Woody Allen é um dos mais geniais comediantes de sempre. Nem todos concordam, bem entendido, mas o humor é uma mansão com milhares de quartos, e pessoas diferentes habitam diferentes quartos. Já para não lembrar que há quem esteja absolutamente fora dessa mansão. Mas o tempo recordado por WA é importante: um judeu que foi criança nos anos da guerra e cresceu em bairros americanos que em nada se assemelham aos dos nossos dias tem uma memória única de que prestar testemunho. Não implica branquear a sua alegada pedofilia: implica saber que ela nunca foi provada (Mia Farrow acusou-o de atacar uma de suas filhas adoptivas, Dylan, então muito nova); que ter casado com outra filha "adoptiva" pode chocar, mas seria quando muito uma forma particular e discutível de incesto, e na verdade não era adoptada sua, era-o de Mia Farrow, namorada com quem ele não vivia, pelo que a relação com a rapariga nunca foi a de pai-filha; e sobretudo que somos seres complexos, lançados numa vida breve que a iminência da morte torna trágica, e que se é tão fácil fazer juízos e apontar o dedo, temos, no mínimo, de ser capazes de ouvir quem queremos julgar.
A Propósito de Nada é um caudal de lembranças, uma tentativa de revisitação, cheia de humor e angústia, de um tempo longo e de uma vida em que se busca um rumo, já que não o sentido em que Woody Allen não crê. O desnudamento é total, quase cruel. Nada que não esperássemos: WA ri-se de si, depreciativamente. Troça do que os outros julgam ver nele e, segundo o próprio, ele não é e nunca foi. O mesmo desprendimento em relação à família e às histórias de família, aos avós, aos tios, ao pai ou à mãe, fazem ranger o coração. Mas a condição da lucidez e da sinceridade totais é essa. Que não fique pedra sobre pedra. Somos isto, e as reverências são formas de idolatria. O humor é uma contra-idolatria. Não há humor que não seja má-língua, e expor até os mais próximos não é desrespeito, é enfrentar-se e à própria história.
O mais terrível - e menos engraçado - é a exposição da sua relação com Mia Farrow, e um relato dos acontecimentos que a destrói completamente: má mãe, vingativa, mentirosa, manipuladora. Mas atendendendo à terrível difamação que sobre ele ainda pesa - se o foi - poderíamos espantar-nos? Também não espanta porque se integra perfeitamente numa cultura da biografia e autobiografia norte-americanas: usam-se armas, contam-se os pormenores mais sórdidos, destroem-se caracteres, e passa-se adiante, entre advogados e contra-advogados.
Os filmes que Allen viu na infância e adolescência, os livros que leu na vida e, sobretudo, os que não viu e os que não leu (ou leu apenas para que as raparigas lhe dessem atenção), a omnipresença da rádio com os seus múltiplos programas predilectos, a escola, a universidade, a eterna condição de mau aluno (e de falhado, até perceberem e começarem a pagar pelas suas piadas), levam-nos pela reconstituição de uma época e de um estilo de vida, e levam-nos por uma confissão que nada deixa de fora, às vezes pungente, mas corajosa e com imensa graça.
A mim não me incomoda que Woody Allen misture continuamente nomes que me são desconhecidos, até porque cada um tem uma história interessante agarrada; nem, precisamente, que não consiga (ou não lhe apeteça) contar a sua vida de uma forma linear: um episódio recorda-lhe um outro a que não resiste, ainda que obrigue a um salto quântico, e portanto estamos sempre a viajar desordenadamente no tempo. Aquilo a que chamaríamos "nemesiar", em honra do saudoso Professor Vitorino Nemésio. Sou, até, um grande apreciador de me perder no meandro das ligações.
Ficamos a conhecê-lo melhor? Sem dúvida. Eu sei que é apenas a sua versão. Mas até por isso, podemos descobrir o miúdo que tinha jeito para o desporto e nenhum interesse pelos estudos, o homem que nunca foi nem pretendeu passar por intelectual, e a que algum talento e muita sorte (diz ele; tratou-se, quanto a mim, de muito talento e alguma sorte) levou a escrever humor, teatro, fazer stand-up comedy e filmes como Annie Hall e Zelig.