quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

JEAN-MICHEL BARRAULT: O PERCURSO DO PRIMEIRO ROMANCE



  O Percurso do Primeiro Romance é, ele próprio, um romance - pouco extenso, dos que se lêem numa noite. Segui-o como se tivesse penetrado em um universo literário muito característico e familiar, de que fazem parte algumas referências, sobretudo francesas, cuja proximidade explicarei com o maior dos gostos e simplicidades: Candide, de Voltaire [porque se cultiva em ambos um mesmo tom de sátira, que é a ilustração de uma tese venenosa]; Como Falar dos Livros que não Lemos, de Bayard, uma vez que se trata de uma desmistificação desassossegadora da experiência literária, num caso a propósito do acto de ler, noutro caso a propósito do acto de escrever [e respectiva publicação]: os dois casos sujeitos aos seus ditames, ditadores e às suas regras, em mundos codificados, com rituais e rivalidades próprios, onde o que parece raramente coincide com o que é. Finalmente, e por razões muito evidentes, Ilusões Perdidas, de Balzac, em que se narra o fracasso de Lucien Rubempré, um jovem ansioso por se tornar conhecido como poeta. Gosto muito de fazer estas associações, peço desculpa. Não as interpretem como um exercício de exibição, mas uma tentativa de situar a obra numa determinada esfera.

 Caradet é o Rubempré deste percurso. E, para quem quer que se tenha já iniciado na experiência da publicação de um primeiro romance, a sua odisseia acende todas as luzes da memória. Passa-se em França, mas o cenário poderia bem ser Espanha, os Estados Unidos - ou, claro, Portugal, mas aí presumo que em pior.

 Barrault encena as frustrações do jovem aspirante a escritor como um jogo. Literalmente. O livro contém, aliás, um tabuleiro sobre o qual podemos simular um percurso, sob o acaso de lances de dados: as estações desta peregrinação, as casas a que se chega, ou aquelas a que se julgou chegar, os tempos e as situações típicos, os avanços e os recuos que proporcionam. O romance, portanto, é linear - mas não deixa de ser refrescantemente penetrante no modo como descreve as emoções do protagonista. Leiam-se as bruscas transições nos juízos de valor que Caradet vai formulando acerca da própria obra, que tanto lhe parece de uma originalidade superior como de uma aterradora mediocridade; e não se passe ao lado de uma narração quase sádica dos momentos do ridículo: quando oferecem a Caradet oportunidades que se lhe esvaem risivelmente (a televisão, a feira do livro, os públicos).

  Miguel Real, que me falou desta obra impagável, cometeu a inconfidência de me expor o fim. Não o farei, mas Real tem toda a razão: é nesse extraordinário fim que percebemos como, em função do que move o escritor, todas as contrariedades são irrelevantes. Um fim sem grandiloquência, mas certeiro.