sábado, 11 de junho de 2022

ALEXANDRE DUMAS: OS TRÊS MOSQUETEIROS

 

Não me ficaria bem assumir que nunca havia lido Os Três Mosqueteiros. Aliás, de facto li-o, em jovem. Tal como as aventuras de Júlio Verne, ou as de Enid Blyton, Dumas terá sido um autor ao largo do qual não passei. Mas isso sucedeu em outra vida, em outro mundo. Curiosamente, o que me redespertou a curiosidade e levou, agora, ao regresso ao D'artagnan, ao Athos, ao Porthos, ao Aramis, à cortês inimizade entre o rei e o cardeal, à terrível cicatriz de Rochefort ou à perfídia da escultural Milady, foi um romance contemporâneo, cujo título português não lembro, mas se chamava, no original, Clube Dumas (Pérez-Reverte; e, entretanto, um filme com Johnny Depp, que também vi).



À medida que o relia, entremeando com intervalos longe dele, sem lhe tocar, para o retomar meses depois, a maior parte das cenas parecia-me familiar, e esse retorno ao leitor que fui na adolescência, como sabemos, vem sempre tingido de uma alegria contida, do bem-estar do reencontro com um amigo que perdemos de vista. A troça que os parisienses faziam do Gascão chegando, cheio de sonhos, montado numa pileca, as suas irritações e desafios, as estalagens onde pernoitavam, as amantes, as bebedeiras, os duelos. Mas se a minha visão coincidia com a que o autor, muito provavelmente, desejaria que fosse a do seu leitor identificando-se com aqueles rapazes corajosos, bem-dispostos e capazes de tudo pelos amigos, devo dizer que os meus olhos mudaram muito, muito e, sob a ingenuidade folhetinesca, vêem agora personagens com que já não conseguem simpatizar.

Dumas é o primeiro a sublinhar o incómodo, e mais de uma vez o faz. Recordo, entre outras, aquela passagem em que adverte para que podemos escandalizar-nos com o comportamento de uma certa personagem, acrescentando imediatamente que não seria justo avaliar, segundo os critérios do tempo em que vivemos, costumes que eram comuns na época que está a ser descrita. Não poderia estar mais de acordo, em princípio. Mas sabem a que propósito vem o comentário? De que Porthos seduzira uma mulher muito mais velha, a Sra. Coquenard; lhe escreveu cartas, exortando-a a que lhe pagasse as dívidas na estalagem; ou, mais tarde, a que lhe oferecesse a quantia para se equipar como mosqueteiro - ameaçando-a de lhe retirar o amor, comparando a avareza e a mesquinhez dela, que hesitava, com o que outras mulheres não deixariam de fazer por si, excitando-lhe o ciúme. Dir-me-ão: o moralismo é sempre uma má lente na análise da literatura. Sem dúvida. Mas o de Porthos é um exemplo da altivez e do desrespeito face às mulheres ou aos criados que aqui se toma como normal e modelar.

D'artagnan não pensa duas vezes em fazer a corte à mulher do seu senhorio - que, nem de propósito (tão conveniente!), descobrirá, depois, tratar-se de um tratante e de um vendido; nem pensa duas vezes ao cultivar a paixão, por si, da criadinha de Milady, como forma de se aproximar da sua inimiga. Mesmo o modo como enganará Milady, passando, na obscuridade, pelo seu amante, e fazendo sexo com ela, tem qualquer coisa de vil.

Não me choca que Os Três Mosqueteiros se desvende, quando lido na maturidade, como uma trama de arrivismos, arrogância, desprezo pela vida, vingança, falta de escrúpulos, má-fé. Aflige apenas que não se trate tanto de compreender a verdade das pessoas no seu ser íntimo e contraditório, ou de as analisar na sua complexidade psicológica, mas de criar um ideal romântico. O romance é extremamente maniqueísta: separa os bons, ao serviço do rei, dos maus, fiéis ao perverso cardeal. Acontece que não gostaria de ter aqueles "bons" por amigos meus.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

IRENE VALLEJO: O SILVO DO ARQUEIRO

 

Antes de mais, hei-de confessar que aprecio imenso Irene Vallejo e o seu modo subtil de conjugar a leveza do entretenimento e o peso do saber, em obras onde a História (por exemplo a do nascimento do livro e da invenção da sede pela leitura) se nos oferece narrada através de uma multiplicidade de histórias muito vivas e saborosas, sobre imperadores que não sabiam ler (mas haviam desenvolvido um fascínio por livros, e mandavam buscá-los, reunindo-os), guerreiros, sábios, escritores e leitores vários, que transformaram o conceito e o objecto, ao longo de séculos, nestes volumes simples e manuseáveis, que transportamos connosco e nos possibilitam o mergulho em outros mundos.                                                                               

 O Silvo do Arqueiro é um romance da autora. Comprei-o com certa ansiedade, principiei a lê-lo com um interesse que, estranhamente, contudo, parecia ir esmorecendo até à desistência, vá-se lá perceber por que ocorrem estas falhas de comunicação, até que, em dado momento, inesperadamente, a chama reacendeu, o interesse brilhou, percebi que o problema devia ter sido meu e do momento da minha vida em que iniciara a leitura, pelo que voltei ao princípio, cheio de fome.


Alguma coisa no romance é originalíssima. Diferentes personagens vão narrando a sua parte de uma história complexa, com diversas correntes, e não, não seria a mencionada pluralidade de olhares, em si mesma, a novidade. Embora, aqui, o mecanismo que a estrutura funcione magistralmente: refiro como particularmente tocante a mudança de perspectiva, como se se passasse, até, de um elemento para outro, quando Eneias primeiro, Elisa, depois, ignorantes do que o outro escrevera, ou pensara, contam o mesmo acontecimento: a forma como, escapando ao combate contra os nómadas que os haviam emboscado, e secretamente guiados pelo deus Eros (cuja presença Elisa pressente, sem ver), se abrigam da tempestade numa gruta, se aproximam um do outro, e se amam. Nas narrações, diversas, do mesmo acto, que extraordinária transformação de olhar e de sentimentos - do desejo de Eneias, do seu orgulho por ter salvado Elisa, da ambição de sentir-se amado por quem o faça esquecer a esposa que o traíra, para o receio, dela, de que, ao despi-la, o homem descubra as imperfeições físicas da mulher já não jovem, já madura, para o seu desejo delicado, terno, medroso e, por fim,  para a sua entrega. Entrega, mas com a liberdade de uma escolha, e a consciência de que o será, ainda que contra tudo e todos.

A originalidade reside, no entanto, em outro aspecto: que neste universo, aos deuses seja concedida realidade. Eros, já indicado, tem o lugar de um dos protagonistas e um dos narradores, como Eneias, Elisa [Dido], Ana; (também Vergílio surgirá, personagem de um outro tempo, mas com outro estatuto, e a quem só muito mais tarde leremos/ouviremos a fala na primeira pessoa).

Ora, embora, como escrevi, haja deuses que atravessam dimensões para interferir na vida dos humanos, eles apercebem-se de que as histórias que os homens e as mulheres contam, as suas versões dos acontecimentos, são sempre inflaccionadas, tendem ao mito: Eros observa-o, com alguma ironia e uma ponta de inveja. Eles não conseguem ater-se aos factos, nem compreender as causas reais: imaginam que os move o amor, ou a virtude, ou outros sentimentos e desideratos sublimes. O Bem e o Belo, nunca a economia, as riquezas, o comércio, o território. Que fantásticos ficcionistas, sublinhará o deus.

É essa mistura entre o mitológico e a desconstrução do mito como ilusão e falsa narrativa, reveladora, porém, da criatividade humana, o que torna este romance um paradoxal mito que lê, elogia e supera a experiência mitológica.

A escrita de IV mantém uma aura poética e retórica felizes, muito bela, que se adequa ao discurso do troiano, da rainha de Cartago, da vidente ou mesmo do deus. Remeto para um único exemplo, este: "Acaricia a superfície da água, movendo as escamas de sol" e, seguríssimo de os ter impressionado, nada mais acrescento sobre o assunto.

sábado, 4 de junho de 2022

LEONARDO PADURA: COMO POEIRA AO VENTO

 O romance, é claro, foi mudando de vestuário, à medida que diferentes equilíbrios sociais dele exigiam, ao longo dos séculos, objectivos que já não coincidiam com os do seu início, e uma nova classe, chamemos-lhe assim, de intelectuais consolidados e respeitados, o usavava como um laboratório de experiências, com a linguagem, com a forma de narrar, com o tempo, o espaço, as vozes. 

Alguma coisa se ganhou: a consciência do seu papel, o conhecimento da sua história, sem o qual as inovações não seriam possíveis, uma plasticidade que abria portas e criava caminhos. E, como sempre, alguma coisa se perdeu: talvez um fôlego, a visão omnisciente de um narrador invisível, a qual, com todos os defeitos, permitia a estrutura que tudo ligava e, em última análise, que o leitor seguisse variados desenvolvimentos de personagens, histórica e psicologicamente, em tempos e em espaços não coincidentes. O auge desse maneira de contar, intensa e de largo espectro, foi alcançado pelos russos do século XIX. Teve, depois, um fulgor genial e quase incompreensível em Proust. E, com raras excepções (Musil, Mann, para referir duas, evidentes), saiu de cena.



Leonardo Padura, autor cubano, tornado conhecido por ser o criador do detective Mario Conde, numa série de policiais de um realismo tocante, no cenário de uma Havana imbuída de pobreza, amizade e alegria, é um dos escritores contemporâneos capazes de ressuscitar o romance complexo de que vos falava, acompanhando a história de uma época, da revolução, melhor, das revoluções, dos desequilíbrios e reequilíbrios dos anos 40,  50, 60, 70, em suma, do século XX e, neste caso concreto, da sua viragem para o XXI. Já assim fora em O Homem que Gostava de Cães, onde passa em revista o centro do século, a partir de Trotski e Mercador (portanto da Rússia soviética sob Staline e da Espanha na Guerra Civil, e da Europa, ou dos comunistas e, de algum modo, todos os outros, na forma como se definiam sempre relativamente ao comunismo e à URSS). Volta a sê-lo com o impressionante Como Poeira ao Vento.

Também a forma, escorreita, cumpre o modelo do grande romance burguês, no sentido estritamente histórico da palavra: nem uma grande ousadia no uso da linguagem, preferindo-se a eficácia contida para o contar límpido de uma história, nem sobressaltos na estrutura.

Neste romance monumental, em que nos movemos com dificuldade em suspender por um instante a leitura, somos apresentados a Adela, uma nova iorquina de ascendência cubana e argentina (pelo menos é o que ela pensa, trata-se do que lhe contaram), com uma relação mais difícil com a mãe do que com o pai, e que travara, entretanto, conhecimento com um recente refugiado de Cuba, um balsero.

Numa fotografia que Marcos lhe mostra, em que lhe sorri da infância cubana, com os pais e os amigos deles, Adela identifica a sua própria mãe, grávida. Que história secreta, que passado inconfessado, ou simplesmente por contar, encerra essa fotografia, e de que modo explicaria a frieza da mãe em aceitar a paixão e a vida em comum de Adela e Marcos?

A descoberta da fotografia e da questão, ou questões, a que ela obriga, são o mote para um regresso ao passado e à biografia daquele grupo, das suas relações fortes e tempestuosas, da sua situação relativamente ao regime cubano, as suas dúvidas, os seus receios, as experiências traumáticas, o exílio de quase todos eles. É, como dirá Padura em uma entrevista, a história de uma geração, a sua geração. 

A história complexa, tortuosa e torturada, política e cultural, de um país e de um grupo de pessoas que representam a encruzilhada entre a aceitação de uma revolução, que prometia um mundo melhor, e a consciência das perseguições e do controlo.