domingo, 2 de agosto de 2020

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA: OS VIVOS E OS OUTROS



José Eduardo Agualusa é um escritor angolano que nada tem a provar: alguns dos seus romances permanecem uma voz singular, africana, sem precisar de sublinhar essa africanidade e assumindo também, descomplexadamente, o legado da Literatura portuguesa, pelo que, é claro, o juízo que possamos fazer sobre cada um dos seus livros ainda por vir, em nada alterará o justo reconhecimento de que goza.

 Em Os Vivos e os Outros, o autor parte de uma ideia boa, uma excelente ideia: Daniel Benchimol, um antigo jornalista que trocou o jornalismo pelo romance, reúne, na Ilha de Moçambique (onde vive com Moira, sua companheira, grávida de 9 meses), um grupo de autores africanos - poetas e romancistas -, para um congresso de Literatura Africana.
Inesperadamente, uma tempestade desaba; um nevoeiro denso e persistente parece envolver e isolar a ilha numa bolha; dá-se uma quebra de electricidade; os telefones e a internet colapsam. Durante cinco dias, não há comunicação. Ninguém ousa atravessar, em direcção ao continente, o nevoeiro carregado de vozes e de misteriosos sinais, pelo que é como se, de certo forma, o mundo em redor da ilha desaparecesse.

Narrado no presente e mantendo, através desse tempo verbal, a sensação de isolamento, de corte de amarras, a história dos prisioneiros rapidamente se multiplica em percursos fantásticos: estranhas personagens, que parecem ter-se libertado dos romances ou dos poemas daqueles autores, confundem-se com os ilhéus, em enigmáticas possibilidades, que a incompreensão, o nervosismo, o medo, intensificando prenúncios de histerismo, alimentam de uma insuportável tensão. As crenças populares e a observação objectiva dos factos ignoram fronteiras entre si, de modo que se está permanentemente numa indefinição entre o literal e o metafórico, o vivido e o onírico, o real e o fantástico, como uma homenagem a uma vitalidade e a um fundo propriamente africanos de mitos e crenças.

 Isto dito, o que me desagrada no romance? Uma arquitectura menos rica, a que a narração no presente ajuda a emprestar um ar de desleixo: a rapidez esquemática de algumas sequências narrativas, as coincidências que constantemente ocorrem (um exemplo: alguém ouve falar da contadora de histórias, e quer ir escutá-la; lembra-se disso num café, pergunta por ela a um empregado que, «por acaso», é um familiar da velha, e o leva imediatamente a uma sessão, que, «por acaso», até ocorria nessa mesma tarde), a irresolução de certas situações e personagens, tão promissoras, mas, por fim, tão frustrantes (a Avó Cinema, ou mesmo Pedro Calunga Nzagi, o que acabam realmente por adiantar?) fazem sentir que se esqueceu que o "fantástico" se constrói sobre regras próprias,  não sobre a ausência de regras: tornar credível o incredível é um exercício de uma exigência superior, nunca a procura de um leitor fácil e predisposto.

2 comentários:

sonia disse...

Gosto de suas resenhas. Objetivas, como devem ser.
Abraço, Sônia.

josépacheco disse...

Muito obrigado, Sonia.
Um abraço.