sexta-feira, 30 de julho de 2010

CHICO BUARQUE DE HOLANDA: BUDAPESTE


Devo, e é justo, principiar este comentário pela confissão e explicação de um preconceito.

Não consigo imaginar um cantor português, mas nem um só, escrevendo um romance que não fosse um péssimo romance. Penso em Carlos do Carmo ou José Cid, penso em Luís Represas ou Teresa Tarouca. Sérgio Godinho, bem sei, de vez em quando escreve umas coisas, mas são letras a que chama poemas. Há, realmente, poesia que se transforma em excelente letra de canção; mas isso não significa que todas as excelentes letras de canções constituam, ipso facto, boa poesia. Portanto, não imagino que os cançonetistas tenham por força que ser bons escritores. É um preconceito? É um preconceito. Uma ideia completamente irrazoável, sem a mínima razão de ser? Calculo que sim: por alguma razão se chama pré-conceito!

Suponho que, de algum modo, este pé atrás me terá insuflado uma espécie de aversão imediata em relação aos livros de Chico Buarque de Holanda. Perguntavam-me «Já leste Budapeste?». E eu torcia o nariz. Depois, saiu Leite Derramado, e eu torci o nariz. Não me dava, sequer, ao trabalho de folhear. Passava ao largo dos livros de Chico Buarque, nas livrarias. Torcia o nariz.

Mas há destas coincidências. Comecei a ler Budapeste, unicamente porque fora ver o último filme de Roman Polanski, Escritor Fantasma, e esse filme me conquistou até ao tutano; entretanto, num artigo acerca de ghost writers, descobri que o romance de Chico Buarque de Holanda era sobre, nem mais: um escritor fantasma, ou seja, um desses anónimos pagos para «produzir artigos de jornal, discursos políticos, cartas de amor, monografias e autobiografias que outros assinam». E dei por mim a pensar: «Mas que excelente tema! Que talentosa ideia tomar por protagonista um fantasma destes». Reparei, um dia, que o livro estava a 5, 95 (desculpar-me-ão a franqueza de avaro). Comprei-o.

E fui descobrindo que Chico Buarque é um escritor maior. A função interessante da personagem (o escritor fantasma) é a casca que se recheia, aos poucos, com o conteúdo concreto que é José Costa, um homem com ideias e obsessões, desejos, gostos. Mas, mais do que isso, a história está semeada de ideias inteligentíssimas - dessas que, todavia, nos permitem perceber, pela sua duração, se o talento do autor é ou não genuíno. Explico-me: quando um autor menor depara com uma boa ideia, tem, obviamente, receio de a largar; e, portanto, insiste nela, estica-a, fá-la durar mais do que o devido, como se, de algum modo, temesse não haver muitas mais, lá de onde aquela veio; e esse é um primeiro teste que Chico Buarque passa com nota alta (se é que tivesse de passar algum teste imposto por mim, o que não é o caso): as boas ideias encontram, aqui, sempre o lugar certo e, sobretudo, o tempo certo; uma vez postas a navegar, o autor deixa-as ir, sem medo.

Depois, existem ligações extraordinariamente bem feitas. O tema "Budapeste", por exemplo, que tem que ver com o impacto da língua húngara sobre o narrador, deixa de estar presente quando este faz uma espécie de digressão pelo seu passado, e é retomado, de uma forma inesperada, sem pré-aviso, mas sem atrito, a propósito dos estranhos sons emitidos pelo seu filho que, afinal, imitava o balbucio do pai nos seus sonhos. O narrador escreve: «Calou, e a Vanda saiu em sua defesa; ele está só te imitando. Imitando o quê? Imitando você, que deu para falar dormindo. Eu? Você. Eu? Você. Desde quando? Desde que chegou dessa viagem. Pronto. Descobri naquele instante que em meus sonhos eu falava húngaro». E não é necessário mais: desta forma simples se reata o tema só aparentemente perdido, e se avança nesse tom vagamente surrealista.

Mas isto são meros pormenores técnicos. Sobre eles, à custa deles mas sem que deles nos apercebamos, se elabora um romance metafísico e irónico. Há pais, é claro, mas são dos melhores: a metafísica relembra certas incursões pelos duplos típicas de Borges; a ironia, que poderia parecer, inicialmente, pedida a Eça de Queirós, cedo se define melhor: é de Graciliano Ramos. Mas se tenho necessidade de ir buscar todos estes pergaminhos e observações, como se para um cantor se tratasse, ainda, de ter de passar um exame, é por causa do meu preconceito. Na verdade, Chico Buarque de Holanda é tanto um escritor quanto um cantor. Nos dois casos, com maiúscula.

Mil perdões pela desconfiança. A partir de agora, juro que lerei, nem que seja um livro escrito por Luís Represas.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

MURIEL SPARK: O APOGEU DE MISS JEAN BRODIE


O que Por Favor Não Matem a Cotovia, extraordinário romance de Harper Lee, contém de uma cândida espontaneidade, contém O Apogeu de Miss Jean Brodie, pelo contrário, de ironia e não-dito, de indícios e sugestões que nunca são desmontados. (O notável ensaio de James Wood sobre o livro intitula-se, precisamente: Nunca Justificar, Nunca explicar).

A fornalha de equívocos está, ali, aliás, tão activa, que é com algum espanto que me recordo de um filme com Julia Roberts, O Sorriso de Mona Lisa, que me dizem, ou terei lido, algures, que se inspira no romance de Muriel Spark: ora Julia Roberts (num clamoroso erro de casting) compõe uma professora cuja influência sobre as suas alunas, conservadoras e talhadas para o casamento, é totalmente positiva, ainda que se volte contra ela. Miss Jean Brodie, no romance, não é uma heroína. O seu "apogeu", a que constantemente se refere, e de que procura que as suas meninas "colham os frutos", é, obviamente, um mito: e a mordacidade com que Muriel Spark nos mostra, sob os mitos da sua protagonista (mitos ou, como diria Wood, as suas frases feitas, por baixo das quais se encontra uma perfeita desconhecida para o leitor) levam a que a questionemos, e às suas intenções. Uma mulher apaixonada pela educação das "meninas", ou uma solteirona egocentrista?Uma mulher cuja influência efectivamente autonomiza (como constantemente apregoa), ou, inversamente, a professora cuja influência castra e oprime? Uma alma movida pelo amor e pela generosidade, ou pela sede absoluta de controlo dos outros? (A ponto de a relação, que não existe, com o Professor de Arte, mas ela quer criar por interposta pessoa, ser uma expressão mais dessa maquiavélica fome de poder sobre os que lhe interessam?)

Muriel Spark mantém este romance numa tensão desesperada, que não percebemos de onde vem, com que fios se fabrica. Aparentemente, nada fica por por descobrir: mesmo enquanto nos descreve a fase do "apogeu" de Jean Brodie e da sua relação com as meninas, a autora vai apresentando luzes do futuro: esta menina (Mary MacGregor) acabará mal, aquela outra (Sandy) tornar-se-á freira, etc. Nem mesmo a traição de uma das suas pupilas constitui um mistério por se resolver, ao jeito dos romances policiais. Não. Desde o primeiro momento que sabemos qual das "suas" raparigas - e, aqui, hesito no tempo verbal: a trai?, a traiu?, a trairá?

E, no entanto, tudo permanece aberto, tudo são interrogações e dúvidas. Não nos falta saber quem ou o quê, falta-nos compreender o "porquê". O como mas, sobretudo, o porquê. E nesta espécie de silêncio que encobre o romance, nesta incumplicidade com o leitor, nesta ironia que desfaz clichés e desarticula, a cada passo, os caracteres que julgávamos ter já compreendido, se reconhece o génio.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

MATAR UMA COTOVIA: RASCUNHOS DE LEITURA



1
O engenho criativo de Harper Lee é muito claro: começa por nos expor um mistério verdadeiramente temível para aquelas crianças (o mistério de Boo Radley, preso há muitos anos em casa dos pais e do irmão, vivo ainda, segundo certas versões, morto já, de acordo com outras, que se mantém ao longo da obra toda e encontrará o seu lugar máximo no desfecho da narrativa); mas, depois, parece afastar-se desse núcleo; quase como se o esquecesse: vai-se ocupando de outros interesses e de outras brincadeiras dos miúdos; com o tempo de aulas, mais os equívocos, cómicos, à volta da chegada, à terra, de uma nova professora e suas tentativas ingénuas para aplicar teorias "modernas" àquela realidade tão diferente do que ela esperara encontrar. São episódios que quase nos fazem perder de vista o perigo; como os porquinhos brincando, na serra, enquanto o Lobo não vem. De modo que é sempre de repente, inesperadamente, que as crianças tornam a tropeçar na casa, no mistério - que nunca dali se movera, e sempre estivera esperando por elas...

2
Por outro lado, defendo, cada vez mais, que o território do romance é o do meramente sugerido; o daquilo que o leitor vai adivinhando, à medida que "interpreta" o texto (por que se comporta, realmente, esta personagem assim?, qual o seu segredo: terá inveja, estaria apaixonado por aquele outro, lutava contra a memória do pai...?). Ao contrário de uma obra de filosofia ou psicologia, em que se exige que o autor nos apresente, sem segundos sentidos, a sua teoria, um romance prende-se com a arte da subtileza. E, assim, ao ler, em Por Favor Não Matem a Cotovia, a passagem em que Scout surpreende, à noite, uma conversa entre Atticus (seu pai) e o tio Jack, que conclui o capítulo do seguinte modo:

«Vá lá perceber-se porque é que as pessoas sensatas se transformam completamente em doidos varridos quando surge alguma coisa que envolve um negro. É algo que eu ainda não entendi... Só espero que o Jem e a Scout saibam procurar as respostas em mim e não no que se diz pela cidade. Espero que confiem suficientemente em mim... Jean Louise?
«Em pânico, senti que me tinham descoberto a careca. Meti a cabeça por entre a porta, mostrando-me.
«- Pai?
«- Vai para a cama.
«Corri para o meu quarto e meti-me na cama. [...] Mas nunca consegui descobrir como é que o Atticus sabia que eu estava à escuta e só muitos anos depois é que percebi que o seu objectivo, naquela noite, era mesmo que eu ouvisse cada uma das suas palavras.»,

sinto-me inevitavelmente frustrado. Não sentem, também, esta exposição como uma oportunidade perdida? Uma chance, não explorada, de subtileza?

3
Precisava realmente Harper Lee de nos dizer tudo? Havia necessidade de nos explicitar que só muitos anos mais tarde descobriria que o seu pai "sabia" que ela estava à escuta? Não poderia ter semeado indícios? Deixar que isso fosse uma interpretação possível (porventura não a única possível)?

domingo, 25 de julho de 2010

HARPER LEE: POR FAVOR NÃO MATEM A COTOVIA


É um livro de 1960. O seu título é um daqueles que trazemos connosco, ainda que nunca tenhamos lido a obra propriamente dita. É até um título que nos parece vagamente ridículo em Português, no seu tom melodramático: Por Favor Não Matem a Cotovia, com a mesma expressividade excessiva que encontramos em Os Cavalos Também se Abatem - que, tanto quanto me recordo, também não li.

Depois, com os anos, vamos descobrindo uma informação ou outra: que Harper Lee, autora de To Kill a Mockingbird (um nome mais terrível e menos histérico no original), grande amiga de Truman Capote, publicou este livro, ganhou com ele o Pulitzer e não tornou a escrever.

Empurrado, por uma amiga, a comprá-lo, começo a lê-lo com alguma curiosidade e aquela estranha sensação de estar a realizar uma tarefa que já deveria ter cumprido antes, há muitos anos, talvez na minha adolescência. Algures no ponto do passado onde a descoberta desse título se fez e nos marcaria para sempre.

Logo no primeiro capítulo, começam a desenhar-se as linhas típicas do Sul norte-americano, com o seu espaço tão específico, a história que pulsa na genealogia daquelas famílias, com as suas criadas e criados negros e a sua linguagem peculiar que, aliás, Harper Lee procura reproduzir nos diálogos. Quem leu, ainda jovem, Gone With the Wind, os contos de Flanery O'Conner ou Tobacco Road, de Erskine Caldwell (que, aliás, nunca li e não conheço senão através da voz de minha mãe) reconhece imediatamente esta geografia e esta psicologia, constituídas, no fundo de si, pela Bíblia e pela escravatura.

Por Favor Não Matem a Cotovia conta uma história: e não será certamente ocioso sublinhá-lo quando, mais do que tudo, mais do que a linguagem ou a criatividade, é a simples história que interessa a Harper Lee. A linguagem das personagens, repito, não é senão a reprodução da oralidade particular do Sul. Tudo tem que ver, portanto, com a melhor maneira, a mais credível, de contar essa história: e ela fá-lo em capítulos eficazes, ao longo dos quais deixa que nos apercebamos de um mistério, ou de uma situação tenebrosa, ou de um fascinante horror e, através de uma perspectiva infantil - que é, em suma, a perspectiva que a narradora assume, como se regressasse à visão da criança que era, ao tempo em que ocorreram os factos a que se reporta), vai elaborando uma narração muito tensa, muito dura, muito forte, muito bela, muito triste, por vezes cómica.

As personagens parecem simples: é a simplicidade tremenda de espíritos formados na Palavra de Deus e no preconceito, num maniqueísmo sem doçura nem expectativa: de algum modo, essa sobriedade de traços é sempre um quadro que torna mais intensos os dilemas éticos. A dimensão trágica radica nesta ideia de que ser autenticamente justo significa opor-se à evidência comum, à indiscutível mentalidade de uma comunidade inteira. E é nisto que a autora é tão convincente.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A LEITURA

À parte o facto de que a experiência de nos embrenharmos num livro é uma experiência tão excepcional, que não pode ser legitimamente comparada a nenhuma outra, o acto de ler é, em certas ocasiões, tão flagrantemente semelhante ao acto sexual, que, também na experiência da leitura gostaríamos, por vezes, de nos poder reter: adiar indefinidamente o desfecho, quando percebemos as últimas páginas a aproximar-se tão depressa...

quinta-feira, 22 de julho de 2010

JAMES WOOD: A MECÂNICA DA FICÇÃO


Sei de duas formas opostas entre si de lidar com o estudo do romance, da poesia e da música, por exemplo.

Uma consiste em tratar a obra em causa como um puro objecto de análise, dissecando-o cientificamente de forma a expor as estruturas sintácticas ou semânticas que lhe subjazem. Desmembra-se o texto ou a melodia, aprecia-se-lhe o rigor dos encaixes, a ideologia presente ou o seu papel na história de uma determinada corrente.
Outra, pelo contrário, valoriza a fruição daquela coisa. Indicam-se pormenores, retomam-se passagens, sublinhando-lhes o sabor e o poder, o encanto, o carácter. Se quisesse denominá-las, poderia chamar à primeira abordagem, digamos, abordagem "técnica", e à outra, abordagem "pop".

Foi em nome de uma, que professores sem chama nos afastaram metodicamente de Os Lusíadas; é em nome de outra, que, todos os dias, críticos superficiais reduzem as obras de arte que lhes agradam à mera e subjectiva questão do gosto. Ou arruínam as que lhes não caíram no goto. (Eu próprio, porventura, me incluiria entre estes...).

Foi-me grato, por isso, descobrir James Wood. É um crítico da moda. Ponto a seu desfavor. Odeia este Auster, o último Auster, denunciando-o como um costureiro de clichés, mais do que um autor. Ponto a seu favor. Mas o que interessa é a revelação de como, nas suas críticas, se fundem gloriosa e deliciosamente essas duas raízes, a técnica e a pop: a sua escrita é fluente, simples, a sua paixão pelas obras é evidente e contagiante, mas, ainda que se não torne maçudo - e, de facto, James Wood nunca é maçudo -, não se envergonha da sua bagagem cultural. Assim, lendo-o, aprendemos, com efeito: observamos os subtis movimentos da mecânica da ficção (A Mecânica da Ficção é como se chama, precisamente, o livro, da sua autoria, que me espreita da ponta da mesa...), construída a partir dos detalhes, das personagens, da linguagem, dos diálogos; pega em diversos exemplos, torna-os tentadores, ilumina-os. Shakespeare, Flaubert, Joyce ou Saramago são alguns dos seus predilectos.

Sou um leitor incansável de livros sobre livros. James Wood, nesta sua obra feita de fragmentos curtos, como aforismos, não faz que amemos mais a leitura, quando a amávamos já; também não faz (retomo, aqui, a fórmula que, a seu propósito, empregava alguém no jornal Expresso) que, quem não tenha talento, se transforme num escritor. Mas trata com brilho casos que ignorávamos ou a que não demos toda a importância, compara-os e usa-os para nos mostrar como, no seu melhor, se expande e trabalha a ficção.

Só um punhadinho de exemplos, para não continuar para aqui a ruminar uma prosa abstracta e seca. À volta da metáfora (e sou um particular apreciador dessa figura), Wood escolhe estas, sobre o fogo: «Aquele impetuoso bouquet de chamas frescas na lareira», de D. H. Lawrence; «As chamas azuis rodopiavam como um cardume de peixes sobre os carvões», de Bellow. (E, claro, a redundância é, aqui, deliberada); ou um protagonista que encontra «fogueiras a abanarem-se», empregando o termo que empregamos para os cães que "abanam" a cauda ou alguém que "abana" a cabeça. (O autor desta última é Norman Rush). E, sem as estragar, o que é fantástico, nem as reduzir aos cordéis insípidos que as movem do interior, mostra-nos como passamos de uma reacção de estranheza, perante cada uma das metáforas, para a clareza e luminosidade da imagem que ela nos impõe: e que, bruscamente, não poderia ser outra, nem mais exacta, nem mais perfeita!

Lukács escrevia que um crítico não tem de provar ser, ele próprio, também, um bom autor de ficção. Quase como se se dedicassem à profissão de "críticos de romances" os que não tivessem talento para se tornar "autores de romances"; James Wood, com a sua escrita viva e muito dramática, é a prova de que certos críticos escrevem com tanto engenho e talento como os autores das obras que eles criticam. É com inveja que o reconheço: Wood lê e escreve acerca das suas leituras exactamente como eu gostaria de ser capaz...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

PRÓXIMO DE ULISSES [o capítulo 5]

O quinto capítulo de Ulisses é de um apuro técnico incomparável. Reparem bem. A atenção de uma pessoa nunca se fixa num único foco, é verdade: oiço o meu interlocutor, consigo até responder-lhe, fazendo-o acreditar que nada mais, para além da sua conversa, me preocupa naquele momento. No entanto, ao mesmo tempo que lhe sigo o discurso, reparo na sua camisa & vou contando os seus botões & perguntando-me que chiadeira será essa que me chega, repentina, de um determinado andar de um prédio da esquina & interesso-me pelo Alfa Romeo que está precisamente a passar por nós. No fundo, a nossa atenção é uma forma de desatenção activa, em que, num curto tempo, diferentes pormenores do contexto vão trocando de lugar, disputando-nos o momentâneo interesse: ora estão em primeiro plano, ora, sem inteiramente desaparecer, recuam para um discreto segundo ou terceiro ou quarto planos. É assim que funcionamos, nessa espécie de contínua multiplicidade de atenções e sub-atenções simultâneas, nessa dispersão de todos os nossos sentidos por tudo aquilo que nos circunda e invade aqui e agora.

A personagem é Leopold Bloom. Viremos a saber que, saindo de casa, passa pelos correios onde, em nome de Henry Flower, recebe uma carta de uma amante. Não a lê imediatamente, mas sente vagamente, tacteando, que há, no interior do envelope, algum minúsculo objecto. Que será? Entretanto, também descobrimos que tem algumas compras para fazer à sua esposa e que acompanhará, mais tarde, um funeral. Cruza-se com um amigo. Um chato, na verdade: McCoy, que o cumprimenta e troca, com ele, algumas palavras acerca do falecido, que também conhecia. Mas, nessa altura, a sua atenção é atraída por uma mulher elegante.

É tudo isto que Joyce procura captar na sua complexidade, através de uma técnica muito difícil mas de fascinantes resultados: Bloom ouve as palavras de McCoy (falam sobre aquele homem, que havia sido companheiro de ambos) ao mesmo tempo que se continua interrogando acerca do objecto que está no envelope, e que tacteia; e ao mesmo tempo que segue, ao fundo, a mulher, reparando no seu vestuário e sondando-lhe, a partir dos pormenores - meias de renda, folhos -, o estatuto e o interesse sexual. Como cenas que se vão intercalando ou sobrepondo; como universos que não comunicam uns com os outros, mas em que temos de funcionar simultaneamente, sem nos perdermos; como se jogássemos não um jogo de xadrez com múltiplos adversários, mas vários jogos completamente diferentes, sem nos perdermos nem confundirmos.

O resultado é um assombro. Vertiginoso.

CAMILO CASTELO BRANCO: OS MISTÉRIOS DE LISBOA

É muito fácil, aos intelectuais, denegrir e ridicularizar o conceito e os exemplos de telenovela. Mas, a propósito de telenovelas, gostaria de lembrar dois pormenores. Primeiramente, que algumas houve que foram primorosas adaptações de obras de qualidade, como Grabriela, de boa memória, ou a portuguesa Chuva na Areia. Em segundo lugar, que o formato "telenovela" descende de digníssimos antepassados: nomeadamente o "folhetim" (diariamente, em um jornal) e o "romance de cordel" (vendidos em fascículos, regularmente).

Alguns dos melhores autores portugueses dedicaram-se à escrita do folhetim e do romance de cordel. Tinha saída: uma novela principiava a ser publicada e era deixada debaixo da porta, gratuitamente, na esperança de que as pessoas comprassem as seguintes. Todas as semanas era vendido um novo número, com a continuação de uma história rocambolesca, que mantivesse os leitores viciados, pelo que teria de sustentar um "suspense", promessas de magníficas reviravoltas, segredos profundos, personagens exuberantes, nem sempre muito profundas, mas com inesperados alçapões e espantosas revelações escavadas a passados obscuros.

É evidente que a fórmula é superficial e não tem como prioridade senão fazer render o peixe; não devemos esperar dela muito mais do que o expediente a que recorreram escritores que precisavam de ganhar dinheiro: no entanto, terá sempre esse valor e esse interesse históricos e biográficos, no pior dos casos; e, no melhor (quando calhou o autor ser efectivamente uma pessoa de génio), revelar-se a genuína descoberta de um texto que merece que o leiam por si mesmo...

Assim é com Mistérios de Lisboa. Podemos sorrir da ingenuidade com que se nos oferece esse incredível padre que, no seu passado, terá sabido ser cigano ou pirata; ou essas outras personagens que são autênticos e tenebrosos enigmas ambulantes, que só muito adiante se perceberá a que vêm exactamente; não precisamos de levar demasiado a sério aqueles amores românticos e desesperados, de "perdição", na verdadeira acepção da palavra; é natural que nos sintamos distantes dos diálogos gongóricos, das tiradas grandiloquentes. Mas por que seria o realismo necessariamente melhor? Por que não haveríamos de fruir também este espírito da aventura, em que tudo é possível, cheio de palpitação, numa efervescência que acelera o ritmo cardíaco?

O talento de Camilo Castelo Branco está plasmado em cada linha. Imaginamos as donas de casa ou as sopeiras, que foram sempre grande leitoras - quando sabiam ler -, seguindo, de mão intranquilamente pousada sobre o coração, as desventuras desta mulher maltratada, separada do filho legítimo de um amor ilegítimo, tísica e infeliz; os estratagemas deste padre Dinis, que foi tudo na vida e tudo estará pronto a ser de novo, em defesa dos indefesos; a maldade sobranceira daquele irmão, sem piedade, da protagonista, a súbita conversão (e "explicação") do marido à hora da morte, a troça cruel e maledicente - e hipócrita - dessas mulheres de sociedade, com as quais, no fundo, Camilo estaria ajustando as suas contas. Entramos, cavalgamos. Não se diga que perdemos tempo. Nunca se diga que se perdeu tempo lendo mesmo o pior de Camilo, que é melhor do que a maioria do que por aí se faz nas Letras...

domingo, 18 de julho de 2010

JOÃO TORDO: HOTEL MEMÓRIA


Agora que Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto e valter hugo mãe, com provas dadas, não podem já ser considerados recém-chegados à literatura portuguesa, a quem caberá a designação de "novíssimo" das lusas letras? Tanto pela idade como pela relativa proximidade da sua estreia enquanto romancista, diria: João Tordo.

Há que lembrar que o não conhecia de todo. Nada no seu primeiro livro, quando estava com este nas mãos, numa livraria, me atraía em particular, a não ser mesmo o preço. O autor era-me estranho. O título, Hotel Memória, não me parecia promissor. A capa era feia. Também o não folheei porque, se bem me lembro, era um daqueles livros que, por alguma ignota razão, vêm envolvidos em papel celofane. Estive com ele, Que faço eu com isto? Trago, deixo-o? - e, num improvável palpite, trouxe-o comigo.

Acertei em cheio. A escrita é relativamente simples, não tem a poesia de um Peixoto, a originalidade aforística de um Tavares, a ausência de vírgulas de um hugo mãe. Mas vai-nos hipnotizando como alguém que principia a revelar um segredo que pressentimos fatal. Que é precisamente aquilo de que se trata. Aliás, o primeiro período não poderia ser mais bem escolhido, contendo prodigiosas promessas de mistérios e aventuras. «Quando a conheci», assim inicia, «já ela trabalhava para um morto».

João Tordo nunca desmerece deste início. Vai mantendo o mistério e a surpresa - pior, vai complicando o mistério, ramificando-o, acrescentando-lhe tonalidades, numa estrutura que adivinhamos complexa mas em que nunca surgem esquecimentos ou desleixos. Perguntamo-nos: E aquela fuga, ou aquele encontro no metropolitano (estou a inventar exemplos...), pré-anunciados páginas atrás e não víamos como caberia na trama, será que os esqueceu entretanto, será que já não vêm a jeito? No momento certo, aparecem, encaixam-se num puzzle perfeito, num romance muito bem urdido nos seus cursos, nas suas articulações e na sua fluência. Pode até parecer paternalismo meu: como se, de um jovem autor, não fosse esperável - e exigível, ou por causa da sua juventude ou por se tratar de um primeiro romance - que não se enganasse, que não se perdesse, ou que não tivesse unhas para aguentar o plano. Não é paternalismo. Simplesmente, de facto, em Tordo, a grande surpresa e o núcleo emotivo passam pelo engenho da multiplicação quase infinita de possibilidades.

O Hotel Memória referido no título é um tal Memory Hotel, de Nova Iorque, cidade que será o pano de fundo onde se cruzam e desencontram uma rapariga enigmática, um milionário excêntrico, um fadista emigrado para os Estados Unidos (o inesquecível Daniel da Silva); a paixão, a morte, segredos e revelações que se vão desenhando num tom contido mas irresistível. Percebe-se muito bem o que João Tordo trouxe da voz de Camilo, um dos seus santos tutelares.

Reencontrei-o, pois, ao livro. Queria folheá-lo por alto, simplesmente para refrescar a memória, de modo a escrever sobre ele e - que querem? Tenho estado a relê-lo na íntegra, num alvoroço, com o prazer das primeiras leituras e das grandes descobertas.

NÃO É UMA QUESTÃO DE MÉTODO, É DOENÇA

Uma amiga dizia-me que se vem atrasando na leitura do meu blogue. Que sou rápido. E perguntava-me, ou curiosa ou desconfiada, como leio tanto em tão pouco tempo.

O que referi em relação à leitura de Ulisses pode fazer uma primeira luz sobre o meu método. [Irão ver que, infelizmente, não se trata de método]. Dizia eu que o ia reatacar paralelamente, ou seja, ao mesmo tempo que lia outras coisas, até para repousar das dificuldades com que me debatesse. Este é um primeiro aspecto. Com Ulisses, afinal, esta tentativa de partilha não tem estado a dar certo, porque se trata de uma obra invasora: ocupa o espaço e o tempo, exige concentração, pede que voltemos atrás, às vezes que releiamos várias páginas que acabávamos de ler, sem perceber que as não tínhamos percebido. Mas, em geral, passo de um livro para outro. Não confundo, não misturo: digamos que, enquanto leitor, tenho heterónimos.

Por exemplo, neste momento, na minha cabeceira, está a Obra Reunida, de Juan Rulfo, que ainda não terminei; Infância, de Graciliano Ramos, que comecei há pouco; o extraordinário Mistérios de Lisboa, do Camilo - com um belíssimo prefácio de João Tordo, que me fez, entretanto, pescar, à estante, um livro da sua autoria, o primeiro, se não o único, que dele li: Hotel Memória, que é uma pérola!

Se a isto acrescentarmos que, por vezes, os livros sobre que aqui escrevo são simplesmente os de que me lembro e acerca de que me apetece escrever, muitas vezes sem os ter sequer relido - é o caso de Crime e Castigo ou de A Náusea -, com toda a falta de rigor que possa decorrer desses comentários elaborados unicamente a partir da memória, resolve-se o estranho mistério de um bloguista que, aparentemente, lê e escreve sobre dezenas de obras, mais rapidamente do que os seus próprios leitores o possam ler.

Não é um método: é um modo. É uma relação doentia com os livros. Há quem me fale em "reduzir", como se falaria a um fumador. É um gasto incomportável - por muito que recorra às bibliotecas, torna-se-me difícil entrar numa livraria sem "comprar" uma coisinha. Também, aqui, analogamente a um viciado - um alcoólico, que melhor faria mantendo-se à distância dos bares que lhe são as livrarias.

Referi, uns quantos parágrafos acima, um livro de João Tordo. Tenho de vos falar dele, um destes dias. Hotel Memória. Para vos deixar repousar da minha obsessão pelo Ulisses...

sábado, 17 de julho de 2010

PROUST & JOYCE

Segundo De Bottom, Proust e Joyce ter-se-ão encontrado, um dia, ou uma noite, numa das mais improváveis reuniões entre dois génios.
Consta que que mal falaram. A não ser, já não me lembro bem, para um pedir um lenço emprestado a outro. Qualquer coisa assim.

A originalidade e o génio de Proust são subtis. Tanto mais enormes quanto menos se dá por eles - a não ser no fim da leitura, quando, um pouco surpreendidos, sentimos que o nosso universo se transformou completamente e que não há nenhuma outra obra que se possa comparar à sua monumental busca.

Pelo contrário, a originalidade e o génio de Joyce são visíveis. Não diria "forçados", mas, muitas vezes, demasiado visíveis. Há como que uma orquestra de trombetas a anunciar cada diferença. Talvez por isso sejam menos duradouros no nosso espírito...

Um pouco como se, no exercício da ironia, Marcel Proust mantivesse uma delicadeza e uma candura tais, que alguns nem se apercebessem dela.
Enquanto James Joyce a escrevesse sempre em itálico, ou a sublinhasse, e precisasse ainda de acrescentar: Mas atenção, isto sou eu a ironizar!

O CAPÍTULO 3 DE ULISSES

É fascinante, de facto. (Ainda o terceiro capítulo).

1. Palavras inventadas, palavras longamente compostas. Expressões em latim, em alemão, pedaços inteiros de diálogos em francês que evoca de uma sua passagem por Paris. «Sua» de Dedalus, que parece ser, mas só até certo ponto, o próprio Joyce.

2. Pergunto-me como pode alguém ter traduzido uma tal obra. Terá sido a empresa de uma vida, certamente. Que Joyce haja escrito este romance demorado e complexo é já espantoso. Mas que um homem se tenha aventurado a traduzi-lo? Que profundo conhecimento do romance, que paixão, que domínio da língua portuguesa e da língua inglesa, que cultura, quanto tempo!

3. Será que, também, «ler» Ulisses deverá constituir a empresa de uma vida?

4. Nunca tinha lido integralmente a obra. Contudo, aqui, ali, reconheço excertos, às vezes bem longos, por onde já passara. A sensação de déjà-lu nunca me abandona. Porquê? Porque, nunca a tendo conquistado, a fui vagamente folheando? Não sei. Não me lembro.

5. Ou será porque, como no conto de Borges, também o Ulisses existe como ideia, prévia ao texto escrito?

6. O passeio pela praia, onde depara com apanhadores de ameijoas e descreve o teatro do seu labor, é notável. Bem como o modo como, em sua mente, de um momento para o outro, os vê como se fossem mercadores ou ladrões árabes, das mil e uma noites, ricamente paramentados, carregando despojos...

7. «- Farrapo! Fora daí, rafeiro!
«O grito trouxe-o de volta furtivamente para o dono e um brusco pontapé sem bota atirou-o ileso através de uma língua de areia, encolhido no voo. Escapuliu-se comprometido, num rodeio. Não me vê. Correu ao longo da beira do molhe, andou ao acaso, cheirou uma rocha e por sob uma pata traseira, erguida, mijou rapidamente numa rocha não cheirada. Os prazeres simples dos pobres. Depois as patas traseiras espalharam areia em todas as direcções: depois as patas dianteiras rasparam e cavaram. Algumas coisas enterrara ali a avó dele. Fossou na areia, esparrinhando, escavando e parou para escutar o ar, voltou a atirar areia com a fúria das garras, a cessar quase a seguir, um leopardo, uma pantera, engendrado em adultério, abutreando os mortos.»

8. Por outro lado, um exemplo irresistível de uma passagem sobre um monólogo interior, na sua sintaxe solta e desrespeitadora: «Vem. Tenho sede. O céu está a enevoar-se. Não há nuvens negras em parte nenhuma, não é verdade? Trovoada. Ele cai, todo luz, orgulhoso relâmpago do intelecto. Lúcifer, dico qui nescit occasum. Não o meu chapéu de concha e bastão e as suas minhas sandálias sapatas. Onde? Para as terras do poente. O poente a si próprio se encontra.»

QUASE DIÁRIO DE UMA LEITURA: AINDA ULISSES

Mas há passagens, páginas, capítulos que se tornam ininteligíveis.

O terceiro capítulo, com que me debato agora, é um exemplo. Eu diria que o equívoco reside neste pormenor: o puro exercício do pensar nunca pode ser lido por outrem. O seu movimento condutor é um fio interior, de si para si e, nessa medida, transparente ao próprio: posso, na minha mente, repetir obsessivamente uma palavra, posso associar palavras simplesmente por causa da semelhança da sua sonoridade, posso intersectar recordações, ou trautear vagamente refrões, ou até inventar neologismos; muito bem: tudo isso é a deslocação interior a que chamo, à falta de melhor, "pensar" - esse turbilhão de memórias, sons, sensações, repetições, ideias. Mas esse turbilhão tem, enquanto o vou construindo cá dentro, um sentido para mim, uma transparência. (Pelo menos num primeiro nível. Já sabemos que se me puser a "psicanalisar" esse primeiro sentido, descubro sentidos segundos, ocultos, recalcados, de que nem suspeitava...); ora essa "transparência" interior perde-se completamente no momento em que a transformo em palavras, em que a plasmo numa linguagem, a escrevo, a dou a ler a um leitor.

Há uma inundação delirante de imagens e frases (desvendando-nos o pensar de Dedalus), cujo sujeito da enunciação muda constantemente da primeira para a terceira pessoa do singular: não deixa de ser interessante; às vezes, neste monólogo interior, vejo-me como "eu", outras vezes como "ele". Mas também não facilita a vida ao leitor. Todavia, é, na verdade, muito belo. Como uma música, confesso, que não tem qualquer "significado", nem tem de o ter, ou como um poema, que nos cativa pela sua forma mas cuja semântica tenha deixado de importar. Num certo sentido, parece que somos arrastados pela torrente; estamos prestes a afogar-nos. Mas há pequenas rochas de sentido, há galhos que, não nos aguentando por muito tempo, permitem que respiremos fundo: refiro-me a situações que vão sendo intercaladas, de modo a não nos esquecermos do contexto - a visita a um tio doente - em que a torrente interior de Dedalus invade as páginas.

A propósito da experiência de se sentir arrastado nas águas vivas, sempre na proximidade do afogamento, não é fácil ir-se buscar um termo como «gostei» ou «estou a gostar».
Seja como for: é uma experiência cuja intensidade vale a pena...

sexta-feira, 16 de julho de 2010

RECOMEÇANDO ULISSES, DE JAMES JOYCE



Mas, é claro, falar tão abundantemente de Ulisses como sendo o meu calcanhar-de-Aquiles, dói um bocado. Um tipo tem o seu orgulho. E um tipo com a mania de que é um leitor com talento só até certo ponto está preparado para admitir que um livro lhe resista assim.
Sei que não sou único. Chega-me aos ouvidos a existência, até, de um Clube de Pessoas que Odeiam Ulisses de James Joyce. Ser-me-ia mais fácil aderir a um tal clube do que regressar à monumental obra. Mas não é digno. Envergonhar-me-ia sempre desta fraqueza.

Tenho Ulisses em casa. Todavia, parte do mal reside no Ulisses que tenho ali na estante. Cansei-me tanto de lidar com ele, de regressar ao combate e ser sucessivamente vencido que, agora, quando me aproximo, sinto uma leve náusea. É tudo aquilo: a cor, a textura, o tamanho, a mancha laranja de humidade nas páginas, a própria tradução. Vem-me um fastio à alma, uma tristeza, uma frustração antecipada. Solto um suspiro. E reponho-o na sua prateleira.

Esta tentativa que faço agora precisa, portanto, de algumas modificações. Trago, da biblioteca, um volume de uma edição diferente. É uma mudança essencial. A capa continua a não ser lá muito bonita, mas esta tradução agrada-me. É a de João Palma-Ferreira.

Principio por ler a Nota do Tradutor. Depois, adentro a obra. E, curiosamente, ela deixa-se penetrar. À medida que sigo as linhas, vou pensando na possibilidade de fazer um diário da minha leitura de Ulisses. Não vale a pena, evidentemente. Descansem, não porei em prática a peregrina ideia.

Compenetro-me da escrita de Joyce, de uma tal correcção que nos apetece escrever assim. Não preciso, para exemplificar, senão das primeiras linhas:

«Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha. O roupão amarelo, solto, sustinha-o por detrás, gentilmente, a brisa suave da manhã.»

As palavras parecem compor quadros a partir de um mundo de pequenas coisas, pormenores quotidianos, oferecendo-no-los numa linguagem perturbadoramente poética para uma descrição tão irrisória. Mas, a partir desta tarefa de cantar o trivial e talvez até o mesquinho, há personagens que se vão desenhando nas suas manias, suas ideossincrasias, seus diálogos.
E os diálogos, misturando, uma vez mais, os interesses quotidianos e uma especulação complexa, têm, frequentemente, um tom surrealista, como se as ligações entre os temas fossem sempre feitas de uma forma aleatória, abrindo-se, a cada instante, uma inesperada porta de último instante...

Mas esse é o projecto de Joyce, como sabemos: estas ligações correspondem a um monólogo interior, que nunca é o fio lógico que os romances procuram habitualmente representar - como se o "pensar", enquanto exercício subjectivo, pudesse alguma vez ser a construção lógica e sintáctica de que nos convenceram. Na verdade, é mais esta estranha e imprevisível liberdade de que Joyce se aproxima; e que vai contaminando as páginas, nas associações incorrectas, nos desvios improváveis.

Não canto vitória. Leio Ulisses lenta e paralelamente a outros, que vou devorando com mais gosto. Estou no terceiro capítulo. Confesso que o segundo me foi particularmente interessante: uma aula de História de Stephen Dedalus, perante alunos sempre a um passo de exorbitar do respeito que lhe devem, seguida da conversa com o velho Director, Mr. Deasy, que vem para lhe pagar, lhe dar conselhos, para o provocar.

E então? Vamos andando. Já era tempo.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

GRACILIANO RAMOS: ANGÚSTIA

Se me tivessem perguntado «Conhece Graciliano Ramos?», responderia prontamente que sim. Lembrava-me bem de ter lido diversos livros dele: Vidas Secas, por exemplo, São Bernardo ou Memórias do Cárcere.

Florinha Afável, que já percebi como o considera um autor maior, e vem trabalhando sobre ele, refere, porém, outros títulos, que eu ignorava: Infância, Insônia, Angústia.

A menção a Angústia, a propósito, se me não equivoco, da influência de Crime e Castigo, de Dostoievski, ficou a moer-me o espírito. E não descansei enquanto não trouxe de uma biblioteca vizinha o volumezinho, que tenho andado a ler.

E é, certamente, espantoso. Posso dizer que até se conhecer Angústia não se conhece realmente Graciliano Ramos. GR escreve de um modo delicioso, num tom queirosiano, mas com a bela e musical toada brasileira, na descrição de caracteres que, na sua vida remendada, convivendo de perto com a miséria e ausência de horizontes largos, farão escolhas inesperadas, e que - quase sempre - os condenam.

Encontro em GR um sarcasmo terrível, temível, que faz rir, sem dúvida, mas sempre amargamente. As suas personagens raramente têm bondade, raramente são positivas. (Em Dostoievski pressente-se, por vezes, o sopro de um anjo salvador). E no entanto, agrada-me muito essa dimensão tragicómica, que está sempre presente em Graciliano.

Querem ver Julião Tavares? Pois aí está Julião Tavares:

«Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa. Lembram-se dele. Os jornais andaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Tavares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atribuíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor. No relógio oficial, nos cafés e noutros lugares frequentados cumprimentava-me de longe, fingindo superioridade:
«- Como vai, Silva?
« À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjectivos, pensamento nenhum.»

É, de facto, magnífico. Hesito: devo desvendar aqui uma peça fulcral do livro, um trecho-chave (a chave, aliás, do próprio romance), como exemplo fulgurante da sua escrita - a tal ponto ela aqui nos agarra, que o leitor parece oscilar, também, ora para trás, ora para diante, à medida da narração do crime? Não resisto. Ei-la, pois:

«Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exactamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim [...]. E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, por baixo de uns galhos de árvore...»

É extraordinário observar como tão poucas palavras, escolhidas a dedo, constituem magistralmente uma síntese que passa, como um filme, na nossa cabeça.

Já trouxe para casa Infância. Já encomendei Insônia.
E os meus agradecimentos.

sábado, 10 de julho de 2010

DOSTOIEVSKI HÁ-DE VOLTAR PARA AGARRÁ-LA

Gosto muito de ler o blogue de Florinha Afável, embora, por vezes, me sinta um intruso, alguém que devassa uma intimidade, um voyeur. Todavia, é fascinante esse equilíbrio que Florinha consegue entre as suas confissões e a auto-análise destas, tudo servido por uma escrita muito viva, e pontuado pelas imperdíveis referências a livros, filmes, músicas que vai consumindo. Em suma, é, no mundo dos blogues, de uma originalidade extrema, que cativa e a que retornamos, como hipnotizados...

Soube, pelo seu blogue, informações algo intrigantes acerca da sua interacção com o Profissão: Leitor. A primeira, é que não tem conseguido comentar. Que tenta, que já tentou, mas lhe aparece uma sistemática mensagem de erro. Não sei que possa eu fazer quanto a isso, posto que não sou um às dos computadores. É uma notícia simultaneamente alegre (Florinha tem querido comentar) e triste (os comentários não aparecem...)

Do mesmo modo, uma sua outra notícia alegre-triste dá conta de que decidiu, seguindo um post meu, ler Crime e Castigo - e que não gostou taaaanto como esperava! Apesar de!

Que dizer, cara autora-leitora longínqua e próxima, senão que às vezes é duro sentirmo-nos responsáveis por conselhos que acabaram não sendo bem-sucedidos? Nunca escrevo para fazer estilo, amiga Florinha, e se não me custa assumir que há livros e escritores consagrados que nunca penetrei para lá das primeiras páginas (olhe, Ulisses de James Joyce: não fui capaz, não fui capaz, não fui capaz...), outros há que me agarraram com seus tentáculos - e certamente isso ocorreu com Dostoievski todo, que é, do meu ponto de vista - e não me atire já para o caldeirão dos infernos -, um psicanalista frequentemente muito mais profundo e interessante do que o próprio Freud. Basta, precisamente, ler Crime e Castigo para confirmar o que digo. Está lá tudo, avant-la-lettre. Tudo! A psicanálise, o existencialismo, o próprio Joyce (que não li, mas pelo que me parece...).

Mas, claro, se isso nos indica a importância e a grandeza da obra, não obriga a que dela gostemos. Espero que Florinha não tenha dado o seu tempo por inteiramente perdido. E, já agora, não deite fora Crime e Castigo: Dostoievski é um escritor enorme, original e observador, Florinha é uma escritora e uma leitora sedenta, fina e sensível - e as belas almas estão por força destinadas a encontrar-se, mais tarde ou mais cedo.

domingo, 4 de julho de 2010

PEDRO PÁRAMO, POR JUAN RULFO


Uma vez imaginei como personagem de um conto que escrevi, um escritor da América Latina que, sem ter chegado a publicar coisa alguma, acabaria por se tornar uma influência secreta e fundamental de toda a literatura latino-americana: quer porque falava, com amigos escritores, em encontros e tertúlias de café, acerca do que andava escrevendo; quer porque enviava, a editoras, manuscritos que nunca foram aceites mas, entretanto, passavam pelas mãos de escritores vários, que, inconscientemente ou não, os digeriam e reproduziam. De maneira que o seu estilo e as suas ideias iam marcando, semeando, correndo como uma força subterrânea, nunca tendo visto a luz do dia. O irónico contra-senso reside em que, muitos anos após a morte desse autor, quando os amigos se reúnem para lhe publicar finalmente a obra completa, descobrem, relendo-a, que esta parece uma gigantesca manta de plágios, uma série de cópias e de inoriginalidades, como se não tivesse sido ele o verdadeiro mas oculto modelo, o obscuro inspirador, o ignorado influenciador.

Há poucos dias, ao deparar com a Obra Reunida de Juan Rulfo e, aí inclusa, a notável novela Pedro Páramo, não consegui evitar um sobressalto: porque Juan Rulfo, escritor mexicano falecido em 1986, é perturbadoramente semelhante àquela minha personagem, na sua discrição e no desconhecimento que rodeou praticamente tudo quanto escreveu:
mas, não obstante, escritores ilustres como Gabriel Garcia Márquez, que o prefacia, Octávio Paz, Pablo Neruda, Juan Carlos Onetti ou Jorge Luís Borges são unânimes em reconhecer que estava lá, em gérmen ou explicitamente, o que viria a indicar quase todos os caminhos importantes das literaturas hispânicas, do realismo fantástico às estranhas geometrias borgesianas.

Pedro Páramo é, sobretudo, um texto inesquecível. Susan Sontag escreve: «Não é apenas uma das obras-primas da literatura mundial do século XX, é também um dos livros mais influentes do século, tanto que será difícil sobrestimar o seu impacto na literatura de língua espanhola.» Não é um romance - aliás, preferia chamar-lhe novela -, não é um romance fácil: os tempos misturam-se, de modo que nos precipitamos de um episódio para um outro anterior, ou posterior; o espaço dilui-se, ainda que a narrativa se concentre num lugar chamado Comala, onde, por sua vez, também os mortos e os vivos se confundem, e se encontram, hesitando, muitos vezes, acerca do seu estado. Estou morto? Estou vivo? Está morta? Falei agora com a tua mãe. Não é possível, minha mãe morreu há muito tempo...

Afirmar que se trata de um livro «difícil», significa que uma certa maneira de ler, rotineira, que se apega preferencialmente a um traçado de sequências lógicas e cronológicas, tem dificuldade em adaptar-se a esta narrativa em que tudo se funde e difunde: perdemo-nos no tempo ou na idade desta ou daquela personagem ao longo da história. (E, porém, impressiona como, a uma segunda leitura - porque este é um livro que carece de uma segunda leitura, claro -, tudo se encaixa luminosamente. Não há qualquer desleixo na oficina de Rulfo, existem uma ordem e uma lógica subjacentes, de um rigor impecável; Garcia Márquez lembra que o rigor é tal, que nem entre o tipo de plantas referidas, o lugar e a estação do ano há desacertos...)

Em todo o caso, se, num momento inicial da primeira leitura, sentimos que nada é dominado por nós, pelo leitor, a verdade é que se goza ininterruptamente esse modo de contar: porque a linguagem de Rulfo toca-nos sempre fundo. Pedro Páramo é um poema. E, tal como é vocação de toda a poesia, a sua missão é criar um mundo. Nesse mundo, chocam-se furores e movimentos aquém ou para além de toda a moral. O amor e o ódio, a vida e a morte.

E sublimemente se chocam, e se reúnem, e se desunem, na demanda de um tempo glorioso que há-de vir. O redentor reencontro dos amantes infelizes.

sábado, 3 de julho de 2010

MILLÁS DE NOVO: OS OBJECTOS CHAMAM-NOS


Os objectos chamam-nos, decerto.
Exemplo de certo objecto que, acontecendo estar na proximidade, nunca deixo de ouvir chamar por mim, é um livro de Juan José Millás.

A escrita de Millás não tem a menor particularidade que surpreenda. Muito simples e agradável, isenta de especiais acrobacias estilísticas, clara e fluente mas comum. O que diferencia os textos deste autor é a forma como nos expõem um mundo próximo e estranho, de uma singularidade maravilhosa.

O planeta Millás tem um lado politicamente incorrecto que, no entanto, não choca, porque se não assume provocatoriamente: antes com a ingenuidade de uma criança que não tivesse tido tempo de interiorizar e aprender a lidar com determinadas convenções.

Aliás, a perspectiva é sempre a de alguém que não cresceu: muito do seu humor radica nessa transferência incompleta, para o mundo dos adultos, de um adulto que só exteriormente o deveio; as referências e a lógica de Juan José Millás dizem respeito aos desenhos animados e aos mitos infantis: a presença distante e protectora da mãe, os amigos invisíveis, o desejo sexual que se desenvolve na visão de um manequim (um boneco de montra), que sua das axilas...

Algo de perverso assombra de maneira fascinante este universo. As referências infantis são desordenadas a partir de impulsos quase patológicos. Poderia inventar uma espécie de conto policial em que alguém assassina, precisamente, um amigo invisível?

Com Os Objectos Chamam-nos estamos perante qualquer coisa que não saberíamos classificar adequadamente: pequenos textos desligados, que poderiam ser contos de duas, três páginas, mas nem sempre têm a forma habitual de contos - às vezes, dir-se-ia que se aproximam de observações ou de memórias; mas mesmo quando nos mergulha em pleno absurdo, por alguma misteriosa razão fá-lo com uma seriedade e uma credibilidade que se tornam profundamente realistas. Como se a sua tarefa fosse a de mostrar que certos impossíveis são, contudo, incontestáveis factos.

Millás é de uma graciosa originalidade. O seu humor é contagiante. Já no livro que anteriormente dele lera, me tinha sucedido rir alto, atingido de frente pelo cómico de uma situação narrada. Rimo-nos, às vezes, por aproximação - aquele não seria exactamente o nosso humor, mas anda perto: o humor de Millás não me faz rir por aproximação. Atrai as minhas gargalhadas com a maior das simplicidades, e elas comparecem. É fatal.

JEAN-PAUL SARTRE: A NÁUSEA

É verdade que foi uma síntese da filosofia de Sartre, descoberta - tinha eu dez anos - num compêndio de capa dura, roxa, e que pertencia ao meu irmão, o que decidiu a minha vocação filosófica. Mas, reconhecida e agradecida esta influência, posso hoje confessar que considero Sartre um filósofo estimulante mas pouco rigoroso, de alguma forma menor; e um escritor sofrível, porém com três execpções que bastariam para o consagrar: Les Mouches, Les Mots, La Nausée.

A Náusea é uma obra-prima de perspicácia, urdida, toda ela, à volta de uma consciência, a do protagonista e narrador, que, ao mesmo tempo que se confronta com a sua inequívoca autenticidade, sente uma espécie de repugnância visceral em relação ao mundo: as coisas, na sua consistência, o material, o corpóreo, numa fixidez sensorial e nojenta.

Mas também os outros homens, as outras consciências, se lhe vão revelando numa fuga à autenticidade que lhes compete: como se temessem a transparência, a responsabilidade e a angústia próprias das consciências e, ao invés da liberdade, preferissem ancorar-se ao mundo. Os homens tornam-se, pois, "coisas" do mundo, fixas, entre preconceitos e ideias feitas, estatutos, convenções. É fascinante essa percepção da má-fé da humanidade, tal como nos aparece representada na série de indivíduos que habitam a pequena povoação onde tudo se passa.

Mas "tudo" o que se passa é pouco - é, a bem dizer, quase nada: uma revelação negativa (tal como em Vergílio Ferreira, cuja Aparição tanto bebe em A Náusea), ou seja, a revelação da repelência perante a natureza das coisas, como se, ao "pesar" sobre nós, o mundo nos aspirasse e nos fosse transformando em seres cada vez mais fixos e previsíveis, como árvores, como pedras. Rotuláveis, rotulados: o senhor doutor, o senhor professor, a mulher de má vida, o humanista - penso na impressionante e extraordinária personagem que é o «autodidacta», cheio de amor (abstracto) pela humanidade (abstracta), vivendo para os livros que devora metodicamente, numa biblioteca, por ordem alfabética dos autores.

Sentimos piedade por estes homens. Pelo autodidacta, concretamente - pela sua ingenuidade, pela sua esperança, pela sua fé na marcha do progresso: mas podemos não compreender o narrador deste texto (Antoine, se me não engano... Antoine quê...?) quando, numa consciência superior e cínica, detecta as ilusões dos que o rodeiam e, ao contrário do autodidacta, vê germinar em si uma anti-fé na humanidade, um rancor, uma tristeza - uma náusea?

quinta-feira, 1 de julho de 2010

ANTÍDOTO

O que vou dizer acerca da literatura é, evidentemente, válido para toda a arte. Mas, num blogue acerca de livros, não fica mal recordar que a literatura em especial é um antídoto eficaz contra a xenofobia.

Porque, perante o madrileno arrogante que me grita aos ouvidos, numa loja de Madrid, posso sempre pensar: «Estes espanhóis são tramados!»; ou suceder-me digerir dificilmente que a selecção espanhola nos tenha eliminado do Mundial. Mas, por muitos preconceitos que a relação quotidiana com los hermanos alimente, nada me fará não amar o povo em que foi produzido D. Quijote de La Mancha.

O ponto é este: português ou não, trago o Quijote dentro de mim. É património meu. Faz parte do que sou: de como olho, de como sinto, de como penso. E, claro, nessa medida, Cervantes é meu irmão.