, daquilo que Pedro Mexia designava (a propósito de um outro autor) de um défice de "investimento na linguagem e no estilo"; bem como de uma notória dificuldade na economia do conjunto, com passagens que se arrastam pelo tédio abaixo, e outras que não chegam a desenvolver-se.

Nas entrevistas, contudo, a despeito de alguma arrogância, Zink é quase sempre interessante. E as comparações e metáforas que parecem abundar-lhe, como suor, tendem a ser engraçadas e eficazes.

Uma delas é a de que o autêntico escritor «escreve com o ouvido»; e, depois, reformulava: «escreve de ouvido, no mesmo sentido em que dizemos que um músico toca de ouvido.» É um bom achado: escrever de ouvido significa que se está atento ao mundo, às vozes em nosso redor, ao que se diz, e à forma como se diz por aí. Não podia estar mais de acordo. 

Acrescentaria que saber ouvir é um talento. Nem todos os escritores são bons escritores, porque nem todos são dotados deste talento para escutar o que interessa, o que merece ser ouvido, o que é bonito, o que é bom, ou precisamente o que é mau.

Por outro lado, concluía Zink: «Há quem pense que o escritor é capaz de criar uma linguagem própria. Isso é treta!»

Era a leve tinta de arrogância a que me referia. «Saber escutar», ou ter desenvolvido em si esta arte da escuta, não significa que os melhores e maiores não saibam depois, a partir do que ouviram, «criar a sua própria linguagem». Shakespeare ouvia, e como, e com que precisão, mas o poder de usar tudo quanto ouviu numa obra que ninguém mais escreveu, implicou a criação de uma linguagem única, e absolutamente sua. Proust ouvia, e ouvia perfeitamente. Ouvia os porteiros, a sua empregada, a sua mãe, os vizinhos - ouvia-se a si mesmo, e à criança neurasténica e carente que sempre foi, mas o rio em que todas estas vozes se acertam numa espécie de esmagadora polifonia é a invenção de uma linguagem própria.

Escutar é o ponto de partida. Mas a escuta, só, sozinha, não faz a grande obra. Fá-la aquilo que Zink desmerece como «treta»: a construção de uma linguagem. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

ANITA BROOKNER: UMA AMIGA DE INGLATERRA



«Ele irradiava uma espécie de hilaridade que condizia com o seu cabelo loiro e a sua figura elegante: era da mesma altura de Heather, que se conservava calada e recatada na sua companhia, como para lhe permitir ocupar o centro da cena que ela sentia dever inevitavelmente pertencer-lhe. Quando entrei na sala de visitas de Wimbledon, na semana seguinte, encontrei-o no meio de um grupo de mulheres embevecidas, porque as tias sucumbiram imediatamente e Dorrie [a mãe de Heather] tinha uma expressão de adoração no rosto. Tendo tido oportunidade de examiná-lo por um momento antes de ser apresentada, pensei que ele estava a desempenhar bem o seu papel, mas com um ligeiro exagero. Estava a explicar-se a si próprio como suponho que se sentia obrigado a fazer, e conseguia adiantar-se a todas as questões respondendo-lhes antes que fossem perguntadas. [...] O que senti, penso, naquele breve momento antes de ser atraída para dentro do círculo, foi que talvez estivesse a ser exibido demasiado encanto e que as expressões de arrebatamento que perpassavam pelas suas feições extremamente animadas eram talvez um pouco prematuras, um pouco deslocadas, e um pouco excessivas, comparadas com a calma sobriedade emitida pela própria Heather

Lendo este livro, e já a rascunhar mentalmente o post que não poderia deixar de lhe dedicar, antevi de imediato esta citação, que vêm de descobrir, como sendo a abertura do pano. Adoro a passagem: a apresentação, por Heather, de um noivo, como um rito de passagem; a descrição sumária do acontecimento como se de uma peça de teatro se tratasse; o à-vontade da personagem principal; o arrebatamento de um público ansioso, mas, simultaneamente, para um bom entendedor, digamos para um crítico céptico e cínico, a noção de um certo excesso, de um [quase imperceptível, ou mesmo imperceptível para o público vulgar] "overacting".

Quem é que, salvaguardadas as distâncias intransponíveis, nos lembra este modo de escrever? Ou descrever? Esta consciência de uma realidade que quase nos não é mostrada através de características físicas ou espaciais, mas de subtis movimentos, gestos, inclinações em que só certos observadores atentam, e que só os intérpretes de uma qualidade especial conseguem interpretar? Proust, é claro.

Com a diferença de que Proust é um clássico, e todos podemos referi-lo mesmo que nunca o tenhamos lido. Em contrapartida, uma mulher com semelhante tipo de inteligência e intuição neurasténicas, escrevendo este livro em 1987, dificilmente teria oportunidade de ser aceite pelo «grande público». Daí que o romance tenha praticamente desaparecido, e só por um inexplicável acaso eu tenha encontrado a tradução portuguesa, suponho que de 93, numa prateleira de uma Biblioteca.

Em si mesma, a história parece de uma grande simplicidade. É antes o aprofundamento dos caracteres, e a sua elevação a tipos inolvidáveis, o que possibilita um texto que se lê com invulgar prazer: isso e, naturalmente, o facto de nos equivocarmos: confiarmos tanto na versão que a narradora nos vai apresentando, que nos esquecemos de que ela interpretou o que agora rememora, e o fez à luz dos seus próprios sentimentos, nem sempre claros para ela mesma: a inevitável arrogância e superioridade em relação a Heather, de quem é amiga, mas sente, ao mesmo tempo, dever orientar e proteger, terão de esbarrar, em dado momento, na descoberta de uma Heather oculta sob a habitual e sóbria Heather. Que mistérios de autonomia e força se desvendam por baixo das figuras que fechámos, definitivamente, no que já decidíramos que são os seus limites e insuficiências?

Se posso aproveitar para explicar por que razão me vi tão aflito para escolher dez romances portugueses de 2012, eis, neste livro de que ora vos falo, um símbolo dos motivos do meu desajustamento.

Quando leio e escrevo sobre os que andam actualmente escrevendo  [Dulce Cardoso, João Ricardo Pedro] vejo-me seguido por centenas de leitores. A sério. Alguns dos posts que faço acerca dos "actuais" chegam rapidamente às trezentas ou quatrocentas visitas. E, no entanto, que fazer? O que me move aqui continua a ser comentar livros invisíveis, textos a que chego por coincidências improváveis, ou por faro, ou por recomendação de amigos que muito prezo.

E, bem sei, este post, por exemplo, vai ter três leitores. Literalmente. Os fiéis. Não deve andar ninguém a pesquisar blogues em busca de Anita Brookner.

Mas era precisamente com ele que me apetecia principiar o ano de 2013.