quarta-feira, 1 de julho de 2020

MARGARET ATWOOD: OS TESTAMENTOS


O parco e oscilante número de leitores que faz o favor, continuo a perguntar-me por que razão,  de seguir estes apanhados das leituras a que me vou dedicando (chamar-lhe "recensões" seria demasiado) sabe que gosto muito de Margaret Atwood. Da flexibilidade com que se move entre uma cultura sofisticada (a Bíblia, Homero) e o poder de construir máquinas narrativas eficazes, que mantêm o suspense e a surpresa. Ou seja, verdadeiramente, o cruzamento entre a erudição e o entretenimento (que em literatura é raro, é raro).

Também sabem, os que aqui me lêem, que apreciei sobejamente "Crónica de uma Serva", livro maior em que a máscara da ficção científica serve para o desenho de uma sombria alegoria do nosso tempo.

MA escreve, agora, uma sequela. Afirmando que o novo romance foi nascendo para responder a inúmeras perguntas que lhe faziam sobre o Estado de Gileade e "o seu funcionamento interno", construiu "Os Testamentos", premiado com o Booker Prize 2019.

Quais os problemas? Em primeiro lugar, a insistência em retomar e prolongar um romance que não carecia de qualquer continuação. Se o primeiro deixou dúvidas e deixou questões a que não respondeu, foi porque se tratava de dúvidas e de questões inerentes à angústia e ao desassossego que o retrato daquela sociedade provoca.  E assim deveriam permanecer: uma narrativa que se fecharia em torno de si própria,  densificada pelas incertezas que sempre a acompanhariam como parte do seu enigma essencial. O outro problema consiste em que quando nos propomos escrever um segundo romance em busca de um "happy ending" que o anterior se recusara a oferecer-nos, não há como evitar que esta continuação seja mais pobre, ou que seja, de algum modo, um abastardamento.

Teria usufruído "Os Testamentos", teria podido gozá-lo melhor  se não conhecesse o anterior? Talvez. Não sei. Mas aí é que está.  A própria MA impôs um critério e um termo de comparação e, desse ponto de vista, "Os Testamentos" desiludiu-me.

As histórias paralelas de três mulheres vão sendo narradas em segmentos separados: nada de particularmente original. Mas até as personalidades de uma espécie de abadessa (a madre superiora das "tias", cuja função lembramos todos quantos lemos a "Crónica..."); uma adolescente a quem decidem o futuro marido; e uma outra rapariga que, num país vizinho, tudo ignora sobre a sua verdadeira origem e a sua relação  com Gileade, são personalidades sem espessura, pouco convincentes, usadas como bonecas de cartão que se dirigem para um aparentemente imprevisível (mas, de facto  aguardado por todos os leitores) encontro no futuro, para benefício do desenvolvimento do romance segundo um plano sem grande fulgor.

MA parece, aliás,  aperceber-se da fragilidade desse motor. Ou sou o único com a sensação de que a partir de certo ponto se quer apressar a narrativa, abreviando os desenvolvimentos e encurtando as pontes?

O fim, sobretudo a partir da confluência entre as três histórias, que a autora desejaria realizar como uma epifania (a miraculosa descoberta da ligação entre a protagonista do primeiro romance e as personagens do segundo) tece-se, afinal, como uma revelação fraquinha. Sem lugar a qualquer luz nem estremecimento.

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