quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

JAVIER MARÍAS: TOMÁS NEVINSON

 

[...] nunca nada se vai completamente embora, e o que parece ter-se ido embora, mais tarde ou mais cedo regressa, nem que demore por vezes trinta ou cinquenta anos.

                                Javier Marías, Tomás Nevinson


Há neste romance enorme, na qualidade, mas também fisicamente (651 páginas), uma mestria extraordinária. Não digo que JM seja o melhor Autor dos nossos dias; muito menos que diversos outros não sejam bons, assumindo essa espécie de desprezo pelo que vem sendo feito em matéria de literatura, tão comum nos dias que correm: diversos contemporâneos são-no, sem dúvida, ou mesmo excelentes, e muitos romancistas portugueses (por exemplo, para os tomar como termo de comparação) valem francamente a pena - porém Tomás Nevinson revela um nervo simultaneamente grandioso e singular, que só a voz de Javier Marías nos dá na sua originalidade. Não, não acredito que se trate de um exagero; outros que o tentem imitar, copiar, serão, para sempre, apenas epígonos. E, paradoxalmente, quem o experimentasse antes de Javier Marías tornar-se-ia, depois de um livro destes, um epígono avant la lettre. [Falo sempre dos contemporâneos, bem entendido.]




De que se trata? É difícil resumir. Poderíamos falar numa errância interessante, ou no modo como a narrativa parece dispersar-se por apartes, "a propósitos", sub-histórias que proliferam, como ramos ao longo do tronco, divagações, que são, cada uma delas, em si mesma, muitíssimo cativantes, como novas pistas que o leitor quereria perseguir, sabendo de antemão que o livro não é sobre elas e que, portanto, o seu aparecimento será breve, a sua declinação não tardará. É porventura assim que pensamos, não linearmente. É assim que as variadas associações, interferências e intersecções constituem o acto de pensar e, portanto, algo muito semelhante a esse nosso processo interno nos é oferecido neste romance. Perdemo-nos sem nos perdermos, esquecemo-nos sem nos esquecermos, ou pomos entre parêntesis o fio principal, ramificamo-nos continuamente. Talvez Vida e Opiniões de Tristram Shandy [ou Proust, mas Proust está para além de qualquer comparação possível] seja, a seu modo, um precursor, um modelo - mas Javier Marías refunde o modelo como um modo inteiramente seu, e de que, nesta particular apropriação, só ele seria capaz.


Este Nevinson a que o título alude, de mãe espanhola e pai inglês, foi durante algum tempo um agente britânico. Existiu realmente? Não o encontro em pesquisas que não remetam imediatamente para o romance. Nenhuma referência, nenhuma biografia.

Encontramo-lo numa época em que regressara à família - a extraordinária Berta Isla, protagonista do anterior livro de JM, e os filhos -, com quem tinha cortado todos os laços, deixando acreditar que estava morto, depois de dispensado pelos serviços secretos britânicos. Reatara a relação familar possível: sem coabitação, aceite até um certo ponto, encontrando-se irregularmente para a partilha de refeições e alguns momentos de sexo.


A libertação por parte da agência continha, para Tomás Nevinson, um elemento de vergonha, um inexplicável embaraço. Não que a não tivesse desejado e solicitado himself; mas ainda assim, a rapidez da aceitação, a atitude com que a encaravam, como se se livrassem de um peso morto, já para não falarmos da adaptação a uma vida praticamente igual à de qualquer habitante de Madrid, sem missão nem mistério, haviam-no tornado um deprimido homem comum. É, pois, quase com estranheza que Nevinson se vê contactado pelo desprezível Tupra, o aliciador, de múltiplos heterónimos, disposto a convencê-lo a uma última missão. Um assassínio, na verdade. E o assassínio de uma mulher. Mas, se isso é dito desde as primeiras linhas, "Eu fui educado à antiga, e nunca achei que um dia me ordenassem que matasse uma mulher", observem, por favor, o encontro entre Nevinson e Tupra, num jardim de Madrid, em que a errância interessante, como lhe chamei, se exerce em todo o seu esplendor, e eles de tudo falam, tudo comentam e evocam, e sobre tudo reflectem, como numa conversa de salão, tensa e divertida, culta e calculista, desconfiada e íntima, antes que se toque no que ali os reuniu.


 Nevinson é contactado para, de duas uma: ou reunir provas que permitam levar à justiça, ou, caso tal não suceda, liquidar (descobrindo em quem se tornou e envolvendo-se, eventualmente, com ela) uma das responsáveis por um dos mais brutais massacres perpetrados pela ETA, de forma que, ao longo do romance, vamos sendo convidados a participar da reflexão do narrador sobre o que é a justiça, o arrependimento, a história. E sobre esses homens que, sem ódio (palavras de Tupra), se encarregam de manter, não olhando a meios, a tranquilidade de todos os outros - que os recriminariam se tivessem consciência, se soubessem, se vissem. Não se trata, nesta reflexão, da auto-aprovação, mas, verdadeiramente, de dúvida e de interrogação. 

É toda uma época que se passa em revista e se discute, quando, dez anos depois, um homem desligado de um certo tipo de acção é chamado a reatá-la uma última vez. 

PS: li numa das badanas do livro, já após ter escrito o meu comentário, que Javier Marías traduziu Vida e Opiniões de Tristram Shandy. E devo confessar que fiquei muito impressionado com a minha própria perspicácia. Oh humana vaidade.

domingo, 12 de dezembro de 2021

ISABEL DA NÓBREGA: VIVER COM OS OUTROS


Dois

breves trechos, cada um em sua página, fazem a introdução a esta obra: o primeiro, de Vergílio Ferreira, recorda que a solidão é sempre uma possibilidade que se revela sobre o fundo da convivência - de algum tipo, mesmo negativo, de convivência. Quem a desconhece, ou não tenha alguma forma de consciência dos outros, não poderia sequer reconhecer-se como "eu"; o que não percebe a essência dos laços com outrem não poderia também perceber-se como "só"; o segundo excerto, de Rodrigues Lobo, faz o elogio do diálogo como o estilo privilegiado de escrita (e aquele que, de certa forma, contém todos os outros).


Dir-se-ia que estes dois ensinamentos mostraram, à escritora, o caminho do livro que ela deveria escrever. Um romance sobre um cruzamento de pessoas que permite, a cada uma, reconhecer-se a si própria, e um romance onde quase nada existe senão o diálogo. Longe de uma peça de teatro, porque podemos acompanhar o que algumas das personagens pensam, e como se avaliam mutuamente, assume a ausência de um narrador, de qualquer enquadramento ou explicação. Não sabemos, acerca daqueles sujeitos em um jantar e, depois, durante algum tempo de convívio, após o jantar, senão o que cada uma diz, aos outros, de si ou dos outros. Por outras palavras, somos espectadores a quem são negadas indicações. Entramos na reunião de pessoas que conversam, não sabemos quem são, e não percebemos durante muito tempo a quem atribuir cada uma das falas. Aos poucos, vão surgindo nomes, e continuamos a não adivinhar, necessariamente, que nome atribuir a cada uma das falas. Não tem a menor importância porque, nessa espécie de daltonismo, vamos descobrindo e caracterizando cada um dos presentes.

São indispensáveis, para escrever um romance com esta ousadia, duas qualidades. Ter apreendido a mimar o discurso oral, sem discursos demasiado prolixos e literários, mas, pelo contrário, lapsos, hesitações, interrupções, e nesse aspecto, Isabel da Nóbrega é absolutamente extraordinária. Na nossa cabeça, mais do que ler, parece-nos estar a ouvir. A outra qualidade é oferecer-nos o ritmo do pensar, com confusões e cruzamentos - e isso é muito mais difícil, e menos conseguido, porque a solução é a de tratar o pensamento como uma fala interior, e nós sabemos que o pensamento nunca é propriamente uma fala. Mas a inteligibilidade o exige.

O que se discute naquele encontro é denso. No fundo, aquilo que Sartre, Simone de Beauvoir e os existencialistas contemporâneos procuraram dar a ver. O que define a verdade de cada um? As suas ideias (políticas, religiosas, artísticas), ou os seus casamentos - em nenhum caso completamente bem sucedido ou para além de um qualquer equívoco essencial e incomunicável -, ou os seus actos, sejam a caridade periódica, o brilho social, um carácter contestário? Aquelas pessoas julgam conhecer-se, ou tentam conhecer as que são, de certa forma, novas no grupo, mas não o conseguem melhor do que o leitor. Talvez, então, a confusão em que nos sentimos por vezes perder seja deliberada: o resultado do exercício através de que a autora nos mostra que, se só vivemos com os outros, nunca realmente conseguimos viver com os outros a não ser separados por um mistério e por uma incomunicabilidade que são a condição de toda a interacção e conhecimento mútuos.