O que me foi conquistando? Sei perfeitamente. Primeiro,
alguns diálogos, um certo sarcasmo de várias personagens, uma ironia constante
de Corto Maltese. Depois, a história. Parecia-me confusa, labiríntica, perdia-me
(como, mais tarde, em alguns romances russos), mas quando detectava o fio, e me
agarrava a ele, como a uma melodia, era difícil não sentir que a minha
curiosidade e a minha imaginação se viam preenchidas por uma matéria que as
alargava, as esticava, rebentava com elas. Finalmente, devo dizer, o próprio
desenho. Não era esquemático, mas deliberadamente reduzido ao essencial, a uma
essência magnífica, por um trabalho genial sobre o claro e o escuro, o branco e
o negro, a sombra e a luz. As figuras, os movimentos e as paisagens não se
tornavam diminuídos, mas engrandecidos por essa concentração reveladora, esse
dom de os tornar mais autênticos.
Nesta fase de adulto sofisticado (hehe)
confesso que as minhas predilectas são as mais complexas e fantásticas. Mas ando
a reler os álbuns que a biblioteca da escola adquiriu, com o intuito de preparar
uma actividade que desperte os alunos para esta personagem. E, neste caso,
começo por "As Célticas". São mais simples, contêm um elemento de fantasia que
desconcerta, mas, na verdade, algumas são brilhantes. Sempre com um traço de
ambiguidade: o traidor que afinal o não é, o herói e mártir sob cuja imagem
popular se oculta o verdadeiro traidor.
Chamam a Corto Maltese um
«anti-herói". Sei porquê. Hoje sei porquê. Em jovem, escapava-me o sentido do
termo aplicado a quem, para mim, se tornava, paulatinamente, um herói. Mas o seu
romantismo que nenhuma mulher preenche (as mulheres são aqui, por outro lado, de
uma liberdade e de uma profundidade raras em histórias em quadrinhos), o seu
gosto um tanto imoderado por riquezas (CM move-se frequentemente em busca de
tesouros, por causa dos quais viaja e enfrenta perigos desmesurados), a sua
humanidade excessivamente presente (ainda que se tratasse, em todos os casos, da
humanidade no seu melhor), a sua fragilidade, mal disfarçada por uma ironia
contínua, fazem de Maltese um ser com dúvidas, descrenças, corajoso, mas não
poderoso de mais, eticamente íntegro, mas, pensando bem, imperfeito.
Sem comentários:
Enviar um comentário