domingo, 20 de setembro de 2020

WOODY ALLEN: A PROPÓSITO DE NADA

Neste tempo em que o predomínio de um "politicamente correcto" exacerbado e mal compreendido fez cair sobre Woody Allen uma verdadeira maldição, existe alguma razão para ler a sua autobiografia, e fazê-lo à luz do dia, comentando, ainda por cima, a leitura assumida? Existe, claro. Quanto mais não fosse, essa.

 Woody Allen é um dos mais geniais comediantes de sempre. Nem todos concordam, bem entendido, mas o humor é uma mansão com milhares de quartos, e pessoas diferentes habitam diferentes quartos. Já para não lembrar que há quem esteja absolutamente fora dessa mansão. Mas o tempo recordado por WA é importante: um judeu que foi criança nos anos da guerra e cresceu em bairros americanos que em nada se assemelham aos dos nossos dias tem uma memória única de que prestar testemunho. Não implica branquear a sua alegada pedofilia: implica saber que ela nunca foi provada (Mia Farrow acusou-o de atacar uma de suas filhas adoptivas, Dylan, então muito nova); que ter casado com outra filha "adoptiva" pode chocar, mas seria quando muito uma forma particular e discutível de incesto, e na verdade não era adoptada sua, era-o de Mia Farrow, namorada com quem ele não vivia, pelo que a relação com a rapariga nunca foi a de pai-filha; e sobretudo que somos seres complexos, lançados numa vida breve que a iminência da morte torna trágica, e que se é tão fácil fazer juízos e apontar o dedo, temos, no mínimo, de ser capazes de ouvir quem queremos julgar. 

  A Propósito de Nada é um caudal de lembranças, uma tentativa de revisitação, cheia de humor e angústia, de um tempo longo e de uma vida em que se busca um rumo, já que não o sentido em que Woody Allen não crê. O desnudamento é total, quase cruel. Nada que não esperássemos: WA ri-se de si, depreciativamente. Troça do que os outros julgam ver nele e, segundo o próprio, ele não é e nunca foi. O mesmo desprendimento em relação à família e às histórias de família, aos avós, aos tios, ao pai ou à mãe, fazem ranger o coração. Mas a condição da lucidez e da sinceridade totais é essa. Que não fique pedra sobre pedra. Somos isto, e as reverências são formas de idolatria. O humor é uma contra-idolatria. Não há humor que não seja má-língua, e expor até os mais próximos não é desrespeito, é enfrentar-se e à própria história. 

 O mais terrível - e menos engraçado - é a exposição da sua relação com Mia Farrow, e um relato dos acontecimentos que a destrói completamente: má mãe, vingativa, mentirosa, manipuladora. Mas atendendendo à terrível difamação que sobre ele ainda pesa - se o foi - poderíamos espantar-nos? Também não espanta porque se integra perfeitamente numa cultura da biografia e autobiografia norte-americanas: usam-se armas, contam-se os pormenores mais sórdidos, destroem-se caracteres, e passa-se adiante, entre advogados e contra-advogados. 

 Os filmes que Allen viu na infância e adolescência, os livros que leu na vida e, sobretudo, os que não viu e os que não leu (ou leu apenas para que as raparigas lhe dessem atenção), a omnipresença da rádio com os seus múltiplos programas predilectos, a escola, a universidade, a eterna condição de mau aluno (e de falhado, até perceberem e começarem a pagar pelas suas piadas), levam-nos pela reconstituição de uma época e de um estilo de vida, e levam-nos por uma confissão que nada deixa de fora,
às vezes pungente, mas corajosa e com imensa graça.

 A mim não me incomoda que Woody Allen misture continuamente nomes que me são desconhecidos, até porque cada um tem uma história interessante agarrada; nem, precisamente, que não consiga (ou não lhe apeteça) contar a sua vida de uma forma linear: um episódio recorda-lhe um outro a que não resiste, ainda que obrigue a um salto quântico, e portanto estamos sempre a viajar desordenadamente no tempo. Aquilo a que chamaríamos "nemesiar", em honra do saudoso Professor Vitorino Nemésio. Sou, até, um grande apreciador de me perder no meandro das ligações. 

 Ficamos a conhecê-lo melhor? Sem dúvida. Eu sei que é apenas a sua versão. Mas até por isso, podemos descobrir o miúdo que tinha jeito para o desporto e nenhum interesse pelos estudos, o homem que nunca foi nem pretendeu passar por intelectual, e a que algum talento e muita sorte (diz ele; tratou-se, quanto a mim, de muito talento e alguma sorte) levou a escrever humor, teatro, fazer stand-up comedy e filmes como Annie Hall e Zelig.

2 comentários:

sonia disse...

Compartilho sua opinião sobre este gênio do humor.
Gostei muito do filme Matchpoint, também.
Abraço,
Sônia

josépacheco disse...

Muito obrigado pelo seu diálogo com os meus textos,Sonia.
Eu gosto de quase todos os filmes de Woody Allen. "Interiors", que nem sequer é uma comédia, é soberbo. "Nem Guerra, nem Paz", "O herói do ano 2000" são engraçadíssimos. Até os primeiros, pelo seu lado mais burlesco do que filosófico. Mas "Annie Hall" e "Zelig" estão, para mim, noutro patamar.