segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

JONATHAN FRANZEN: CORRECÇÕES


O livro era uma promessa. Primeiramente, o homem do fraque havia-o recomendado, no seu blogue, como sendo um dos imperdíveis de 2010. [Tenho-me dado bem com os conselhos do homem do fraque: Miguel-Manso, Vonnegut...]. Mas, há dias, um comentário de António-Pedro de Vasconcelos referia-se também a Correcções como sendo um livro da linhagem de O Homem Sem Qualidades ou Em Busca do Tempo Perdido. Obras imensas, demoradas, pacientes e carecidas de um leitor paciente para o recompensarem. Não resisti mais, fui em busca.

Evidentemente, estou longe de o ter terminado. Mas é verdade que todos os demais ficaram suspensos, flutuando num limbo, à espera que eu possa voltar a dedicar-me a eles, ou seja, aguardando que eu cumpra a minha prioridade - leio Correcções com uma energia e uma convicção que me faltavam há muito.

Confesso que não encontro Proust. Bem sei que ninguém me disse: «É Proust!» Disseram-me: «Há uma linhagem comum, uma tradição que os liga, é um género similar de romance». Ainda assim: em Proust, como sabem, as menores sensações são voluptuosamente descritas numa linguagem incomum, cativante, que apetece ler como se fossem os versos de um poema. Franzen não dá isso, não dá tanto. Dá-nos um romance sobre uma família que vamos compreendendo em torno de um tema muito, muito, muito simples: o desejo que a mãe (Enid) tem, de reunir, em sua casa, num último Natal, a família: seu esposo (Alfred), um engenheiro reformado, que o descontrole e o esquecimento da doença de Parkinson devoram aceleradamente; os filhos (Chip, Denise e Gary), a nora e os netos: mas todos eles estão longe uns dos outros, separados, mais do que pela distância física, por tensões e irreconcliações dramáticas.

Mas se o tema é de uma alarmante simplicidade, a estrutura do romance é elaboradíssima. E magnífica. Porque é no decurso das situações em que as personagens se relacionam (e confrontam) umas com as outras, que vão emergindo e se vão mostrando as personalidades, os medos, as raivas e as histórias pessoais que as foram construindo. Um mero exemplo da mestria com que Franzen revela as pessoas a partir do banho das situações: veja-se toda a segunda parte, em que o leitor é testemunha de uma terrível sucessão de cenas em família. Gary Lambert (um dos filhos), Caroline, a mulher deste, e seus três rapazes. Mas onde principiávamos por ver, ilusoriamente, um homem seguro e sólido e uma família nuclear perfeita, cedo descobrimos uma luta interna que se agudiza, depressões, paranóias, vigilâncias, a tentativa, por parte de cada um dos progenitores, de aliciar os filhos num clube que se oponha ao outro progenitor. Há questões que nunca chegam a ser superadas: quando se pensava que a razão as solucionara para seguir em frente, eis que regressam sempre, mesquinhas, atormentadoras, sob a forma de uma pergunta aparentemente irrelevante, que se torna uma estranha obsessão.

Porque é, fundamentalmente, isto que está no centro do romance. Personagens que procuram «corrigir» (não só corrigir-se a si mesmas, mas corrigir o passado, como se houvesse uma segunda e paradoxal oportunidade para reviver, de um modo novo e melhor, emendado, o que já passou); mas que nunca entendem que as suas tentativas de «correcção» da vida não são sequer operações racionais, porque o que as impulsiona (e bloqueia) é da ordem do irracional: perspectivas erradas, desejos de vingança, incapacidades de compreender outrem, um programa ineficaz de manipulação, escolhas mal feitas que assombram, do fundo da sua história, cada um destes indivíduos infelizes.

É um livro que se lê com angústia. Uma angústia fininha, como certa chuva que nunca desaba por completo. É um livro em que nos lemos - ou, como escreve, sobre ele, Don DeLillo, um livro em que, em última análise, lemos a nossa própria cultura.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

ANTONIO BAÑOS BONCOMPAIN: A ECONOMIA NÃO EXISTE


Todos os racionalistas, que desconfiam dos sentidos, perguntam (ou partem sub-repticiamente da pergunta): Como posso eu estar certo de que a «realidade», que apreendo através de sensações, é real? Por que não uma ilusão, uma alucinação, uma virtualidade, um sonho?

A pergunta soa-nos mal, porque a «realidade» é a realidade a que nos habituámos. Não a questionamos porque não percebemos que, na aceitação do que os sentidos nos entregam, há um acto de fé.

Da mesma forma, quando Antonio Baños Boncompain escolhe, como título da sua obra, A Economia Não Existe, introduz, na leitura, um desconforto e uma inevitável perplexidade. Porque a economia é a nossa realidade, porque comanda as nossas vidas (e de que maneira!), e porque existem até prémios Nobel dessa matéria.

A estratégia de Antonio Boncompain é de uma simplicidade elementar. Primeiramente, começa por questionar a economia como ciência: que raio de ciência seria essa em que, a despeito de uma linguagem ininteligível, que só os eleitos decifram (e, porventura, nem todos) e de uma impressionante utilização das matemáticas, realmente não se é capaz de quaisquer previsões? Todas as crises parecem inesperadas: é um facto. Os Nobel são os primeiros a mostrar espanto quando o terror cai globalmente sobre as nações. Por outro lado, não é verdade que as crises são criadas pelos próprios responsáveis pela economia? Não é verdade que é o discurso economista que, num certo sentido, provoca os altos e baixos? Não é verdade que a crise resulta, em primeiro lugar, da psicologia - o medo e o pânico, ou a confiança dos consumidores e dos accionistas?

Mas, se quisermos fazer uma abordagem histórica, observamos que as «leis naturais e eternas» da economia são, na verdade muito recentes. E, comparando sociedades, também não temos dificuldades em perceber que houve - e há - sociedades onde a «economia» não tem qualquer papel. Em torno destas ideias, na verdade muito simples, mas que nunca havíamos posto com esta acutilância, Antonio Boncompain revela a economia como uma pseudo-ciência, no limite do imoral (porque carece da pobreza para produzir riqueza, por exemplo; ou porque nos ensina a ver como incontornável o trabalho assalariado, quando este é uma invenção cretina da Idade Média, que não visa senão reproduzir-se indefinidamente, reproduzir o sistema e controlar a perigosa mobilidade dos pobres, fixando-os e criando-lhes rotinas de que dependa a sua subsistência); é uma «ciência» de profetas que, em última análise, não serve senão os próprios profetas (cuja palavra decide a dinâmica dos mercados) e as classes privilegiadas.

Há, neste livro, um humor ácido a que não estamos habituados. Talvez essa veia sarcástica tenha sido um aspecto perturbador no início da minha leitura, como se representasse falta de seriedade, uma falha imperdoável em trabalhos académicos. Mas, assentemos, não se trata de uma tese académica. A Economia Não Existe é um texto de divulgação, uma cantiga de escárnio e mal-dizer, uma excelente provocação da forma como a nossa vida se deixou enredar completamente por meandros que fazem passar por científico o que tem, antes de mais, um carácter ideológico e político.

Frustra-me, talvez, perceber que é com base num absoluto logro que o governo do meu país decidiu fazer desaparecer, todos os meses, uma parcela significativa do salário que nós, funcionários públicos, conquistáramos. Mas não deixa de ser importante lembrá-lo, compreendendo o cinismo com que, ao longo do tempo, os mais diversos economistas (ou pré-economistas; vide São Tomás de Aquino himself) estavam conscientes de que, em última análise, se trata sempre de encontrar os meios mais eficazes de manipular os meios e condições de subsistência dos indivíduos na cidade.

«O» POEMA DE JOSÉ RÉGIO

O sublime Cântico Negro, de Régio, no incontornável blogue «suplementar» de Mariana, ou seja, aqui:

sábado, 26 de fevereiro de 2011

FORMIGA PREVIDENTE OU CIGARRA ESBANJADORA? OU QUÊ?

Recebi o meu ordenado.
Em poucos dias, adquiri já os seguintes livros:
Correcções, de Jonathan Franzen (o mais caro, mas o mais apetecido); Vamos Todos Matar Constance, de Ray Bradbbury (digamos que, neste caso, foi também o preço de saldo o pormenor a que não resisti); A Economia Não Existe, de Antonio Baños Boncompain (aqui, percebe-se: foi o título, aquilo a que não resisti. E lendo-o, não o considero uma desilusão: só uma meia-desilusão...); E hoje mesmo, da abençoada Trama, trago um exemplar de uma reedição (de tiragem limitadíssima) de Quando Escreve Descalça-se, de Miguel-Manso.

Conclusão: agora, depois disto, vou ter de começar a fazer regime.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

RENÉ DESCARTES: DISCURSO DO MÉTODO



O Discurso do Método, que me não lembro quando li pela primeira vez, mas não foi certamente no liceu - os professores de filosofia não convidavam à leitura dos textos dos filósofos; escondiam-no-los bem... -, é, sem dúvida, uma obra extraordinária.

É verdade que a argumentação de Descartes nem sempre se mostra inatacável. Nada na progressão do seu raciocínio parece, realmente, «indubitável». Algumas das ideias que apresenta como «evidentes» são, bem vistas as coisas, muito pouco evidentes. O pendor para a falácia respira asmaticamente em cada página. A segunda prova da existência de Deus, por exemplo, é uma falácia tão berrante como certas gravatas são berrantes. E, claro, à sua contenção more geometrico prefiro mil vezes a subtileza dos pensamentos de um Pascal. Tudo isto dito, mantenho a afirmação com que iniciei o texto: trata-se de uma obra extraordinária.

Há, em Descartes, uma candura que só Kant porá consequentemente em causa. Essa candura, curiosamente, é-me agradável, refrescante, como se fosse possível esperarmos que o pensamento se baste a si próprio, que encontre, no seu interior, todas as peças e ferramentas para «montar» a verdade: como certos produtos que compramos no IKEA.

Agrada-me essa frescura própria de quem não sofreu demasiado. A filosofia de Descartes permite uma leitura em que suspendemos as nossas crenças. Do mesmo modo que eu não creio no inferno, mas não posso deixar de crer plenamente no inferno enquanto leio Dante; da mesma maneira que sei que o som não se propaga no vácuo, mas isso não me impede de acreditar nas naves que se deslocam, veloz e ruidosamente, nos vazios do universo, em Star Wars; da mesma maneira que sei que o pequeno «Marcel», de Em Busca do Tempo Perdido, não é, de facto, Marcel Proust (não é ninguém a não ser uma personagem-que-recorda-e-narra, uma ilusão falante), mas, no entanto, a sua existência física não está em causa durante a leitura da obra - também, quando leio o Discurso do Método, me sinto tranquilo e confiante na força do pensar. Percebo as dúvidas mais excêntricas que o assolam. (Mesmo esta: que o mundo que vejo ou cheiro ou toco possa não existir a não ser como engano ou sonho). E sinto-me deliciado pelo engenho com que ultrapassa essas dúvidas. Claro: ao fechar o livro, meditando, descubro as falhas, as fragilidades, as arestas, as falácias, o delírio, a mentira até. Mas, regressando à leitura,torno a sentir-me em casa: na casa do pensar.

Não sei se é esse conforto que se espera de um filósofo, se o contrário. Nietzsche dá-me precisamente o contrário. Sempre. Mas Descartes recebe-me muito bem; acolhe-me com uma desusada hospitalidade: não poderia enjeitá-lo.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

TRINDADE COELHO: IN ILLO TEMPORE



Hoje, que a praxe está sob suspeita - aliás justamente, em grande medida - e um certo humor estudantil, desrespeitoso e transgressor, se tornou inaceitável, Coimbra perdeu o encanto: refiro-me à Coimbra dos estudantes de capa e batina, da cabra, das serenatas e dos namoros, das guerras aos futricas, das arruadas, da poesia sarcástica e do fado coimbrão. À Coimbra das repúblicas, do desprezo pelos caloiros, dos jornais estudantis e de monumentais assembleias de alunos. Dos copos e das noitadas.

In Illo Tempore é, portanto, no nosso tempo e cada vez mais, um livro politicamente incorrecto. Todavia, em capítulos curtos e autónomos, cada um dos quais conta um episódio, ou uma anedota coimbrã do seu tempo de estudante, Trindade Coelho apresenta-nos personagens pitorescas, cheias de malícia, raramente malvadas, com um sentido de humor e um espírito da brincadeira, que, simultaneamente, testemunham o modo irreverente de ser, típicos de uma época e de um lugar.

Há passagens notáveis de inocência e malandrice: por exemplo, a propósito daqueles rapazes que viviam em comunidade, a quem uma vizinha velha enviou uma taça de marmelada, que agradeceram num poema escrito a várias mãos; ou do modo como os estudantes usavam o carnaval para organizar desfiles de escárnio e crítica. Mas, o principal do humor que se derrama por essas páginas, diz respeito à palavra: a réplica rápida e mordaz, o trocadilho bem conseguido, a frase dúbia e mortífera, as alcunhas certeiríssimas.
É toda uma cultura que hoje não seremos, talvez, capazes de compreender. Uma cultura, ao mesmo tempo, da brevidade: jovens que estavam de passagem por Coimbra (mesmo, como acontecia a muitos, quando demoravam demasiado tempo a concluir o curso) e, durante essa passagem, quase no sentido iniciático, se deixavam enredar mais facilmente pela alegria das noitadas, do que pela obrigação do estudo; muito mais pelo desrespeito relativamente à autoridade, do que pelo exemplo vindo de cima. Há, nessa Coimbra de outro tempo, a intuição clara de que se estão a gastar os últimos cartuchos: dali a poucos anos serão, todos eles, senhores casados e respeitáveis. Serão advogados ou engenheiros, no comboio da rotina.

É divertido? Creio que sim. Mas de uma diversão que transporta em si um elemento de nostalgia e despedida. A juventude é destravada porque é breve. Coimbra, que pertencia aos jovens, era necessariamente destravada - e breve.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

CONVITE A TODOS OS QUE QUEIRAM


Não se esqueçam:
reservem essa tarde para me abraçarem

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LAWRENCE DURRELL: QUARTETO DE ALEXANDRIA




Neste tempo em que o Egipto tem sido palco de uma tão conturbada exaltação, dou por mim a conversar com amigas acerca de Alexandria. Falam-me desta, elas, que a conhecem, como sendo uma cidade muito bela, ainda que de uma beleza em que a pobreza e a degradação vieram deixando terríveis sinais. E tento mostrar-lhes o que Alexandria - em que nunca estive - significa para mim.

Paro um instante para tentar aperceber-me dos contornos e da história da «minha» Alexandria. Por que tenho tão vívido no espírito, como uma evidência inata, este lugar por experimentar? Kaváfi, é claro, terá sido um dos responsáveis por tão insólita saudade a propósito de uma cidade que não vi; mas Kaváfi é uma descoberta recente: antes ainda de haver lido o poeta, Alexandria já me chamara pela voz de um outro: Lawrence Durrell, que lhe dedicara uma das obras mais complexas e difíceis, labirínticas, ousadas e terríveis: O Quarteto de Alexandria, em 4 volumes (Justine, Balthazar, Mountolive e Cléa).

O Quarteto de Alexandria
, inspirado, ao que parece, na teoria da relatividade, é uma obra em que se apresenta uma mesma realidade, ou seja, um único conjunto de factos, mas segundo diferentes perspectivas. Há uma primeira visão estática, fragmentária, em que as personagens e as situações nos são expostas como numa composição, como numa estrutura imóvel. Não existe tempo, não se percebe o que ocorreu «antes» ou o que ocorreria «depois»: observamos aspectos que se articulam num todo coerente, e que vamos abarcando à medida que subimos ou descemos o nosso olhar ao longo de um plano - de um quadro em que nada progride ou se modifica interiormente.

De algum modo, cada um dos novos volumes vai introduzindo uma outra perspectiva - quer porque é a perspectiva de uma outra pessoa (após Justine, no primeiro volume, virão falar Balthazar, Mountolive e, por fim, Cléa), quer porque, em cada casa (pretendia escrever «caso», mas o lapso enriquece o sentido) em cada "casa" estamos perante uma nova chave de apreensão dos acontecimentos: só no último volume essa chave é o tempo. Projecto gigantesco, megalómano mas conseguido, constrói-se como um monumento que usa uma substância uniforme; voltado sobre si - insisto: trata-se sempre da apresentação de um mesmo conjunto de factos -, repetindo, pois, volume após volume, o que já conhecíamos segundo um olhar diferente. E é, no entanto, sempre novo e fascinante. Não podemos deixar de nos perguntar: como se faz uma obra assim? Imensa, extensa mas articuladíssima, sem falhas: tão próxima e tão distante de Em Busca do Tempo Perdido...

Releio este post e sinto-me quase indignado pela reflexão, que lhe subjaz e se fica por um encantamento intelectual em torno de uma técnica, quando o romance de Durrell possibilita, mais do que tudo, o rasgar de cortinas sobre as emoções de pessoas desamparadas, num perpétuo desencontro entre o Ocidente e o Oriente, que é, em parte -mas uma grande parte - a razão de como eu vejo essa Alexandria que nunca vi.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

CHOLOKHOV E BARATA

Estou muito satisfeito por duas razões não aparentadas.

Uma, é que me trouxeram, das catacumbas da Biblioteca de Oeiras, ou seja, o depósito, o segundo volume de O Don Tranquilo, de Mikhaïl Cholokhov. Li dois parágrafos. Ao todo, dezasseis linhas. E pu-lo de parte, para me dedicar a outras tarefas que berravam por mim, mas com um estremecimento interior de alegria, um: «Espera aí, eu volto!»

Outra, é que o lançamento de Nada Mais e o Ciúme, o anunciado lançamento na Livraria Barata, já tem data marcada: será no dia 19 de Março. É Dia do Pai. É um sábado. Será à tarde - por volta das 17 h. 30 min. Terei, como oradora, Maria João Costa, crítica literária da Rádio Renascença e participante activa de Correntes d'Escrita. A todos os que puderem - e, naturalmente, quiserem - convido, desde já, para que apareçam, nesse dia, na Livraria Barata da Avª de Roma. [Mesmo quem se zangou com a Barata e jurou que nunca mais tornava a pôr lá os pés!]

sábado, 12 de fevereiro de 2011

JOSEPH CONRAD: LORD JIM




Sou um leitor que, mais do que devorar, deixa que certos livros o devorem.

De Joseph Conrad, o nobre polaco que aprendeu tarde o inglês (aos vinte e três anos), mas o aprendeu com tamanha perícia, que se tornou um cultor da língua, o meu livro preferido é The Hearth of Darkness. [Traduzido, em português, como O Coração das Trevas: obra maior acerca de um homem que mergulha na sua própria obscuridade, no seu lado selvagem, que o é de todos nós, e a frágil polidez da civilização julgara erradamente haver suprimido para sempre].

Mas há um outro romance que não esqueço. Lord Jim. Vi-o em cinema: não gostei; lera-o, a primeira vez, ainda demasiado jovem, e pareceu-me maçador. Reli-o mais tarde, já professor, porque tinha ficado marcado por um gesto do protagonista, um acto que transformaria toda a sua vida. Quis falar disto aos meus alunos. Até que ponto um acto que demora uma fracção de tempo pode ter o poder de me configurar para sempre, ao olhar dos outros, como um «cobarde»? Ou como um «herói»? Não dizia Borges que a verdade de uma vida pode ser encontrada num único instante?

Conrad - não me tomem por presunçoso - deve ser lido em inglês, porque o seu inglês o merece. E merece o trabalho e o esforço que possa dar. Lord Jim vale, pois, pela escrita muito bela, pela linguagem sofisticada e difícil; mas é, principalmente, um romance iluminado por questões filosóficas decisivas acerca da acção, que sempre me preocuparam. E questões acerca da escolha: o que há, neste gesto em que me defino, ou os demais me definem, de realmente «escolhido» e decidido por mim? O que há, em cada gesto meu, por outras palavras, de realmente «meu»?


Em Lord Jim subsiste o lado conradiano que, em si mesmo, menos me interessa, o do infinito e tenebroso horizonte marítimo, das tempestades, dos piratas, dos naufrágios. Mas é esse, também, o singular elemento da relação entre os homens ou, pelo contrário, da solidão; e, em todo o caso, sempre do encontro - às vezes do desencontro? - do sujeito consigo próprio. É sempre isto, o homem em face de si, o tema e o segredo: é-o em O Coração das Trevas, em Lord Jim, em Nostromo; até em O Agente Secreto se trata do homem perante si mesmo. É-o sempre de um modo a que a presença do mar, como em Lord Jim, empresta uma inigualável intensidade.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA: OS AMIGOS

Um amigo enviou-me este poema de J.T.M., que me calou fundo:


Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino Mendonça, «Os Amigos» in De Igual Para Igual

É muito, muito, muito bonito, não é? Obrigado, amigo.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

SAUL BELLOW: HERZOG



Meu avô era um admirador de Saul Bellow.

Lembro-me perfeitamente de certas preferências, surpreendentemente ecléticas, do pai de minha mãe: John Lennon, quem diria?; Ary dos Santos, que insultava por razões ideológicas, sem conseguir esconder o respeito pelo talento poético; Proust, de que relia, infatigavelmente, os volumes da Gallimard, que herdei e guardo ali, na estante, muito velhinhos (embora eu ainda tivesse tido dinheiro para mandar encadernar um único: o primeiro); Sartre - que também insultava, tratando-o de «monstro», mas lia com atenção -; e Bellow. Meu avô conhecia-lhe a obra, ainda o autor não recebera o Nobel em 1976. Eu só o conheceria, evidentemente, muito mais tarde.

O primeiro livro que li da sua autoria foi Herzog. Espantei-me: com a coragem de tomar por personagem praticamente exclusiva um homem (os seus pensamentos, as suas conversas imaginárias, as suas obsessões, que expressa em cartas, muitas das quais nunca serão enviadas, ainda que continue exaustivamente a escrevê-las). Na altura, eu era já estudante de filosofia. [Meu avô, curiosamente, nunca acreditou em mim como estudante de filosofia]. E Herzog, professor de filosofia, interessou-me desde as primeiras linhas pelo rigor e pela cultura da reflexão, tensa, elevada, cínica: é munido desse espírito filosófico, discutindo consigo e com os filósofos, escrevendo-lhes, que visita o seu passado - ou a trágica sucessão de perdas afectivas que constituiu o passado.

Mais tarde, li outros livros de Bellow: mas em nenhum outro tornei a encontrar aquela intensidade com que se descreve um único homem, o qual, no momento em que tenta reerguer-se, entra em colapso, medindo-se com os seus fantasmas e com uma lucidez que está já na orla da loucura. Com que se descreve o seu estranho e complexo mundo: um mundo que existe e não existe; um mundo que só até certo ponto é real, mas é, sobretudo um vazio profusamente povoado; um nada em que se encontra a si próprio, a sua dor, os seus limites. Mas, como escrevia, nunca mais voltei a encontrar o mesmo Bellow - o de Herzog. Esta é a formulação pessimista. A optimista seria: felizmente, e graças a meu avô, um dia encontrei o autor de um romance (sim, poderíamos chamar-lhe: romance) que nunca mais esquecerei: Herzog.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

OS LIVROS: PROCURAR OU SER ENCONTRADO

Variadas são as formas pelas quais podemos chegar a um certo livro: ouvíramos falar do autor; ou conhecíamo-lo de outros livros. Ou sabíamos qualquer coisa acerca da história que é narrada. Ou o tema soprava por nós, ou o título nos assobiou, ou a capa nos disse algo a que não fomos capazes de escapar.

Tão interessante, porém, e às vezes mais interessante do que o meio por que chegamos a um livro, são os meios pelos quais um livro pode chegar a nós: como vindo do nada, ou de um mundo de que não tínhamos notícia. Como uma chuva brusca, que não pedimos e não esperávamos.

Minha amiga Maria tem sido, na minha vida, médium de espíritos literários que me invadem sem que os invocasse. Autores estranhos, insólitos insolicitados, mas apaixonantes; histórias no limiar do paroxismo moral ou do absurdo estético (como seja o caso de A Papisa Joana, de que nunca recuperei).

Minha amiga Paulina também. Ontem, numa festa de anos que eu não fiz, ou seja, numa festa que me não pertencia, trouxe-me, porém, de presente, um livro que não consigo deixar de ler. Que talvez jamais consiga deixar de ler. Chuva ácida. [Não é o seu título, é o que ele me parece ser]. Trata-se de um livro de que falarei em breve, mas não ainda: hoje, só quero assinalar estas duas formas de nos ligarmos aos livros: há uns, que procuramos meticulosamente - e há outros, que nos encontram antes de sabermos, sequer, que existem. Arrombam-nos, sentam-se, bebem do nosso vinho, comem do nosso pão. Entranham-se. Por fim, talvez nos degolem.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

WILLIAM CARLOS WILLIAMS: «SO MUCH DEPENDS UPON» (1923)

so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

beside the white
chickens.

*

tanta coisa depende
de um

carrinho de mão
vermelho

esmaltado de água
da chuva

ao lado das galinhas
brancas

JULIA E SEBASTIAN: REVIVER O PASSADO EM BRIDESHEAD

«É altura de falar de Julia, que até agora tem desempenhado um papel intermitente e um tanto enigmático no drama de Sebastian. Foi assim que ela me apareceu no momento, e eu a ela. Perseguíamos objectivos diferentes, o que nos aproximou um do outro, mas continuámos estranhos. Mais tarde, disse-me que formara uma ideia sobre mim, como se, ao explorarmos a estante à procura de um determinado livro, a nossa atenção fosse despertada por outro, o tirássemos, olhássemos para o título e, dizendo "também tenho de ler este, quando tiver tempo", o tornássemos a pôr no lugar e continuássemos a procurar. Da minha parte, o interesse era mais forte, porque existia sempre a parecença física entre irmão e irmã que, apanhada repetidamente em poses diferentes, sob diferentes luzes, me trespassava sempre de novo; e, visto que Sebastian no seu agudo declínio parecia extinguir-se e esboroar-se diariamente, cada vez mais Julia permanecia clara e firme

sábado, 5 de fevereiro de 2011

MIMOS

Os meus amigos mimam-me e, embora não seja uma menina, gosto muito, como dizia Anita no Alfarrabista, de mimos.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

THOMAS MANN: A MONTANHA MÁGICA


Se, por um horroroso - e possível - minar do espírito, me esquecesse de todas as referências concretas dos livros que li ao longo da minha vida, os títulos, os espaços descritos, as personagens que amei como amigas ou que amei como inimigas, os nomes, a linguagem, suponho que, mesmo assim, me sobraria na memória algo como os núcleos de quase todos os romances, ou de muitos deles: um núcleo sem nada gravitando em redor (e mesmo sem nada no interior), despido, despojado, vago, incapaz de ser nomeado: a essência primeira e última.

Sei isso acerca de Proust. E sei isso acerca de A Montanha Mágica. Por essa razão, aliás, me abalanço a escrever sobre este último, apesar de o não ter relido recentemente e de, penso, não o ter sequer em minha casa. Mas nada me é mais fácil e grato do que recuperar o núcleo de um dos romances em cuja lentidão tanto gostei de me demorar. Porque o movimento interior de Hans Castorp, o protagonista - que em tantos aspectos se assemelha ao homem sem qualidades, do livro de Musil - é de uma extraordinária complexidade: ele reflecte, ele observa as pessoas, ironiza, capta o mundo que se transforma: é o seu mundo que se transforma porque, acompanhando um amigo a um sanatório nas montanhas, Castorp isola-se nesse micro-universo. A doença, que o próprio acabará por contrair, tornar-se-á, pois, centro e substância do seu universo - a doença, aliás, numa clínica, num hospital, num quarto, é sempre o centro e a substância do universo do doente: um universo de monstros físicos (bactérias, gérmens, vírus) e monstros metafísicos: fantasmas, medos, desesperos; e de rotinas: tratamentos, consultas.

Até que ponto, nesse universo contaminado - e com menor durabilidade - se encontra ainda energia com que se criem amor, esperança, política?

Recordo, neste livro, para além de um amor condenado (ou seja: contaminado...), ou de uma narração sumptuosa das refeições numa sala comum, de intensos diálogos, em passeios por entre montanhas, em que Castorp e Settembrini esgrimem as suas posições de vida (política e filosoficamente): e essas perspectivas, com o mal e a morte a circusncrevê-las, experimentam na turberculose a metáfora de uma ideia omnipresente, a da corrupção.

A magia contida no título é a mais tremenda ironia, tratando-se da montanha onde as pessoas mergulham para tratar os seus pulmões. Mas, se há ironias que perturbam, são aquelas em que é difícil reconhecermos os limites da ironia e da literalidade. Porque uma magia subsiste, sem dúvida, na montanha: uma energia, uma esperança no amor e na amizade - uma percepção aguda da morte.