terça-feira, 22 de março de 2022

RENÉ GIRARD: MENTIRA ROMÂNTICA E VERDADE ROMANESCA

 

O meu antigo orientador académico e, mais do que isso, amigo entretanto consolidado, que não via há muito, Professor Manuel José do Carmo Ferreira, e eu, reunimo-nos num almoço onde se cruzaram algum vinho, muitas recordações, gargalhadas e descobertas. Foi o Professor, ciente da minha paixão por Proust, quem me apresentou René Girard - que eu não conhecia - e uma obra sua onde, em torno de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust e Dostoiévski, se detecta e explora o conceito de desejo mimético.

Devo dizer que, mesmo com esta ideia a trabalhar-me subconscientemente, foi o acaso que, numa deliciosa livraria de Lisboa, a Distopia, onde eu ia em busca de outra coisa qualquer, me fez tropeçar numa tradução do ensaio maior de René Girard. Precisamente o de que Carmo Ferreira me havia falado.

O desejo mimético, primeiramente, é o desejo que eu copio de outrem.


Significa, por um lado, que descubro, num modelo, o que e como devo desejar, seja em D. Quixote a reprodução de Amadis de Gaula, o referente longínquo de um ideal de cavalheirismo, de luta contra o mal e de amor, seja, nas personagens de Stendhal, o desejo que se sente por uma mulher desejada por um rival  admirado e odiado (e o ressentimento mais não sendo do que esse desequilibrado e impossível convívio entre o fascínio e a inveja) ou, como na extraordinária Emma Bovary, a procura de um homem ideal, inculcada - precisamente, aliás, como no Quixote - pela tresleitura dos livros "românticos" da época ou, em Proust, a figura do snob, começando no próprio narrador, Marcel, cujos desejos (culturais, literários, mas também amorosos) dependem sempre da caução das pessoas que admira, mentores ou rivais, e desenvolvendo-se no ciúme, como forma de uma obsessão relativamente ao olhar de um terceiro sobre o objecto do meu amor - olhar de que no entanto careço, porque valoriza secretamente esse objecto do meu desejo, e mo faz desejá-lo mais perigosa e mais intensamente. Dostoiévski será, todavia, o autor que mais bem revela essa luta intrínseca de desejos, e essa necessidade de copiar e de competir com o desejo de outrem: loucura em D. Quixote, vaidade em Julien Sorel, infidelidade em Madame Bovary, snobismo e ciúme em Proust, ciúme e fascínio em Dostoiévski. A obra citada como lugar de desvelamento, neste autor, é O Eterno Marido, onde o viúvo busca o olhar dos antigos amantes da mulher falecida, e será ainda o desejo de um deles pela sua recente pretendida, que o eterno marido instigará, até ao ponto de a perder, revendo no rival, como num espelho, o próprio desejo, o próprio modelo, o opositor numa dialéctica sem a qual não sabe como desejar e nada é. "O desejo segundo o Outro", escreve Girard, "é sempre o desejo de ser um Outro."

Significa, por outro lado, que a detecção da dependência, destas personagens, relativamente a um modelo, ou a instituição do desejo na obra dos autores mencionados como um triângulo e como uma cópia de referências, uma cópia do desejo do Outro, não se limitam ao traçar de uma coincidência entre diferentes romances. São a base do romantismo. São a mentira do romantismo que, acreditando mostrar um desejo espontâneo e original do sujeito autónomo, expõem (porventura sem querer, porventura contra si: daí a "mentira") um desejo que é sempre falso, não autónomo, o resultado de uma influência, uma cópia, mimesis. No romantismo, o amor e o desejo mais não são do que uma reprodução de uma imagem, de um mito.

A verdade romanesca é a denúncia dessa mentira do romantismo, a que só os grandes romances dos autores maiores conseguem proceder. A descoberta, precisamente, de que as personagens não desejam por si: imitam sempre o desejo de outrem. [ O erro não estaria tanto, portanto, nos romancistas, como na crítica romântica, que, ao longo do tempo, sempre erigiu estas personagens em heróis românticos -veja-se desde logo D. Quixote, tomado como representante máximo do idealismo, como se, para Cervantes, não fosse antes um exemplo de loucura e de imitação de um modelo.]

sábado, 5 de março de 2022

DJAIMILIA PEREIRA DE ALMEIDA: LUANDA, LISBOA, PARAÍSO

 

[...] tinham percebido que Lisboa era uma escadaria que não ia dar a parte alguma.



Gosto de Djaimilia Pereira de Almeida. Muito, e por boas razões: porque escreve bem, num português em que o elemento africano, uma musicalidade de Angola, é autêntico, intrínseco e sem, por isso mesmo, necessidade de se exibir como em Mia Couto. Porque tem um olhar perscrutante e porque pensa ponderada e profundamente, o que percebemos quando nos tornamos leitores habituais das suas crónicas. A autonomia da reflexão e dos argumentos de DPA, nessas crónicas, resiste a que os reduzamos a linhas orientadoras de partidos, ou a categorias dicotómicas politicamente correctas, de uma forma rara e refrescante. 


Luanda, Lisboa, Paraíso principia por se fazer notar precisamente pela linguagem. Voluptuosa, poética, seduz-nos logo pela beleza: lemos o romance, em certa medida, como se estivéssemos a ler um poema e, portanto, para além das descrições e da narração dos acontecimentos, ou oculta neles, pressentimos sempre uma verdade mais intensa, que não é da ordem dos factos representados, ou da história que se nos conta, mas da forma, da expressão, das palavras. Para entenderem do que falo: Na cama, às escuras, eram um mostrengo. Os cabelos dela cobriam as maçãs do rosto dele. As pernas dele acrescentavam-se às pernas finas dela. Respiravam debaixo do lençol como se um único coração os animasse. Na escuridãoinspirando o mesmo ar, ela rangia os dentes nos intervalos do ressonar dele, num crescendo furioso que, ao rebentar, desmaiava num fôlego apaziguado em que o ritmo de ambos se encontrava por segundos para logo divergir como duas classes da mesma orquestra.

Em si mesma, a narrativa é de uma grande simplicidade. Não assistimos ao debruçar sobre situações, com as personagens pensando ou dialogando, ou interagindo, em suma, como parte de um quadro minuciosamente descrito. Ao invés, capítulos breves vão-nos dando conta de um grupo de protagonistas envolvido por um rápido desenrolar de acontecimentos no tempo: a criança nascida com um defeito no calcanhar, que lhe comprometerá a marcha (para sempre, a não ser que a submetam a uma operação, antes dos seus 15 anos); a mãe que cai numa paralisia pós-parto, e num estado quase vegetativo, de que regressará incerta e periodicamente; o pai, para quem a vida se transformaria em sofrimento e mistério, matéria de incompreensão e de indagações, mentor da viagem, com o filho, de Luanda a Lisboa [é pungente a chegada a Lisboa e o momento em que, um dia, à chuva, tristes e desnorteados, se perdem pelas ruas] e, por fim, fixando-se nas imediações da cidade, até ao paraíso, esse a que o maravilhoso título alude, quando encontram abrigo e um amigo.

Será, pergunta a sinopse, "esta amizade capaz de os salvar?"

É-nos indispensável ler este romance.