quarta-feira, 8 de julho de 2020
SANDRA COSTA: BOLETIM METEOROLÓGICO
Lembro-me de, já na adolescência, um médico me ter pedido que lhe descrevesse certa dor que me fazia sofrer. Como se descreve uma dor? Ainda hoje não consigo. Vasculho palavras comuns, aplicadas habitualmente ao sofrimento físico, como se respondesse a perguntas, "é aguda?", "é intermitente?", "é contínua?", mas regressa-me sempre a sensação de ficar aquém, de poder até morrer por não ter sido capaz de fornecer ao médico a informação adequada.
Compreensivelmente, é essa mesma sensação de impotência que me assalta quando procuro dispor de palavras para falar da poesia. Como se pertencessem a diferentes apartamentos do meu cérebro, a vizinhos que nem os bons-dias trocam, o "sentimento poético" e o "discurso analítico sobre" evitam-se mutuamente. A poesia é para ler (em voz alta, de preferência) e habitar afectivamente, enquanto a análise do poema me obriga a um distanciamento que contradiz a minha relação e o meu compromisso com o poema que me toca.
E no entanto, não posso deixar de me referir (e expor a análise possível) a Boletim Meteorológico, de Sandra Costa, cuja poesia não conhecia a não ser de alguns poemas colhidos, dispersamente, aqui ou ali.
Neste livro pouco extenso, de formato pequeno, agradável ao olhar e ao tacto, a "descoberta", irónica, mas não só, do léxico da meteorologia, como quadro metafórico privilegiado e critério consistente, permite uma leitura originalíssima e extremamente feliz dos sentimentos. O que faz ainda mais sentido, tratando-se de criar, poema a poema, uma temperatura da alma ("temperatura" porque se trata de um sentido específico, que não é, julgo, nem o olhar nem o ouvido. É outra coisa).
A consciência, a voz poética, evoca quase sempre, aqui, um sujeito frágil, desamparado, um junco em face das variações atmosféricas, que usa como uma espécie de luz, de medida e de linguagem para sondar a memória, os sentimentos, as perdas, que são, não apenas a memória, os sentimentos e as perdas pessoais, mas as da humanidade, em cuja História se reconhece e em que reencontra os seus próprios desejos e gestos: "Assim, quando a noite começar Fevereiro,/ a norte do Cabo Raso, a ondulação poderá atingir/ os quinze metros, prevendo-se rajadas que talvez/ façam sucumbir o que de mais íntimo existe sob/ a penumbra de voz quando um homem e uma mulher/ sonham beijar-se pela primeira vez, ainda que milénios/ os afastem e aproximem de Troia."
A experiência do registo do tempo, ao longo do solstício, captando nesse registo sobretudo as mais subtis variações atmosféricas íntimas a um sujeito, na sua busca de comunicação, diferida, com um amado ausente, retomando todos os trilhos de poetas intemporais, faz de Boletim Meteorológico, na sua deliberada e encantadora contenção (eu diria: discrição) um livro a que se volta, a que tenho voltado.
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