domingo, 4 de outubro de 2020

FERNANDO ARAMBURU: PÁTRIA

Meu amigo Jorge defende que, em rigor, Saramago não criou nenhuma forma de escrever: muito antes de José Saramago, não me lembro que Autor espanhol já inventara este estilo de prosa longa, oralizante, de pontuação reduzida ao essencial (a vírgula, o ponto) e diálogos captados num único parágrafo, sem travessões ou distinção gráfica dos interlocutores. 

 Os espanhóis escrevem bem e são originais. Lembro-me disto quando me embrenho em Pátria, porque a sintaxe é muito inovadora, com qualquer coisa de Saramago, embora seja mais do que um seu prolongamento e não certamente uma réplica. A "sintaxe inovadora" é, neste caso, uma lógica de construção deliberada e desafiadoramente errada, mas absolutamente genial. Querem um exemplo? Eis um exemplo. Fala-se de uma viúva, a Sra. Bittori. Os filhos aventam a hipótese de vender a casa onde já ninguém vivia, porque aí ocorrera o atentado que lhe tinha matado o marido. Escreve o narrador: "A Bittori cheirou-lhe que os dois se tinham combinado nas minhas costas." Sendo "as minhas", evidentemente, as costas de Bittori. Passa-se do ponto de vista do narrador para o da viúva, da 3a para a 1a pessoa, numa frase e sem aviso. Gramaticalmente inaceitável? Delicioso.

 Desde o princípio que a cena de abertura, com personagens que ainda não conhecemos e antecedentes que vamos descobrindo devagarinho, captura no entanto o leitor. É a arte de traçar, das personagens e de acontecimentos ainda inexplorados, aspectos decisivos, o esboço certo de personalidades, um esquema de expectativas: uma mulher que faz tudo para salvar um casamento sem chama; um homem narcisista, que parece nem nela reparar; uma viagem a Londres que não promete nenhuma remissão; a mãe dela, a tal Bittori, espreitando discretamente à janela e vendo-os partir num carro, profundamente condoída pela cedência taciturna da filha, sem esperança nem imposições; um marido morto, ou matado, Txato, mas omnipresente; as vizinhas. Este ponto de partida já nos envolveu, mal ainda despertaram ramificações, e o fantasma da ETA se agita em redor do assassínio do marido da viúva. 

 O que há de comum nos livros que me dizem muito é o raro dom de nos servir os pontos de vista em choque a partir da sua carne e das suas razões: a superação do maniqueísmo, o poder de nos mostrar que os humanos são igualmente frágeis e complexos e, atrever-me-ia a dizer, que todos têm razão: a guerra resulta sempre, simplificando abusivamente, de que a razão dos outros seja iniluminável para nós. Aqui, se não se defende a ETA da luta extrema, dos atentados, mostra-se o dilema das famílias dos terroristas, os dilemas dos dois lados e as condições políticas em que se gerou uma causa justa injustamente levada a cabo. Mas make no mistake: pronunciá-lo como um lugar-comum abstracto é uma coisa; conseguir mostrá-lo num romance que cria efectivamente raízes na verdade e na circunstância das consciências desavindas é sempre um prodígio. E, em Pátria, isso não se faz apressadamente. Uma história que compreende todos os lados tem de ser narrada com lentidão e possibilitar diferentes estados de espírito e graus de empatia do leitor em relação às diferentes personagens. Tem de nos dar tempo para simpatizar com a viúva Bittori, o seu homem assassinado, com quem ela fala ainda, o seu filho extraordinário ou a sua filha perdida num casamento impossível; e até para nos sentirmos incomodados com Miren, mãe de um terrorista, tão amiga inicialmente de Bittori, tão avessa, depois do crime, a que ela voltasse à terra como para a culpar, mulher dura e avó implacável. Este invólucro será muito mais difícil de penetrar: há-de fazer-se a entrada por via de sua filha, Arantxa, paralisada, completamente dependente da mãe agreste, essa filha que, antes daquilo em que se transformaria após o seu acidente, nunca pactuara com o modo de vida do irmão etarra e sempre se solidarizara com Bittori e a família dela. 

 É a história e a sociologia de um povo altivo, incompreendido, que usou o terrorismo mais vil como forma de luta, o que Aramburu nos expõe através destas famílias, da dor e da raiva que permanecem em redor de cada assassínio (mas dor e raiva de um lado e de outro), e da possibilidade, ou não, de alguma reconciliação entre pessoas que partilham memórias e se amaram.