segunda-feira, 28 de novembro de 2011

LLOYD JONES: MR. PIP


Mr. Pip é o nome do último livro que li. Enquanto espero que o meu primo consiga desencantar-me I Promomessi Sposi, do qual me dizia, sem ironia, «o quê?! Nunca o leste? Fico com inveja de ti, pá, e do teu projecto de vires a ler um livro como esse», mergulho em Mr. Pip e, por várias razões, sinto-me extasiado.

Primeiramente porque é, de certa forma, um livro em torno de um outro livro, Grandes Esperanças, de Charles Dickens. Mas, em segundo lugar porque, ocorrendo num tempo, num espaço e com personagens plausíveis, reconstitui, todavia, um tempo, um espaço e personagens de uma plausibilidade "estranha", que nos é distante. E portanto há um tom quase surrealista e kafkiano na forma como seguimos os jovens negros de uma ilha, assolada por uma guerra civil, perante Mr. Watts, o professor improvisado [e o único branco da ilha], que lhes apresenta Grandes Esperanças, de Dickens.

É uma obra sobre confrontos: de culturas e de valores, de experiências e de visões do mundo e da vida. Com a dureza extrema subjacente ao testemunho da incompreensão e da intolerância, mas guiado pela busca da compreensão e da universalidade, que poderia ser precisamente achada em Grandes Esperanças (o qual representa, como Lolita em Teerão, a ideia e a experiência de uma obra criada num certo tempo e no contexto de uma certa cultura - lida por outras pessoas, de um tempo e de uma cultura sem as mesmas referências) e a ternura de todos querer reconciliar e salvar no seu coração - mesmo os inimigos que, em vida, nunca se aceitaram - é um livro muito belo. E muito duro. Mas muito belo.

domingo, 20 de novembro de 2011

ARISTÓTELES: POÉTICA


Soube que um leitor, atento e fiel, deste meu blogue (um único leitor, portanto, mas um que muito especialmente prezo) se tem ressentido do meu silêncio.

Não vale a pena explicar por que me remeti ao silêncio. Inúmeras razões, desde a expectativa de que a referência a "Mira-Lata" fizesse o seu efeito, até uma fase de hiperactividade profissional, passando por alguma desmotivação, poderiam ser justamente alegadas. Mas não me afastei dos livros, isso não: e para reatar a dinâmica "bloguista", escrevo hoje sobre um que, estranhamente, me tocou fundo. É a "Poética", de Aristóteles.

Descobri-o numa oficina de guionismo, patrocinada - gratuitamente - pelo clube de cinema que dinamizamos, o Francisco e eu, na minha escola. Temos recebido, semanalmente, a visita da realizadora Joana Pontes, a qual, perante uma audiência muito jovem, nos fala sobre "enredo", "plot point", "desenlace", sinopses e guiões propriamente ditos, princípios e fins, pontuando o seu iluminado ensinamento com exercícios e experiências colectivas de construção de estórias. Lembro-me que, numa das primeiras sessões, Joana Pontes trazia a "Poética", de Aristóteles. E de que nos disse: «É claro que tudo o que eu vos possa dizer, mais, o que os melhores guionistas hoje sabem e usam, já tinha sido descoberto por Aristóteles. Está tudo concentrado, com uma enorme clareza, neste livrinho...»

Posso ter pensado que houvesse algum exagero. Não me lembrava da "Poética". Tê-la-ia eu lido? É possível, se atendermos a que cursei filosofia e Aristóteles está longe de me ser um desconhecido. Mas não o li certamente segundo o prisma da sua "utilidade" ou da sua "actualidade". Fui em busca; não havia; encomendei-o.

Não há o menor exagero. Espanta-me reconhecer [uma vez mais] que, a despeito de termos evoluído tanto em matéria de tecnologia, no que diz respeito ao essencial [como seja contar uma história], tudo está nos Gregos. Ou nos Romanos. Não em Aristóteles em particular - porque Aristóteles reflecte, no caso da "Poética", sobre o que estava incorporado, de há muito, no que os poetas, seus contemporâneos e anteriores, já faziam. Não descobrimos nada de original na maneira de narrar com o fito de interessar o leitor ou o espectador; nada de novo na forma de "imitar" acções e acontecimentos, relações e decisões que exponham as personagens nos seus vícios e virtudes, encaminhando-as para a felicidade ou, mais provavelmente, para a infelicidade. Nada de novo sob o sol.

Aristóteles é um amante de teatro. Conhece a maioria das obras do seu tempo, tem predilecções (o "Édipo", de Sófocles, por exemplo, é, para ele, o protótipo da grande tragédia), compara, explica o que falha aqui e o que brilha ali, e traduz esse prazer pela imitação dos actos de homens representada para o público, numa série de lições absolutamente extraordinárias. Analisa as emoções fundamentais do leitor/espectador [que são a compaixão e o temor], a importância da estrutura, actuando, por dentro, como a necessidade que permite desenvolver coerentemente a história [por oposição aos "maus poetas", que optam por ir adicionando episódios que não fariam falta ao todo, se os eliminássemos], o papel da "peripécia" e do "reconhecimento" e, à medida que avanço no texto claríssimo, vou enchendo as margens de anotações: pequenas filas de aranhas desenhadas a lápis de carvão, que nem talvez eu próprio, mais tarde, consiga descodificar.

Descubro erros meus [a tentação, por vezes, para o "episódico", própria de todos os "maus poetas"] e erros de alguns contemporâneos premiados. Às vezes, obviamente, discordo. É importante não confundirmos um gosto particular com uma lei universal. Mas é um livro que faz qualquer autor sentir que os Antigos sabiam já tudo quanto sabemos - e talvez um pouco mais, porque estavam atentos a muito daquilo que esquecemos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O CONTEMPORÂNEO «INCONTORNÁVEL»



Dava, há dias, comigo a pensar isto: Saramago é, para todos os portugueses, o único autor português contemporâneo verdadeiramente «incontornável». [Usei aspas para que se intuísse alguma ironia que a palavra me merece].

Até no seu modo polémico, José Saramago conseguiu que todos os portugueses se definissem, literária e esteticamente, em relação a ele. Da mesma forma que, a propósito de Nietzsche, Eric Weil afirma que, se podemos falar de um autor cristão, é precisamente dele - na medida em que todo o seu pensar se configura em relação a Cristo, ainda que para o contestar -, também faz sentido dizer-se que os portugueses são todos saramaguianos. Mesmo os que o odeiam, mas fazem desse ódio uma referência como não existe outra com o mesmo peso, com idêntica intensidade.

O século XX português é absolutamente saramaguiano. Torga, Jorge de Sena, Nemésio, Sophia ou David Mourão Ferreira - cinco exemplos imediatos de autores portugueses que considero melhores do que Saramago, isto é, mais profundos e mais cultos - não tiveram o seu impacto. Não fizeram a mesma revolução na escrita: foram herdeiros e continuadores de uma tradição, enquanto que José Saramago a transformou radicalmente. Aqueles foram sínteses brilhantes e inovadoras, este foi o advento de um outro mundo.

Nem sempre gostei de Saramago. Como homem, critiquei-lhe a presunção e a arrogância. Como escritor , considerei-o bastas vezes superficial. Comparem uma página de Clarabóia (mas, para não sermos injustos, uma página de O Ano da Morte de Ricardo Reis, que é do seu melhor, se não o seu melhor) com uma página de Mau Tempo no Canal. Há, em Saramago, uma ausência de densidade ou de riqueza na reflexão, que, pelo contrário, encontramos em cada linha de Nemésio. E, no entanto, ninguém se define em relação a Nemésio. Gosta-se ou não, mas não se está num território virgem, inexplorado, em que se semeiam religiões, fés radicais, terríveis incompreensões, radicais antipatias. Saramago suscita-as. E influencia-nos. A todos. De um ou de outro modo, para o mal ou para o bem, mas a todos.