terça-feira, 21 de julho de 2020
SHIRLEY JACKSON: O HOMEM DA FORCA
O meu movimento em direcção a Shirley Jackson foi provocado pela descoberta de uma peça fabulosa da ficção gótica, um conto chamado The Lottery, que, nos anos 40, explodiu como uma bomba entre os leitores burgueses de uma popular revista norte-americana: horror, choque, insultos, cancelamento de assinaturas da revista. Compreende-se, até certo ponto: saídas havia pouco da Guerra, as famílias aspiravam a optimismo, pediam fé, e o conto, que sobrevoava uma aldeia, picando sobre a população amistosa, para desvendar, no fundo daquela simpática normalidade, um hediondo ritual secreto, foi recebido com verdadeira consternação.
Mas tropeçar neste conto de Shirley Jackson significou encontrar-me com outros tantos, da autora, compilados no livro onde se encontrava The Lottery e, assim, familiarizar-me com a sua escrita subtil, surpreendente na flexibilidade e na técnica, e com o seu poder para extrair atmosferas ameaçadoras a partir de ambientes aparentemente encantadores, ou com a força na sua inesperada aproximação ao medo ou à loucura das personagens.
Depois, para mim, veio, ainda, Sempre Morámos no Castelo, um romance carregado de tensão, de que aqui dei conta na altura em que o li.
O Homem da Forca principia no momento em que os Waite preparam uma recepção. Ao longo dessas horas, penetramos no sufocante universo da família e, embora não sejam explicitamente descritos (oh maravilhosa arte do não-dito, em que SJ é exímia), vamos adivinhando os fios da relação, psicologicamente pesada, que Arnold Waite mantém com a mulher e os filhos.
Num momento da recepção, alguma coisa acontecerá a Natalie, filha do escritor Arnold Waite. Talvez fosse violada por um convidado; mas a verdade é que o leitor não assiste à ocorrência. "A coisa má ", como, mais tarde, Natalie se lhe referirá, de si para si mesma, é apenas sugerida. Os estranhos diálogos que Natalie, desde que a conhecemos, persistentemente entabula, no seu íntimo, com uma singular figura imaginária, já nos haviam alertado para a possibilidade de um desacerto, de um mistério mental, digamos assim, pelo que todas as dúvidas acerca do que efectivamente lhe terá sucedido naquela noite soam legítimas.
Deixem-me agora conduzir-vos pela separação entre Natalie e a família, quando aquela ingressa na universidade; falo da forma como em magistrais pinceladas impressionistas, Shirley Jackson nos descreve a universidade (aspectos do seu espírito; das suas pretensões; as falhas e as sucessivas correcções no respeitante aos ideais primitivos, que viriam explicando a transformação desses ideais ao longo da própria história; o tipo de professores contratados) ou o quarto em que Natalie irá morar. Tudo nesses capítulos vertiginosos se faz de referências breves a caracteres acidentais (os jovens que, reunidos num café, haviam decidido fundar a universidade, como clarão sobre a génese dela; a "confidente oficial" das alunas que, na época de Natalie será já velha, a «Velha Nick») para, com unicamente esses traços, desenhar, ante os nossos olhos, a essência da universidade. E, do mesmo modo: alguns aspectos do quarto, como os furos feitos, com pregos, nas paredes, indícios de quadros pendurados pelos inquilinos que por lá passaram (a despeito das penalizações por furarem as paredes, que nenhum deles ignorava), ou as fantasias de Natalie descobrindo, no quarto vazio, de que modo poderia usá-lo ou decorá-lo, são, uma vez mais, linhas dispersas com as quais se nos revela infinitamente mais do que aquilo que de facto se expõe. Ou ainda: o extraordinário trecho que nos dá a ver a sala de estar onde, pela primeira vez, as raparigas desconhecidas se encontrariam, se mediriam, imaginando o que viriam a ser, ou viriam aadar-se, sempre a partir de pequenos pormenores sobre os quais cada uma delas haveria de compor a biografia e a personalidade imaginadas das outras.
Para dar conta dos ameaçadores contornos de sombra em que se (des)equilibra, periclitante, a mente mórbida e vulnerável da protagonista, o modo como a autora relata as conversas que ela tem com as demais personagens, em paralelo e em simultâneo com os seus pensamentos e com a sua própria leitura do que lhe dizem, torna-se penetrante e muito bem conseguida. O mundo exterior é-nos sempre dado a partir do ponto de vista de Natalie, dos seus medos e das suas crenças. Como, apesar de tudo, a narradora não é ela, só avançamos na compreensão da sua subjectividade até onde quem escreve quer e permite: e portanto o mistério nunca se dilui, as zonas equívocas nunca se desfazem, nunca a totalidade é desnudada, para eficácia de uma narrativa que percorremos como sobre uma lâmina, com um calafrio.
Toda a parte final de O Homem da Forca pode ser lido segundo interpretações completamente díspares e opostas entre si. O que parece não ser mais do que o encontro mágico de duas amigas perfeitas, cujas fantasias se comunicam de forma a descobrir um mundo secreto e traiçoeiro sob o mundo quotidiano, o exercício da loucura comum como brincadeira, possibilita várias leituras. A pergunta é sempre pelo que é real. É sempre por quem - e o quê - existe realmente. Pela fronteira entre o sonho e a vigília, ou entre a vigília e a alucinação.
Num ponto remoto de todos e de cada um de nós, recalcada e renegada, a irracionalidade de Natalie é a nossa irracionalidade. O seu medo é o nosso medo.
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