quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

JAVIER MARÍAS: TOMÁS NEVINSON

 

[...] nunca nada se vai completamente embora, e o que parece ter-se ido embora, mais tarde ou mais cedo regressa, nem que demore por vezes trinta ou cinquenta anos.

                                Javier Marías, Tomás Nevinson


Há neste romance enorme, na qualidade, mas também fisicamente (651 páginas), uma mestria extraordinária. Não digo que JM seja o melhor Autor dos nossos dias; muito menos que diversos outros não sejam bons, assumindo essa espécie de desprezo pelo que vem sendo feito em matéria de literatura, tão comum nos dias que correm: diversos contemporâneos são-no, sem dúvida, ou mesmo excelentes, e muitos romancistas portugueses (por exemplo, para os tomar como termo de comparação) valem francamente a pena - porém Tomás Nevinson revela um nervo simultaneamente grandioso e singular, que só a voz de Javier Marías nos dá na sua originalidade. Não, não acredito que se trate de um exagero; outros que o tentem imitar, copiar, serão, para sempre, apenas epígonos. E, paradoxalmente, quem o experimentasse antes de Javier Marías tornar-se-ia, depois de um livro destes, um epígono avant la lettre. [Falo sempre dos contemporâneos, bem entendido.]




De que se trata? É difícil resumir. Poderíamos falar numa errância interessante, ou no modo como a narrativa parece dispersar-se por apartes, "a propósitos", sub-histórias que proliferam, como ramos ao longo do tronco, divagações, que são, cada uma delas, em si mesma, muitíssimo cativantes, como novas pistas que o leitor quereria perseguir, sabendo de antemão que o livro não é sobre elas e que, portanto, o seu aparecimento será breve, a sua declinação não tardará. É porventura assim que pensamos, não linearmente. É assim que as variadas associações, interferências e intersecções constituem o acto de pensar e, portanto, algo muito semelhante a esse nosso processo interno nos é oferecido neste romance. Perdemo-nos sem nos perdermos, esquecemo-nos sem nos esquecermos, ou pomos entre parêntesis o fio principal, ramificamo-nos continuamente. Talvez Vida e Opiniões de Tristram Shandy [ou Proust, mas Proust está para além de qualquer comparação possível] seja, a seu modo, um precursor, um modelo - mas Javier Marías refunde o modelo como um modo inteiramente seu, e de que, nesta particular apropriação, só ele seria capaz.


Este Nevinson a que o título alude, de mãe espanhola e pai inglês, foi durante algum tempo um agente britânico. Existiu realmente? Não o encontro em pesquisas que não remetam imediatamente para o romance. Nenhuma referência, nenhuma biografia.

Encontramo-lo numa época em que regressara à família - a extraordinária Berta Isla, protagonista do anterior livro de JM, e os filhos -, com quem tinha cortado todos os laços, deixando acreditar que estava morto, depois de dispensado pelos serviços secretos britânicos. Reatara a relação familar possível: sem coabitação, aceite até um certo ponto, encontrando-se irregularmente para a partilha de refeições e alguns momentos de sexo.


A libertação por parte da agência continha, para Tomás Nevinson, um elemento de vergonha, um inexplicável embaraço. Não que a não tivesse desejado e solicitado himself; mas ainda assim, a rapidez da aceitação, a atitude com que a encaravam, como se se livrassem de um peso morto, já para não falarmos da adaptação a uma vida praticamente igual à de qualquer habitante de Madrid, sem missão nem mistério, haviam-no tornado um deprimido homem comum. É, pois, quase com estranheza que Nevinson se vê contactado pelo desprezível Tupra, o aliciador, de múltiplos heterónimos, disposto a convencê-lo a uma última missão. Um assassínio, na verdade. E o assassínio de uma mulher. Mas, se isso é dito desde as primeiras linhas, "Eu fui educado à antiga, e nunca achei que um dia me ordenassem que matasse uma mulher", observem, por favor, o encontro entre Nevinson e Tupra, num jardim de Madrid, em que a errância interessante, como lhe chamei, se exerce em todo o seu esplendor, e eles de tudo falam, tudo comentam e evocam, e sobre tudo reflectem, como numa conversa de salão, tensa e divertida, culta e calculista, desconfiada e íntima, antes que se toque no que ali os reuniu.


 Nevinson é contactado para, de duas uma: ou reunir provas que permitam levar à justiça, ou, caso tal não suceda, liquidar (descobrindo em quem se tornou e envolvendo-se, eventualmente, com ela) uma das responsáveis por um dos mais brutais massacres perpetrados pela ETA, de forma que, ao longo do romance, vamos sendo convidados a participar da reflexão do narrador sobre o que é a justiça, o arrependimento, a história. E sobre esses homens que, sem ódio (palavras de Tupra), se encarregam de manter, não olhando a meios, a tranquilidade de todos os outros - que os recriminariam se tivessem consciência, se soubessem, se vissem. Não se trata, nesta reflexão, da auto-aprovação, mas, verdadeiramente, de dúvida e de interrogação. 

É toda uma época que se passa em revista e se discute, quando, dez anos depois, um homem desligado de um certo tipo de acção é chamado a reatá-la uma última vez. 

PS: li numa das badanas do livro, já após ter escrito o meu comentário, que Javier Marías traduziu Vida e Opiniões de Tristram Shandy. E devo confessar que fiquei muito impressionado com a minha própria perspicácia. Oh humana vaidade.

domingo, 12 de dezembro de 2021

ISABEL DA NÓBREGA: VIVER COM OS OUTROS


Dois

breves trechos, cada um em sua página, fazem a introdução a esta obra: o primeiro, de Vergílio Ferreira, recorda que a solidão é sempre uma possibilidade que se revela sobre o fundo da convivência - de algum tipo, mesmo negativo, de convivência. Quem a desconhece, ou não tenha alguma forma de consciência dos outros, não poderia sequer reconhecer-se como "eu"; o que não percebe a essência dos laços com outrem não poderia também perceber-se como "só"; o segundo excerto, de Rodrigues Lobo, faz o elogio do diálogo como o estilo privilegiado de escrita (e aquele que, de certa forma, contém todos os outros).


Dir-se-ia que estes dois ensinamentos mostraram, à escritora, o caminho do livro que ela deveria escrever. Um romance sobre um cruzamento de pessoas que permite, a cada uma, reconhecer-se a si própria, e um romance onde quase nada existe senão o diálogo. Longe de uma peça de teatro, porque podemos acompanhar o que algumas das personagens pensam, e como se avaliam mutuamente, assume a ausência de um narrador, de qualquer enquadramento ou explicação. Não sabemos, acerca daqueles sujeitos em um jantar e, depois, durante algum tempo de convívio, após o jantar, senão o que cada uma diz, aos outros, de si ou dos outros. Por outras palavras, somos espectadores a quem são negadas indicações. Entramos na reunião de pessoas que conversam, não sabemos quem são, e não percebemos durante muito tempo a quem atribuir cada uma das falas. Aos poucos, vão surgindo nomes, e continuamos a não adivinhar, necessariamente, que nome atribuir a cada uma das falas. Não tem a menor importância porque, nessa espécie de daltonismo, vamos descobrindo e caracterizando cada um dos presentes.

São indispensáveis, para escrever um romance com esta ousadia, duas qualidades. Ter apreendido a mimar o discurso oral, sem discursos demasiado prolixos e literários, mas, pelo contrário, lapsos, hesitações, interrupções, e nesse aspecto, Isabel da Nóbrega é absolutamente extraordinária. Na nossa cabeça, mais do que ler, parece-nos estar a ouvir. A outra qualidade é oferecer-nos o ritmo do pensar, com confusões e cruzamentos - e isso é muito mais difícil, e menos conseguido, porque a solução é a de tratar o pensamento como uma fala interior, e nós sabemos que o pensamento nunca é propriamente uma fala. Mas a inteligibilidade o exige.

O que se discute naquele encontro é denso. No fundo, aquilo que Sartre, Simone de Beauvoir e os existencialistas contemporâneos procuraram dar a ver. O que define a verdade de cada um? As suas ideias (políticas, religiosas, artísticas), ou os seus casamentos - em nenhum caso completamente bem sucedido ou para além de um qualquer equívoco essencial e incomunicável -, ou os seus actos, sejam a caridade periódica, o brilho social, um carácter contestário? Aquelas pessoas julgam conhecer-se, ou tentam conhecer as que são, de certa forma, novas no grupo, mas não o conseguem melhor do que o leitor. Talvez, então, a confusão em que nos sentimos por vezes perder seja deliberada: o resultado do exercício através de que a autora nos mostra que, se só vivemos com os outros, nunca realmente conseguimos viver com os outros a não ser separados por um mistério e por uma incomunicabilidade que são a condição de toda a interacção e conhecimento mútuos.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

AYN RAND: A REVOLTA DE ATLAS

 Tendo escapado muito jovem a uma revolução que a fez sofrer, e à família (a de 1917 na Rússia), viria a desenvolver, já nos Estados Unidos, onde se refugiou, uma espécie de ódio a toda e qualquer forma de colectivismo; a tudo quanto fosse pôr os interesses da comunidade, do grupo, dos outros, em primeiro lugar; à solidariedade como princípio de vida. A filosofia de Nietzsche (um Nietzsche mal digerido, quanto a mim, mas quem sou eu?) fornecer-lhe-ia os vectores filosóficos para tomar o egoísmo como a única forma de expandir o que de melhor haja em cada um - e a solidariedade, a piedade, a "empatia" (esse termo da moda, hoje, a que ela não se refere explicitamente, mas está sempre presente) como valores desvirtuados, falsos, promovidos pelos fracos e pelos sacerdotes de todas as religiões. 


Não,  não falo de nenhuma personagem, mas de Ayn Rand, autora da obra. Convenhamos que construir toda uma filosofia em torno destas ideias, que mal ocultam os ressentimentos da sua biografia, dificilmente produziria um pensamento profundo. E no entanto, por aquilo de que me apercebi, o mero cidadão norte-americano, de visão liberal ( falei com alguns, aquando de uma inesquecível viagem), mesmo sem interesse nem luzes filosóficos, encontra em Rand uma ideóloga que julga dever levar-se a sério, e em cujas ideias se compraz.


Este romance, sendo uma alegoria e a tradução romanesca das suas ideias filosóficas, não poderia deixar de enfermar os vícios da própria, chamemos-lhe assim, "filosofia". O maniqueísmo é, aqui, absolutamente arrepiante. Um mundo que não progride porque está nas mãos de pessoas que pensam nos outros (mas que, afinal, nunca pensam realmente nos outros, antes ocultam, sob esse ideal, os seus interesses mesquinhos e as suas alianças dúbias), e são sempre fracos, moles, feios, sofre verdadeiros estremeções sempre que alguns egoístas, incompreendidos, mas focados, se libertam da moral comum e se lançam ao objectivo, a despeito de todas as tentativas de os travarem: chantagem emocional, greves, maquinações. 


O romance advoga entendimentos egoístas. Quando a vice-presidente de uma companhia férrea, uma mulher firme, forte (inspirada certamente na própria imagem que Ayn Rand tinha de si) decide tomar decisões arriscadas, que ultrapassam as do Presidente, seu irmão, cobarde que se esconde sob a capa do "interesse geral" e do altruísmo, desafia a forma instalada e moralista que consiste em perder tempo, trabalhar lentamente,  ceder à incompetência generalizada. Para isso, ela terá de estabelecer um contrato com outro indivíduo forte e egoísta: o inventor e fabricante de uma nova liga, muito mais leve, para os carris. Este entendimento será,  por sua vez, o modelo do verdadeiro amor, na sua perspectiva: um entendimento entre egoístas.


Sabemos que os livros que se reduzem a veicular uma tese são fracos. Piores,  só mesmo, como este, os que se fazem para veicular uma má tese.

domingo, 22 de agosto de 2021

JULIAN BARNES: O HOMEM DO CASACO VERMELHO

Tudo nesta extraordinária biografia tem a mão do romancista. Aqui, de um modo tão claro e tão assumido, não poderia ser considerado uma falha no que respeita à seriedade biográfica da investigação ou da sua apresentação: é uma opção fascinante. Está na origem deste livro uma pintura: "Dr. Pozzi at Home", de John Singer Sargent. Julian Barnes descobriu-a, como se ela inesperadamente esperasse por si, numa parede do National Portrait Gallery, em 2015. Calculo que o impacto que ela teve sobre si, seria muito semelhante ao que poderia ter sobre qualquer um de nós, se lhe prestássemos a devida atenção. Reparem naquela impressionante mão direita, segurando uma fita, em que cada um dos dedos parece autónomo, num movimento próprio e distinto do dos outros. Reparem no casaco, que não é, afinal, um "casaco" no sentido mais adequado do termo, mas, provavelmente, um roupão. Observem o intenso vermelho (ou escarlate) do tecido, que sobressai sobre o fundo em que se pressente um vago cortinado, de um vermelho mais escuro, matizado de castanho, talvez aquilo que designamos por "bordeaux". Quem é este Pozzi, que pousou para Singer Sargent em 1881,e cujo nome parece italiano? Que se sabe dele? Que importância ou interesse teve a sua vida? No início desta obra, ele surge-nos como um dos três franceses que em 1885 visitaram Londres. Mas Barnes hesita precisamente no início, e essa hesitação entre vários possíveis começos da história, em diferentes tempos e lugares diversos, revela que, mais do que encontrar a "essência " de Pozzi (que seria isso, de resto?), o autor o procura como um complexo de momentos, de encontros, de relações, sobre o fundo de acontecimentos políticos, culturais, históricos. Ou seja, de quem ficamos, talvez, a saber o que é possível saber sobre qualquer figura não excessivamente conhecida, a esta distância. Deste modo, a biografia do Dr. Pozzi torna-se um pretexto para uma biografia de uma época. Saber que um dos amigos com que se deslocara a Londres é nada menos que uma das pessoas em que Proust se inspirou para construir o seu imortal Barão de Charlus, é um indicador infalível de que esta biografia é um complemento de À la Recherche du Temps Perdu, uma compreensão das guerras entre intelectuais, o abismo e o fascínio entre Paris e Londres, as expressões mais ou menos difusas do anti-semitismo, o Caso Dreyfus, Zola e o seu tonitruante "j'accuse", o lugar das mulheres, quer as Bovary, quer as Guermantes ou as Françoise (ou a extraordinária Sarah Bernhardt que constitui, ela própria, a única catergoria em que poderíamos inseri-la), o peso dos homens, como o bem-sucedido Pozzi ou o invejoso Jean Lorrain, e o requinte da vida de alguns por oposição à da maior parte. É um livro profusamente ilustrado, o que faz dele, por essa razão mais, um objecto que gostamos de sentir e folhear. É muito belo. Reproduções das pinturas de uma época, fotografias dos seus protagonistas em todas as áreas, e a excelente colecção de cromos "collection Félix Potin", com os retratos das figuras mais proeminentes, que, directa ou indirectamente, todas se terão encontrado com o Dr. Samuel Pozzi.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

ILJA LEONARD PFEIJFFER: GRAND HOTEL EUROPA

É verdade que não conhecemos - eu, pelo menos, que me lembre - a literatura dos Países Baixos, e que o nome de Ilja Pfeijffer me dizia pouco. Eufemismo para "nada". Folheio, confesso que com tanta curiosidade como cepticismo, este monumental, fisicamente falando (563 páginas), Grand Hotel Europa, e sou sugado pelos inúmeros vértices de um ambicioso e impossível projecto. O recurso a, ou mesmo a guerra entre, diversos géneros e formas, no interior de um mesmo romance, nada tem de novo. Já que falei de "guerra", posso estacionar um instante para lembrar que, não tão longe no tempo como isso, Guerra e Paz permanece um excelente exemplo de uma miscelânia de formas. No romance de ILP, vamos sendo guiados entre dois momentos que parecem paralelos, embora estejam relacionados e o segundo seja a consequência directa do primeiro. Num "outrora" relativamente recente, o narrador viveu, em Itália (em Veneza, sobretudo) uma paixão sublime por uma italiana chamada Clio, e o nome não é, evidentemente, mera coincidência, estudiosa de Arte, professora, apaixonada por Caravaggio, efabuladora, temperamental. É a dramática separação do casal que leva o homem até, precisamente, o Grand Hotel Europa, um, em outros tempos, magnífico e resplandecente hotel, vivendo hoje numa deprimente decadência (a que o novo proprietário chinês fará tudo para o arrancar, dando-lhe um aspecto mais "autêntico" do que nos nossos sonhos: para cúmulo da ironia, a antiga sala chinesa transformou-se numa imitação de pub inglês que há-de parecer, aos olhos dos turistas chineses que aí virão, a essência do pub inglês; também a fonte do jardim foi consertada para, de novo, jorrar água; obras várias por todo o lado marcam o vetusto e labiríntico edifício). Nesse hotel, lambendo as feridas, o narrador conhece os hóspedes mais bizarros, ansiosos por atenção, carentes de que os oiçam. Assentemos desde já na parte mais simples e óbvia, nunca, aliás escondida. O Grand Hotel Europa é uma metáfora da própria Europa. Com uma longa cauda atrás de si, uma História de que se orgulha e não existe nos outros continentes, ou então, em mais nenhum continente, nem mesmo na Ásia, é exibida com tanto deslumbramento, a Europa encontra-se, contudo, envelhecida, e o seu futuro implicará, em grande parte, que se venda a alma ao diabo, passe a expressão: ou seja, que se abra a um turismo desenfreado, à procura de um "autêntico ", que, precisamente, não sabe como ou onde encontrar e, quando encontra, destrata e destrói, não por mal, mas porque essa é a condição inocente de todo o turista. Esta exposição da "mensagem", digamos, faz-se de múltiplas formas (daí haver-me referido à multiplicidade de géneros em que o "romance" se exprime). a) É a narrativa ficcional (mas até que ponto?), b) é a reportagem, sendo que, para afinar a verosimilhança, o narrador será afinal o autor, o próprio Ilja Leonard Pfeijffer - e mesmo quando algumas referências que faz nos parecem duvidosas, a mais rápida pesquisa nos mostra que são absolutamente fiáveis: os romances referidos, da sua suposta autoria, são aqueles que realmente escreveu e publicou; o realizador holandês de um filme bizarro dos anos 60, de que nos fala, existiu (ou existe) efectivamente, e realizou mesmo esse filme, passado numa estranha cidade aquática holandesa que, com efeito, também é um facto; mesmo a mais improvável e cruel das descrições, a de uma visita a Scopia (Escópia?), capital de um país recente, a Macedónia, com as suas imponentes estátuas falsas, o seu gigantesco e ridículo Alexandre equestre, sentado num cavalo da altura de um prédio de quatro andares, como se estivesse numa sanita, é indiscutivelmente real. Ou seja, a cada momento nos interrogamos sobre a probabilidade da narrativa ou das descrições, no limite, por vezes, do ridículo e do surreal, e percebemos que, por exageradas que possam ser, têm sempre o fundo resistente, duro e indesmentível da realidade. Pesquisei Scopia, vi fotografias, com um soluço de piedade por um povo que escolheu (ou a quem foi imposta) uma exuberância de fachada, para enaltecer uma História, também, ao que parece, falsa ou deturpada. Ou discutível (ou ardentemente discutida pelos vizinhos Gregos); c) ou os ensaios, porque, que mais chamaríamos àqueles longos monólogos, às interpretações da pintura de Caravaggio, ou - e sobretudo - às prédicas acerca do turismo, dos turistas holandeses em primeiro lugar (de que nos é oferecida uma inesquecível tipologia), mas não só? A grande questão à volta da qual se entretece este romance é, pois, o que é realmente a Europa. Há uma identidade europeia? Algum conjunto de traços que distingue todos os habitantes deste continente feito de nações com povos tão diversificados e diferentes uns dos outros? Em dado momento, ILP cita George Stein, numa tentativa de resposta que não resisto a reproduzir. A Europa caracteriza-se por cinco pontos: 1. Os cafés. E estes são os lugares onde as pessoas (desde o século XIX) se reúnem para discutir ideias ou urdir conspirações. 2. A existência de uma natureza domesticada e transitável (ao contrário do que encontraríamos na América, mesmo na Ásia, certamente na África). 3. Como já disse, estar tão imbuída da sua História. Em toda a parte nos confrontamos com pedras da Antiguidade, pinturas medievais ou renascentistas (por contraposição, por exemplo, aos americanos, que nem sempre entendem que não se trata apenas de trastes velhos). 4. A genial relação entre a racionalidade e a revelação. Enquanto outros povos fundaram a sua sabedoria principalmente na revelação, a tradição europeia é a da mistura entre o judaísmo, o cristianismo e a filosofia. 5. Finalmente, a ideia da decadência: em nenhum outro povo encontraríamos tão nitidamente formada esta ideia de que a própria História é, de certa forma, a evolução a que se seguirá fatalmente a queda. Numa discussão sobre o assunto com o meu primo, que aqui já não mencionava há muito (a pandemia, infelizmente, impediu os seus triunfais e breves regressos a Portugal, pelo que nos fomos adaptando a regulares reuniões on-line) acordámos nestes cinco pontos, aos quais, contudo, acrescentaríamos alguns mais: certamente uma literatura, uma música e uma pintura que a definem, entre outros. Mas entendo que Steiner queira falar mais de "condições de possibilidade" de uma identidade europeia do que propriamente do seu "conteúdo". Que todas as personagens do hotel possam ser vistas como símbolos, sem que por isso percam a espessura, é uma verdadeira lição, nesta obra, de como ligar o colectivo e o individual. Tome-se, para já, a relação entre o "maitre d'hotel", que tudo sabe e a tudo acorre, que todos os desejos dos hóspedes antecipa, culto e bem-falante, e o "piccolo", um jovem refugiado que encontra, para contar a história terrível da sua vida, as palavras de Vergílio, no único livro (no caso, vertido em prosa), que possui no seu quarto. A dor é universal. É uma relação de mestre-aprendiz, de hospitalidade e transmissão (a que se opõe, porém, o exemplo de Louise, a camareira capaz de trair o jovem, porque um seu sobrinho quer ocupar o seu lugar, e "estes estrangeiros vêm para roubar os nossos empregos"). E leiamos cada uma destas personagens na sua singularidade. Não conheço um outro romance que aborde tão explicitamente esta pergunta: a Europa como identidade existe? E sobretudo, que o aprofunde segundo a complexidade de tantos ângulos ao mesmo tempo.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

JULIETA MONGINHO: VOLTA AO MUNDO EM VINTE DIAS E MEIO

Começo por saudar todos os autores portugueses que, como Julieta Monginho, continuam, em tempo de pandemia, arriscando na sua escrita. Vende-se provavelmente muito menos, alguns escritores experimentam outros recursos (cursos de escrita on-line, por exemplo, e não me passa pela cabeça pôr em causa a legitimidade da diversificação de caminhos para a sobrevivência de quem tem sido tão maltratado) e suponho que, em matéria de romance, a regra seja fazer e publicar romances "vendáveis". E todos sabemos o que significa isso: baixar a fasquia, piscar o olho a todos os tipos de público, namorar com o mainstream. O que defendo não é que se faça necessariamente o contrário: escrever para a elite, de forma imperscrutável, ininteligível, em autênticas masturbações intelectuais. Mas que se mantenha a qualidade, se evitem as cedências, e não se tenha medo do que não se lê à primeira e dá trabalho, parece-me corajoso e de saudar. É o caso. O início é um choque. Personagens fortes, interessantes, em situação e relações que não compreendemos, porque delas nos são apenas oferecidos indícios. Ou seja, começamos pela incompreensão que, no entanto, nos magnetiza. A partir deste quadro que não existe, ou de que há insuficientes pinceladas, vamos recuando: e nessa viagem por onde JM nos conduz, sem pressa, como no gozo da lentidão que o verdadeiro conhecer e o verdadeiro compreender requerem, as personagens ganham espessura e, sobretudo, as relações entre elas tornam-se nítidas, os equívocos em torno da homossexualidade ou heterrossexualidade daqueles com quem convivemos neste tempo de leitura, e sobre de quem é filho Leo, o menino que seguimos (e em que situação foi concebido), clarificam-se; o fio dramático e narrativo aviva-se; a situação desta pequena comunidade de dois homens que se amam, uma mulher amada e um menino que, de algum modo, é de todos, mas ao mesmo tempo provoca entre eles a cisão (emotiva e literal), torna-se a situação em que vivemos também, como espectadores incapazes de distanciamento. No confronto entre as suas duas naturezas, a de viajante, no fundo fugindo de si, e a de português a que nunca conseguiu fugir, Mário regressa ao seu Alentejo, a tempo de um reencontro com a mãe, com as memórias, confusas, confundidas, e com um pequenino pintaínho, no cenário épico de uma tempestade que parece devolver a terra à sua condição aquática original. Trata-se de os salvar: de se salvar, salvar a velhinha que o não reconhece, ou acrescenta, à memória que Mário tem do passado, o que lhe parece nada ter que ver consigo, e ele julga referir-se a alguma outra pessoa. É extraordinário. É um trecho dolorosamente maravilhoso num romance sublime. Nem é bem um trecho, é uma corrente, um dos fios contínuos do romance. É, ele mesmo, um fio sublime no tom simultaneamente rústico e surreal que nos faz ouvir: a mãe que, sobre um móvel que as águas não alcancem, se sente rainha do mundo, os nomes e as lembranças que lança e em que Mário se não reconhece, as lembranças em que o próprio Mário já não pode ajustar contas com o pai, ou perdoar-lhe, ou, quem sabe, pedir-lhe perdão; do pastor que o iniciou, dos homens que o usaram; o presente, o pressentimento do futuro, o pinto calçudo, o barco que tem de ir buscar, a nado, ao automóvel que a enxurrada afastou... Mas agora, põe-se outro problema. Esta viagem de Mário, simultânea e, na minha óptica, tão fulcral no romance como a fuga de Leo, acontece de que modo? Em que dimensão? Porque ele há factos, ele parece haver factos, a que, aliás, os nossos hábitos "realistas" de leitura se agarram desesperadamente. Porém, a partir de certo ponto, mesmo os factos se confundem com a fantasia, o real com o irreal, o possível com o impossível, as figuras dos quadros do museu interferem, apresentam-se, dialogam, e não somos capazes de fazer caber nas nossas grelhas aquele mundo fantástico, que não esperávamos a tal ponto, e contra o qual resistimos até onde podemos. E podemos pouco, porque tudo nos fascina. A linguagem é uma outra abençoada dificuldade. Uma prosa poética que não vem para facilitar a vida ao leitor, mas para o encantar, antes de mais, para o banhar na sua beleza, convidando-o a que se perca, e reencontre, numa navegação sem bússola, exigindo uma leitura que seja a sua única orientação. Há muito não lia um romance tão corajoso e tão completo: no que nos pede, no que nos dá.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

BRUNO VIEIRA AMARAL: INTEGRADO MARGINAL

Terei escrito alhures, uma vez, que a biografia era um género que não me encantava. Nas várias excepções que então apontei, já se percebia que não seria propriamente verdade. Tenho lido - e procurado, o que é um dado novo - algumas biografias. Há autores portugueses escrevendo muito bem sobre a vida de outros escritores portugueses - do O'Neill, da Agustina e, agora, do José Cardoso Pires -, para além de uma biografia interessantíssima, mas, essa, da autoria de um inglês, acerca do Dr. Pozzi. Fica a promessa de um próximo voo sobre O Homem do Casaco Vermelho. Para já, move-me Integrado Marginal. Bruno Vieira Amaral investigou minuciosamente o homem que procurara, toda a vida, equilibrar-se nessa tensão entre a integração e a marginalidade (veremos, adiante, se podemos ser categóricos a esse respeito), Cardoso Pires, e a sua época, e o resultado é um monumento de 561 páginas (mais anexos), que se lê deliciadamente. Lê-se deliciadamente, em primeiro lugar, porque Cardoso Pires é apresentado na sua circunstância e no seu tempo: principiando-se com uma breve, mas indispensável, incursão à vida do pai, que em vão desejou ver o filho a seguir-lhe os passos na marinha, e uma quase apenas sussurrada referência à religiosidade da mãe, que José Cardoso Pires abominava, o livro de BVA põe-nos diante dos olhos um pouco incrédulos o Portugal que, a partir dos finais do século XIX (quando nasceria o pai do biografado) vagarosamente vai evoluindo até aos anos do salazarismo e ao tempo da Guerra; os anos cinquenta e sessenta, já com o jovem Cardoso Pires iniciando a sua carreira literária num meio tacanho, as suas amizades de relativa boémia (Luiz Pacheco no liceu e, episodicamente, mais tarde; Alexandre O'Neill, Cesariny ou o delirante Luís de Sttau Monteiro, incapaz, ao que parece, de não entretecer deliberada e continuamente a verdade e a mentira nas histórias que relata aos seus amigos), a filiação no Partido Comunista Português, a importância do partido em Portugal ou o reforço da desconfiança, da vigilância e da perseguição aos intelectuais por parte do Estado Novo, através da polícia política; ou a candidatura de Norton de Matos e, anos mais tarde, a do General Humberto Delgado, com a energia que despertou e a frustração subsequente. Ou seja, é também a biografia de uma época do país, sobretudo literária e culturalmente, mas também política, jornalística ou economicamente. Por outro lado, o esforço de pesquisa do autor, incansável e detalhada, não transparece, devido à opção de não fazer o leitor tropeçar em notas de rodapé, como se se tratasse da leitura de uma dissertação académica. As notas, profusas e rigorosas, existem, mas no fim. A leitura faz-se, portanto, fluidamente, como a de um romance, porque a escrita é elegante e nos capta. Neste meio, desenha-se a figura de Cardoso Pires, das irascibilidades que o levam, em transportes de indignação, a cenas de pugilato, da sua insegurança a propósito da própria qualidade do que escreve, da relação com Edite, sua companheira (mais do que apenas "esposa"); podemos discutir - tem-se discutido - o ponto de vista do biógrafo. Até que ponto toma partido (por exemplo, a respeito daquela espécie de inimizade entre Cardoso Pires e Saramago); ou - faz parte da mesma crítica de que tenho seguido ecos - se, por exemplo, a ideia de Cardoso Pires como um "integrado marginal", de que o título do livro dá conta, não seria também uma tentativa de dotar de um carácter rebelde um escritor que, desde cedo, se tornou um perfeito "integrado" no meio literário português, bajulado e premiado pelas sociedades e ambientes que contam (não integrado no Estado Novo, é claro). Mas, em boa verdade, essa discussão soa-me a um tanto espúria. E a biografia permite-nos agarrar o homem complexo, ambíguo, cioso de se ter segundo uma certa ideia de virilidade (os libertinos como modelo, ou Hemingway), e o maravilhoso escritor de O Delfim e da Praia dos Cães.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

ARTURO PÉREZ-REVERTE: CÃES MAUS NÃO DANÇAM

Quando era menino, ouvia com muito gosto as fábulas que a minha mãe me contava. Ela decorara trechos inteiros de traduções, para português, de poemas de La Fontaine. Evidentemente, assim que aprendi a ler, não empreguei propriamente a nova "competência" para ler fábulas. Atirei-me às Aventuras de Os Sete e Os Cinco e ao Júlio Verne. O interesse pelas fábulas desvaneceu-se. Era, aqui e ali, reacendido. Aproveito para, por exemplo, convidá-los a seguir a série Grimm, que nos traz uma espantosa reinterpretação (no género fantástico) do que são as fábulas dos Grimm. Em adulto, apesar de ser um grande amigo dos cães e um fervoroso adepto da Causa animal, reagi como se reage a todas as pragas. Detestei romances narrados por cães e por gatos e afastei-me deles, como quem se afasta, higienicamente, de uns autores manhosos, que escreviam para um nicho fácil, acabado de encontrar. Isto dito, tratava-se, neste caso, de um livro "de" cães (nunca percebemos se é para imaginar que o escrevem, ou se pensam em voz alta para nós...) escrito por Arturo Pérez-Reverte, que, quando desliza, pode ser consideravelmente fracote (O Franco-atirador Paciente), mas, quando é bom, é francamente bom (Os Homens Bons e tantos mais). Assistimos, aqui, a uma tentativa de assumir o ponto de vista autêntico, sem moralismos, de um cão. Um cão é machista e pode tornar-se violento, a ponto de matar um outro, débil, para salvar a própria vida diante de homens que os põem a lutar. E esta visão da natureza dos cães, na sua relação ambígua com os humanos, de que percebem pouco e cuja linguagem não conhecem - entendem mais o "tom" do que o conteúdo- seria brilhante, quanto mais não fosse pela novidade, se, paradoxalmente, o narrador, Negro, um antigo cão de lutas, entretanto libertado e hoje em busca dos seus amigos desaparecidos, não caísse na tentação de comparar a amoralidade canídea com os moralismos hipócritas dos humanos, ou tecer comentários acerca do "politicamente correcto" que não é um critério canino. Assim, precisamente a forma a que o romance de Pérez-Reverte parecia escapar, a pregação de uma moral humana em nome dos cães (e tomando-os como personagens), acaba sendo uma armadilha em que rapidamente cai. Páginas, porém, de grande violência (humana, naturalmente) dialogam com outras de uma enorme emotividade, na descrição da fidelidade dos cães (relativamente às pessoas ou entre si) e da infidelidade do homem em relação ao cão.

domingo, 6 de junho de 2021

HERVÉ LE TELLIER: A ANOMALIA

Para além de uma capa muito bem caçada, que será, suponho eu, a da edição original, e de uma tradução de Tânia Ganho, para português, absolutamente impecável, "A Anomalia" poderia mesmo ser considerado aquilo que prometem. A reconciliação entre um romance, digamos assim, "literário", com citações e referências a piscar o olho a um leitor que se considera erudito, e um romance de vertigem, um "thriller", para que se tem usado o novo anglicismo "page-turner", quer dizer... bem, não vou pôr-me pedantemente a tentar ensinar o que já todos sabem. Ora devo dizer que, de um certo ponto de vista, me satisfaz. Viro as páginas rapidamente, ansioso, com efeito, por agarrar o seguimento, mas percebo que não se trata de uma obra linear, um policial de aeroporto: contém os problemas existenciais de personagens, um peso intelectual que não podemos limpar dos ombros como se fosse caspa. O que me insatisfaz nessa primeira satisfação? Compreender que a "dimensão cultural" é ali, de facto, como caspa: não se sacode, mas descobrimo-la como um apêndice inútil; a história não se alimenta desse lado - seria similar, sem ele - e, portanto, ele funciona como uma dimensão artificial em que o romance se quer banhar. A outra face, em contrapartida, também tem que se lhe diga. Em que consiste o truque? Existem variadíssimas personagens (escolhidas de entre os passageiros de um voo tenebroso) e, ao longo de grande parte do enredo, cada capítulo é sobre uma ou duas dessas personagens. Adensa-se o mistério; em cada uma delas pressentimos um segredo, ou um mistério, e dir-se-ia que nada mais as une senão o voo partilhado. De alguma coisa que certamente sucedeu e não sabemos, e de uma culpa que poderão carregar, mas desconhecemos, decorre que o FBI (ou organismos de defesa de outros países) os persegue. Ou seja: a manutenção do suspense faz-se através do mesmo mecanismo, que se repete, capítulo atrás de capítulo, aplicado, de cada vez, a novas personagens. E apesar de tudo, sinto que não faço justiça ao livro - porque, mesmo sob o efeito racional desta análise, ela não me impediu de o ler vertiginosa e deliciadamente. Com o leitor primitivo que há em mim, não-analítico, emotivo e menos exigente, funcionou perfeitamente. PS: Por outro lado, não deixa de ser verdade que, a partir da segunda parte do livro, o mistério se torna realmente interessante. E nos fazemos uma pergunta: que explicação, que não seja risivelmente absurda, poderá o autor encontrar para a "anomalia" detectada.

terça-feira, 18 de maio de 2021

PEPETELA: LUEJI. O NASCIMENTO DE UM IMPÉRIO

As terras de África são extensas, povoadas por diferentes aldeias, com laços entre si e com um poder central, ora de vassalagem, ora de cumplicidade, ora de guerra. Atravessa-se florestas densas, rios habitados por jacarés, atravessa-se hortas, para se chegar de um povoado a um outro. Muito tempo antes dos conquistadores Europeus chegarem, prontos a dominar, a escravizar, a extorquir e, secundariamente, evangelizar e ensinar, já estes povos haviam desenvolvido sistemas complexos de poder, comunicação e diplomacia. No romance de Pepetela, esta grandeza e esta riqueza de terras, a perder de vista, e esta sofisticação de meios de organização social, são expostas com um pormenor que não poderia deixar de exercer fascínio sobre um leitor Europeu, que, séculos volvidos, imaginava ainda uma África onde viviam, à vinda do invasor, bandos de indígenas nus, sem cultura nem Estado. (O que não seria propriamente o meu caso, diga-se). Num romance particularmente bem conseguido, do ponto de vista da escrita, de que falarei de seguida, e construção narrativa, assistimos ao nascimento do império, sob a rainha Lueji e, paralelamente, séculos mais tarde, à experiência do grupo angolano de bailado que, em Luanda, se prepara para recriar a história dessa magnífica Lueji. A descoberta do amor por Lu e Uli é muito bela. Secretamente apaixonados um pelo outro, significando este "secretamente" que nem os próprios estão conscientes do que sentem, porque não conseguem olhar-se como objectos desse tipo de amor, demasiado influenciados pela ideia de que, conhecendo-se e brincado desde pequeninos, não podem senão ser como irmãos, Lu e Uli são bailarinos amadores, e têm, no bailado, uma relação especial, um conhecimento particular dos movimentos um do outro, como se ninguém mais pudesse ser, pelo menos daquela forma sigular, o par do outro. É nessa ligação dos corpos, no bailado, que a sua paixão se tornará evidente - por causa de uma expressão abusiva e de espanto do coreógrafo checo, que abrirá, de súbito, os olhos aos demais dançarinos e, por fim, aos próprios amantes inconscientes e relutantes. Tudo o que este grupo pretende, nos anos 70, é reconstituir a saga de Lueji, contra os seus desejos elevada a rainha: os irmãos de Lueji, que mataram o pai, não serão banidos, mas afastados da possibilidade de reinar, que o mais velho, Tchiguri, toda a vida teve como objectivo. É nestas relações de amor-ódio entre os irmãos (o trecho que nos narra as brincadeiras eróticas, incestuosas, na adolescência, entre Lueji e Tchiguri, é estranhamente perturbador e muito bonito), de intrigas, de organização de exércitos próprios, que a jovem rainha terá de aprender em quem confiar, a quem se aliar, quem vigiar, o que fazer em cada momento da vida e do poder que nunca pediu. Ela não quer a guerra, nas terá de estar preparada. Num português-angolano, maravilhoso e apetecível, tão inesperadamente próximo de Saramago em certos momentos, mas mais ousado nas construções em que o discurso directo e o indirecto se confundem, recorrendo a palavras como "desconseguir", "maka" ou "salimentar" (por "se alimentar") Pepetela consegue forjar com autenticidade o português africano, que, infelizmente, em Mia Couto se transformou numa espécie de postal, sem a mesma autenticidade.

terça-feira, 27 de abril de 2021

PATRÍCIA REIS: ANTES DE SER FELIZ

O que me surpreende e encanta desde o princípio é que, sendo este romance escrito por uma mulher, toma como narrador-personagem, o qual conta, de certa forma, uma história sua
(o "narrador auto-diegético", portanto), um homem particular: primeiro uma criança e um adolescente, depois um jovem, por fim o adulto de cerca de 30 anos, cuja vida manterá o fantasma contínuo de um amor impossível. Por muito que Inês se afaste, cortando aliás todos os laços com a família e com o país, e ele se afaste dela por sua vez, ou seja, se esforce por a deixar ao longe, sem a procurar, nem telefonar, casando-se inclusivamente com outra mulher (por pouco tempo), a verdade é que Inês será, de uma maneira infeliz e marcante, a única mulher da sua vida, o único, o verdadeiro amor. Mas espanta-me este poder de uma autora, para mergulhar na pele e no pensamento de um homem que escapa a todos os clichés do género. Um homem com uma sensibilidade fina e uma inteligência emocional, e um pudor, que são, de resto, a base da compreensão e dos laços que há-de manter com o pai e com o tio dela (também homens singulares), até à morte deste e daquele. Não que todos os homens tivessem de se reconhecer exclusivamente no machismo e no futebol, bem entendido; mas, ainda assim, esta reconstituição de uma masculinidade mais subtil, que não é, porém, a de uma mulher travestida, e sim a de um certo tipo, raro, ou que prefere ocultar-se, de homem, constitui, quanto a mim, uma das conquistas deste romance de Patrícia Reis. Tudo, na narrativa, é perfeitamente credível: desde a linguagem despretensiosa, e magoada até ao ressentimento, do narrador, ao desenho das personagens e aos mal-entendidos das relações: na família dele, por um lado, sórdida, ruidosa e disfuncional; na família dela, por outro, em que, porventura, a ausência da mãe, fez com que tivessem de se confrontar desde cedo com um amor que nunca soube exprimir-se. Ou de um pai que nunca soube manifestá-lo a contento de uma menina carente. Quem nos conta portanto a história, Pedro, o jovem que sempre preferiu o silêncio carregado de incompreensões e tristeza, desta família, às raivas, gritos e agressões na sua própria família, torna-se, convivendo tanto com aquela, a consciência privilegiada e sábia, e atenta, dos equívocos próprios de palavras que nunca foram ditas, gestos que nunca foram oferecidos. Num livro de poucas páginas, cento e tal, o romance de Patrícia Reis abre-nos para uma Figueira da Foz que, por muito que se fuja, Inês primeiro, Pedro depois, será o centro do que permanece, o que valeu a pena, mesmo no desencontro, e da única esperança do que faz sentido.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

ALEXANDRE ANDRADE: A PRIMA DO CAMPO E A COISA PÚBLICA



 1. Foi José  Mário Silva quem, numa entrevista que lhe fiz (Fluir n° 6) se referiu a Alexandre Andrade, que eu desconhecia completamente, como sendo um dos mais interessantes autores portugueses de uma geração jovem, juntamente com Gonçalo M. Tavares e provavelmente Afonso Cruz.

2. Este romance, que não descansei enquanto não  tive nas mãos, começa por desconcertar. Duas primas que respondem pelos improváveis nomes de Ásia e de América, se reencontram quando a América vem viver com a Ásia em Lisboa (estranha-se, não é?) e falam demasiado correcta e prolixamente, usando termos como "relapso" ou citando um trecho inteiro de Agustina Bessa-Luís, a que vêm, o que significam exactamente? Sentimos que não somos capazes de apreciar o romance enquanto não decidimos, nestes contornos, que parte existe de ironia, ou se não será antes a tentativa de um autor canhestro nos mostrar uma realidade que, só por inépcia, lhe sai inverosímil. Bem sei, abordo o texto sob a recomendação do José Mário Silva, que prezo, e só ela me evita a precipitação. 

Mas depois creio entender, pelo estilo da escrita, precisamente pelo modo excessivamente literário como as personagens usam da palavra, ou pelas personagens propriamente ditas, ou por um palpitar de quase fantástico que subjaz e cresce ao longo do evoluir da história  (e até por algo tão simples como os títulos dos capítulos; reparem: "Duas aventuras de América, a segunda das quais conduz a uma terceira"), que se respeita uma matriz - e a matriz é a daquele misto de romantismo e de romance de aventuras, que do Quixote a Os Noivos, e a algumas brincadeiras camilianas, entre nós, ou até à colaboração entre Eça de Queirós e Ramalho Ortigão para jornais, procura manter o fulgor folhetinesco, com peripécias que tenham o leitor sempre preso, e conversas grandiloquentes.

E como nos livros que eu mencionava, também aqui tudo são as estranhas coincidências e os sinais incompreensíveis por que a cidade de Lisboa se vai revelando a América: o programa dela é o de descobrir Lisboa, de Nikon em punho, e de jardim em jardim. O Jardim da Estrela, o do Príncipe Real, o do Campo Grande, o Parque Eduardo VII. Perseguir as coincidências como se fossem, de facto, sinais: um homem que faz teatro de fantoches, um outro que se diria mal-educado, falando ostensiva e despudoradamente ao telemóvel, durante um concerto na Gulbenkian (mas não sem um perturbador encanto), o desconhecido que a interpela e convida para uma festa, ou aquele leitor de Apollinaire que paga um erro do passado - homens intrigantes, sob cujos movimentos se desenha o mistério de Lisboa. Já para não falar em um homem que percorre as noites da cidade, pelos telhados, em fato de borracha.

3. Insisto na ideia do modelo do "romance de cordel" (ainda que as referências reconhecidas no próprio romance -vide adiante - sejam diferentes das que enunciei) porque tudo, aqui, é maravilhosamente hiperbólico. Se lerem, por exemplo, as cerca de duas páginas em que se enuncia os diferentes pratos à espera de que as pessoas se sirvam, no banquete do Bacelar, percebem a que me refiro; se prestarem atenção à organização secreta, seus objectivos e, sobretudo, aos sinais secretos através dos quais os membros se reconhecem, confirmam que estamos no domínio de um delírio irónico e feliz. Lisboa, uma Lisboa exageradamente misteriosa e aventureira, desdobra-se aos olhos espantados do leitor.

4. Mas o melhor desta obra, é que aquilo de que acabei de vos falar não é senão a primeira parte de um romance de três partes que nos exigem bruscas mudanças. Depressa percebemos que o que julgávamos ser o romance é, como em Calvino, ele próprio uma, digamos, personagem, que teria sido escrita por uma autora, e sobre o qual um amigo dela se debruça, comentando-o numa carta em que, ao mesmo tempo, vai narrando a história da sua relação com ela. Mudámos de nível. Estamos num outro grau. A linguagem é outra, as personagens nada têm que ver com América e Ásia. E como em Italo Calvino, também o romance ficou em aberto quando se entrou no plano do meta-romance. (Na verdade, descobriremos, por alusões na carta, que a primeira história continuou, que outras personagens emergiram na vida de América, que o seu curso teve novos desvios. Apenas o leitor que eu sou, que nós somos, deixou, pelo menos para já, de lhe ter acesso a não ser indirectamente).

5. Terceira parte: mais achegas à história de América, agora de um outro ponto de vista, ou seja, ainda em segunda mão.  (Na verdade, de um leitor do livro, a quem este foi furtado com a sua mochila, mas o reconstitui, comentando-o num caderninho: e, diga-se, esta ideia brilhante, mais calviniana não poderia ser). Era por isto que alguém - não sei quem, não sei onde, não sei quando, mas um crítico  - se referia a este romance como o pavor de quem quer que tivesse de lhe compor uma sinopse.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

PATRICIA HIGHSMITH: SUSPENSE OU A ARTE DA FICÇÃO


 

Sim, num primeiro momento, os leitores habituados a livros acerca de escrita de ficção, aquilo para que se inventou a horrorosa expressão 'escrita criativa', da autoria de escritores portugueses, como Mário de Carvalho - cultos, cheios de piscadelas de olho literárias, intelectualmente sofisticados, reflexivos - sentem-se decepcionados. Repentinamente, e por comparação, descubro que os escritores portugueses são muito bons no ensino do seu ofício.

Patricia Highsmith não revela tal competência, ou tal ambição. Para já, como o título indica, não tem quaisquer preocupações em relação à literatura em geral, mas à criação do 'suspense'. Por outro lado, este seu livro é demasiado pessoal, e mesmo quando refere outros romances de outros autores, mantém como coluna vertebral a própria obra. É que Mário de Carvalho, pelo contrário, verdadeiramente não quer ensinar o que não é ensinável. Parte do seu empreendimento seria, portanto, irónica.  Mas não só. Porque, se não se trata de ensinar a escrever ficção, trata-se de fazer uma viagem pela melhor ficção portuguesa, apontando as perguntas que se não deve perder de vista e as soluções, frequentemente contraditórias entre si, que permitem outras tantas possibilidades. Highsmith escreve com um pressuposto diferente. No caso, o 'suspense' é uma arte; essa arte vive de uma técnica e, quanto mais não seja, qualquer técnica pode ser ensinada. Procura, portanto, mostrar o que aprendeu. Com a prática, principalmente, com as circunstâncias e com os erros. Admitindo o pressuposto e evitando mais comparações, o seu livro tem alguma coisa para oferecer.

Para 


quem lhe conheça a obra, torna-se interessante perceber a ideia de que cada um dos seus romances parte (a "semente"), em que medida uma semente contém uma estrutura e como pode esta desenvolver-se numa trama. O que são falsas partidas, o que é o ritmo, ou um início que impede o leitor de virar imediatamente as costas ao livro. Conselhos simples (demasiado simples, às vezes) desprendem-se, pois, de uma prática que nos nos deu alguns dos melhores romances de 'suspense' - e quem conhece Mr. Ripley sabe que não exagero. E contudo, como lembrava um amigo meu, para quem, precisamente, nos deu, entre outros romances, a genial série de Mr. Ripley, este é o "escrito " mais fraco de Patricia Highsmith.

terça-feira, 30 de março de 2021

CAMILO CASTELO BRANCO: CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO


 

Embora, julgo eu, tenha deixado menos leitores e epígonos do que um Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco é um autor que a lusa intelligentsia gosta muito de referir. Se ignorarmos a parte de snobismo que possa existir nessa preferência (e porquê? porque se trata de um autor marcante pela riqueza no uso da língua, com alguma exigência de acesso ao que oferece de melhor, pelo que dá sempre bom ar mostrar-se um familiar da sua obra), é uma preferência que faz todo o sentido. A linguagem é voluptuosa. Quando nos embrenhamos, torna-se de uma deliciosa fruição. Tem espírito. Tem uma ironia completamente diferente da de Eça de Queirós, de que também gosto muito. A sua imaginação na criação da verosimilhança e no intrincar das tramas não se gastou minimamente com o tempo. O registo de um narrador em conversa com o seu leitor (frequentemente a sua leitora) consegue criar uma inconsciente vontade de crer. O narrador pode ignorar algumas coisas, ou exagerar, ou confundir, mas é tão credível como um amigo em quem confiamos.

Camilo Castelo Branco é ainda genial tanto no seu romantismo, como no modo como, para ridicularizar o realismo, que nunca professou, ter escrito alguns dos romances realistas mais incisivos.


Coração, Cabeça e Estômago, como se depreende, é um romance acerca da evolução da disponibilidade amorosa de um homem, desde os seus anos de juventude, em que o órgão que o guia seria o coração, com as suas paixões incompreensíveis, passando pela maturidade, onde o cérebro e as suas maquinações interesseiras tomariam conta dos seus actos, fazendo das relações com as mulheres instrumentos para subir na vida, até à fase em que tudo o que se pede - e encontra  - é qualquer coisa a que não sabe se há-de chamar-se amor: a ternura feita do conforto e da familiaridade, sem palidez nem poesia. O encaixarem-se, digamos, um homem e uma mulher, para o resto dos seus dias.

  O narrador e protagonista é o sr. Silvestre da Silva. Mas todo o livro aparece impagavelmente "enquadrado" por um putativo editor, que o apresenta e vai semeando, em notas, desconcertantes e críticos comentários ao modo de vida e às opiniões do sr. Silvestre. E nesta dialéctica irónica se vai desenhando um livro que, de algum modo, se destrói a si mesmo.


Num excelente prefácio à edição que reli, Gonçalo M. Tavares colhe, à obra, o seguinte trecho que tão bem ilustra como o "final das frases desmonta, quase sempre, o elevado - mas falso - romantismo dos inícios":


É certo que eu, num dos meus passeios desabridos, quando o céu afuzilava relâmpagos, fui a caminho de Sintra, e vi na balaustrada de uma varanda, com os olhos postos no ocidente tempestuoso, uma mulher, que se me afigurou a pomba da boa nova ao quadragésimo dia do dilúvio. Retive as rédeas do cavalo, sofreei a respiração, contemplei-a com petulante ternura, e ela foi-se embora.

E, com este trecho, tudo fica dito.

quarta-feira, 17 de março de 2021

SOMERSET MAUGHAM: FÉRIAS EM PARIS

  Somerset Maugham - já o disse aqui, com toda a certeza -, sobretudo o dos contos, mas também o dos romances maiores (quem não leu e não guardará para sempre "O Fio da Navalha", por exemplo?), é um dos autores predilectos de minha mãe. Ela inculcou-mo desde criança, embora, para ser absolutamente sincero, o considere muito desigual: capaz de obras portentosas, que ferem e nos deixam marcados, e de umas novelas insípidas e pouco trabalhadas, diria eu que para fazer dinheiro rapidamente, mais do que por convicção. 



Saído, ou a sair, de um confinamento penoso, fui abastecer-me de livros - ah o dia triunfal da reabertura das livrarias! - e trouxe, entre muitos outros, de autores diversificados, Férias em Paris, de Somerset Maugham. Era Maugham e era Paris, era o cruzamento de dois amores, era o início da II Guerra Mundial com as iniquidades que os que a não sofreram não têm o direito de ignorar ou esquecer.


Na obra de Maugham a escrita é muito simples: nenhum trabalho "de Autor" sobre a linguagem. Não se trata de prender poeticamente o leitor, ou de o aliciar pelo poder da retórica.  Usa-se a linguagem como meio para narrar uma história.  Há um estilo inglês que, mesmo na tradução, se deixa reconhecer - e reconheço, sem ofensa, desde as Aventuras de Enid Blyton ou os crimes de Agatha Christie. 

Também profundamente "british" é a ironia: uma ironia sem acutilância, que não exprime cinismo, e sim, pelo contrário, uma certa simpatia pelas personagens. Revela apenas a consciência  daquilo de que, sobre si próprias, as personagens não têm consciência. Este suplemento de saber por parte do narrador, esta visão que põe continuamente em causa a visão que têm de si os Mason, do seu amor pela pintura ou pela música, do seu conhecimento de um Paris "típico", que os outros estrangeiros desconheceriam (impagáveis descrições), é o fio fino e elegante da ironia de Maugham.


Os vilões de SM, que nunca verdadeiramente o são  (e até por isso) parecem viver e respirar ao pé de nós. Conhecemo-los, compreendemo-los até certo ponto, por muito que nos irritem, reconhecemos-lhes o comportamento daqui, dali, deste ou daquele. São consistentemente plausíveis. Basta pensarmos em "Servidão Humana". Daí que, precisamente, uma personagem como Simon Fenimore nos decepcione. Nunca a entendemos completamente na sua agressividade e na "abstinência física e emocional" com que recebe o seu amigo em Paris. Aqui, ao contrário do melhor de Somerset Maugham, algo de artificial e inverosímil acaba por se instalar e predominar. O que não destrói os aspectos mais interessantes do romance: a relação de Charley com a jovem Lydia, vítima da revolução russa, e a sombra implacável da Guerra. Essa Lydia, a jovem prostituta, que afinal não tinha o título de princesa nem se chamava Olga, como os clientes julgavam, mas era efectivamente russa, e nos contará a sua trágica história em monólogos de demasiadas palavras. (A sua história e a do marido que sempre amou, esse sim, um vilão completo, apesar de ser construído com alguma artificialidade, também). E essa Guerra que era já um destino, embora se acreditasse ser possível viver como se não. 

P.S. Mas seria injusto não acrescentar que uma outra leitura, em que se destaca a oposição entre a cultura russa, quase na forma como Dostoievski no-la mostra, niilista e apaixonada, e a visão de uma média burguesia inglesa, confortável, acreditando conhecer a Arte, mas não raspando, dela, senão a superfície, a partir de ideias feitas, como que faz aparecer à tona um romance muito, muito mais interessante. E, desse ponto de vista, o fim de Férias em Paris é um twist profundo e maravilhoso.

sexta-feira, 12 de março de 2021

JOEL NETO: ARQUIPÉLAGO

 

O que parece que em todos os comentadores caiu mais fundo nesta obra foi a experiência da insularidade e de quanto, no arquipélago, marca os seus habitantes, sofridos, temerosos e resilientes (oh! meu Deus, sabia que um dia me custaria evitar esta palavra), e é claro que esse carácter é, aqui, ensurdecedor. Mas, se não se importam, gostaria de começar por outro lado. Os diálogos.



Desde há muito que farejo, nos diálogos de um romance, um critério de qualidade. Em discurso directo ou indirecto, ou entretecendo um misto, como em Saramago e em Bassani (ah, em Bassani existe uma forma curiosa, a que chamaria "quase-directo"), ora longos e prolixos, como nos franceses e nos piores autores portugueses, ora curtos e realistas, como nos norte-americanos, a forma de pôr as personagens a falar entre si é reveladora. Não detestam também aquelas que peroram literariamente? Bem. Grandes escritores caem nessa tentação.  Conrad, por exemplo. Mas é outra coisa: o que eles aí tentam é o mesmo que a ópera. Não tanto manter a credibilidade, e sim dar azo ao prazer meramente estético da melodia e da retórica. Divago. Voltemos ao ponto: conseguir pôr pessoas a falar como se as estivéssemos, de facto, a ouvir falar, é difícil. Exige um trabalho de cortar o que se gostaria de manter, mas ninguém usaria oralmente. Joel Neto é um dos poucos autores portugueses que o conseguem. Com simplicidade. Sem artifício. Lemos e estamos a ouvir.


Mais do que isto, há, em Neto, um domínio eficaz da história e dos recursos para a tornar interessante, que alguns escritores portugueses da nova geração mostram - mas não todos. A percepção de que um romance não se reduz à  linguagem, ou não tem de apenas o ser, mas implica a narrativa, a acção, as surpresas, o suspense. Os Tordo ou os Hugo Gonçalves, por exemplo, procuram esse contar visível, cinematográfico  (e não uso levianamente a palavra. Trata-se de, precisamente, ter visto muito cinema ou ter escrito para cinema). Um romance de Joel Neto tem, também, essa narratividade.


Em Arquipélago tudo principia, na casa que pertencera ao avô e em que José Artur quer fazer obras, com a macabra descoberta dos ossos que formariam o esqueleto de uma criança. Uma menina. José Artur sabe quem é: quem mais senão a rapariga que, na sua infância, após um terramoto, viera viver com eles, na casa que o avô recomeçara então a construir? Quem senão Elisabete, companheira de aventuras caída do céu? Porém, o que revelaria, tantos anos volvidos, o surpreendente desenterramento das ossadas? Será que se desenterrava, ao mesmo tempo, o crime do avô? O que acontecera realmente? E o que saberemos do que aconteceu?


Por outro lado, José Artur, professor pouco entusiasta de História, regressara aos Açores com outro objectivo: o de usar, para a sua tese de doutoramento, que tarda, uma ideia, uma crença, digamos. A de que certas manifestações culturais - associadas aos monumentos funerários que encontrará junto a uma pequena povoação, na "Grota do Medo" -, para que o haviam despertado algumas cartas, muito antigas, de um viajante inglês, casualmente descobertas numa escrivaninha que tinha comprado, e onde se referiam estranhos e assustadores costumes no interior de uma das ilhas do arquipélago, justificariam a defesa da suspeita de que teria existido um povo muito anterior aos que a História rastreou, quem sabe se de uma ilha desaparecida: aquilo para que, durante a investigação, guardará o nome impreciso e simbólico de "Atlântida".


E é neste cruzamento de factores em que José Artur se encontra no retorno aos Açores, promissor académico hoje caído praticamente em desgraça, entre um filho que talvez não seja demasiado tarde para recuperar, uma senhoria por quem se sente secretamente apaixonado, a tese em que é o único a crer, a memória do avô e da criança que ele talvez houvesse matado, que se prepara um romance acerca de um homem que não sente os sismos - por simbólico que possa ser essa peculiar "insensibilidade", talvez a parte mais fantástica e escusada no romance.


Concluo também  com o que, em todos os comentadores que tenho lido, se tornou consensual, relativamente à obra de Joel Neto e a este romance em particular: a afirmação de uma escrita e de uma visão que, de Vitorino Nemésio a João de Melo ou a Onésimo Teotónio Almeida, desenhou e reteve a singularidade solitária da sensibilidade açoreana. Em Arquipélago, desde a descrição da paisagem e dos sentimentos que ela evoca, ou à iminência do sismo, com que cada um vive sempre, e ao sotaque de pessoas cuja fala brusca é, porventura, uma forma de fechamento, até à referência detalhada aos pratos, aos alimentos, à sua importância, tudo são sinais de um outro sentido, de um outro sagrado, de uma verdade dificilmente transmissível.

quarta-feira, 10 de março de 2021

GIORGIO BASSANI: O JARDIM DOS FINZI-CONTINI



 N'O Infinito num Junco, descobri a referência a este livro de que nunca ouvira falar. O jardim era mencionado como símbolo de uma experiência maravilhosa  - o lugar aprazível em redor da mansão da família Finzi-Contini, onde o grupo de jovens amigos de Albert e Micol se reunia para passear entre as árvores, rir ou discutir, provar as bebidas ou sanduíches que lhes eram servidos e, sobretudo, disputar aguerridas e divertidas partidas de ténis -, mas que, um dia, haveria de se encerrar para os visitantes. Cada um de nós pode imaginar-se como convidado.  Gozaríamos da companhia e do jardim, que alguma vez, porém, se fechariam irrecuperavelmente para nós, e não nos restaria senão recordar.


A ideia tocou-me. Encomendei-o (já existiu numa tradução publicada pela Bertrand, que, entretanto, ao que parece, desapareceu de todo: aquilo para que agora está em voga usar o verbo "descontinuar"; encomendá-lo foi, pois, mandá-lo vir, após uma pesquisa demorada, de um alfarrabista no Porto) e tive o prazer de o achar, há pouco, na minha caixa do correio.


Li-o em duas noites. É um daqueles livros italianos, muito, muito bem escritos, com qualquer coisa de Il Promesi Sponsi ou de Il Gattopardo, embora sejam dois romances diferentes entre si e diferentes, ambos, daquele sobre que falo: na época, nas personagens, no enredo. E todavia, perceberão que secretos veios os unem, a que espírito da cultura e da língua italiana vão beber.


Os Finzi-Contini são uma família judia que o romance encontra pouco antes do início da II Grande Guerra. As leis de discriminação racial com que Mussolini procura agradar a Hitler vêm transformar as rotinas e a vida dos judeus italianos. Podemos perguntar-nos, é mesmo inevitável, por que razão os mais abastados não  terão partido, não demandaram outros países que os acolhessem. Mas compreendemos a dificuldade e o pânico do que seria o total desenraizamento para famílias vivendo há muitas gerações na sua terra; compreendemos a esperança, com os olhos postos no teatro internacional de alianças que se faziam ou desfaziam, de que tudo pudesse ainda mudar - não o anti-semitismo, que é mais antigo, talvez indissolúvel, mas aquela nova forma, assumidamente violenta e persecutória, de anti-semitismo; compreendemos a falta de alternativas. Não estávamos lá.  Compreendemos sem verdadeiramente compreender.


O cuidado e a importância, neste romance, de uma  descrição que valoriza os lugares, os quartos, a disposição dos móveis, os objectos na casa, procuram - e conseguem - apresentar-nos a propriedade, a posse, como uma garantia ou como a própria forma do bem-estar burguês. Sob o halo da memória saudosa de um narrador já longe desse tempo e desse mundo, é o brilhante modo de vida de condenados, que só ainda vagamente podiam pressentir tudo quanto o futuro lhes reservaria, o que esse detalhe na descrição nos faz reviver esplendorosamente.


Depois, notemos a subtileza e a contenção como estruturantes do romance.  Explicá-las com pormenor seria sem dúvida dizer de mais. Mas vejam como tudo na história são possibilidades que o narrador nunca desvenda inteiramente: as suas suspeitas (de que o leitor não poderá estar certo), ou até aquilo que o leitor julga adivinhar (mas de que o próprio narrador parece não suspeitar). Em cada momento, pensamos que poderiam, ou não, ter sucedido acontecimentos que explicariam os actos e as reacções de personagens - mas são apenas sugestões, vislumbres, interpretações. Ao contrário do fim da leitura de um policial, estamos destinados a fechar o livro com todas as dúvidas. E o jardim que frequentámos, mas de que fomos expulsos, como fomos expulsos do paraíso, será para sempre o mistério longínquo de uma paixão impossível.

sábado, 6 de março de 2021

ITALO CALVINO: SE NUMA NOITE DE INVERNO UM VIAJANTE

 Se Numa Noite de Inverno um Viajante é um romance que não é, realmente, um romance: não só porque o que esperamos que seja uma história, quando começamos a ler, se vai quebrando em sucessivas novas histórias, sem fim (o fim nunca interessa: cada uma é apenas a porta de abertura para um novo quadro), mas porque o leitor e o próprio livro que ele segura nas suas mãos estão sempre presentes. O pacto deveria ser outro: que o leitor se esquecesse de si, de forma a acreditar no que lhe é narrado, como um espectador invisível, e o livro se tornasse um meio tão sem corpo, que o ignorássemos, para que de tudo o que o constitui - uma capa, folhas, caracteres - não houvesse mais do que o conteúdo: mudaríamos de mundo, "veríamos" aquelas paisagens, "ouviríamos" os diálogos, "assistiríamos" ao desenvolvimento da acção, sentindo frio ou calor, medo ou prazer. Mas o propósito de Italo Calvino é outro: trair o pacto. Tu és um leitor; foste a uma livraria porque ouviste falar na última obra de Italo Calvino; passas por livros que te desinteressam ou te interessam pelas mais diversas razões. Folheaste-o na livraria, ainda? Era-te impossível fazê-lo, porque estava envolvido em celofane?

O que é extraordinário nessa traição, nessa quebra de um pacto, é a forma como ironicamente nos quer iludir, nunca o querendo, na verdade, e nunca nos iludindo: mesmo no momento em que nos é apresentado um cenário em que, aparentemente, terá início uma certa acção de determinadas personagens, se nos recusa a invisibilidade de espectadores. Parece que o cenário está a ser montado diante dos nossos olhos. E nunca podemos esquecer que esse cenário é uma escrita numa página de um livro: "Alguém olha através dos vidros embaciados, abre a porta envidraçada do bar, tudo está enevoado", muito bem!, mas não deixemos a imaginação entusiasmar-se, porque são "as páginas do livro que estão embaciadas", e "é sobre as frases que a nuvem de fumo pousa". Mesmo a apitadela semelhante à de uma locomotiva, o que é já um engano, porque provém, afinal, da "máquina de café  que o velho dono do bar utiliza sob pressão", traduz até um duplo engano, porque, é claro, só existe "devido à sucessão das frases do segundo capítulo".

 

O que resulta desta ironia, li algures, não é um romance, mas um tratado (travestido de romance) sobre a escrita do romance, e a esta ideia acrescentaria: e sobre o acto de ler.


Se Numa Noite de Inverno um Viajante é uma das obras mais bem urdidas e aliciantes que eu já li. Em nenhum momento esta ambiguidade cessa de nos surpreender ou nos desanima. É um jogo de espelhos: porque, evidentemente, o leitor que eu sou no livro, não é o leitor que efectivamente sou; trata-se ainda de uma personagem, de uma ficção, com a qual só me confundo como a criança que finge ser um soldado, ou um cóboi ou um índio, acreditaria realmente ser esse soldado, ou esse cóboi ou esse índio. Aliás, observem que o leitor, que seria eu, nem sequer tem direito ao eu - o pronome é, desde o primeiro momento, usurpado por uma personagem que, numa gare, se me dirige a mim, leitor, na sua qualidade de ser fictício, qualidade de que está perfeitamente consciente. Ouvimos (ou lemos) esse autodenominado "eu", sobre o qual não se conhecem outras características - mas que não é o autor, nem é, como vimos, o leitor - e nos vai explicando o que faz no texto, num texto literário, num romance. Porém, esse eu que não eu desaparece (teria havido uma troca com um outro romance durante a encadernação do livro, na tipografia, de modo que aquela não é a história que compráramos) e o leitor regressa à livraria, onde acaba apaixonando-se por uma jovem na mesma situação: os motivos pelos quais saltamos de um quadro para outro são, no fim, a própria história. Em cada novo quadro, em cada princípio de uma nova história, totalmente diferente da anterior, apresenta-se-nos um outro "eu", que nunca é o autor, nunca o leitor, e nada tem que ver com o eu do quadro anterior.

Por sua vez, cada quadro segue, rigorosamente, um modelo narrativo próprio: ora o romance de aventuras, um policial, digamos, ora um romance como Guerra e Paz, com as dificuldades típicas, para um não-russo, da leitura de um romance russo - os nomes que não fixamos, e são usados de modo diferente, as personagens excessivamente fogosas  (sendo que, como descobrimos, não será um texto russo, mas polaco, e afinal não polaco, mas cimério, e porventura não cimério, mas..), ora um romance no tom confessional dos diários, e por aí adiante.


Sonhei com isto. Literalmente. Sonhei que Italo Calvino respondera: "O romance conseguido é o que da unidade vai extraindo múltiplas e diversas partes, até regressar à sua unidade."

É uma boa definição de um livro maravilhoso.

quinta-feira, 4 de março de 2021

MÁRIO DE CARVALHO: BURGUESES SOMOS NÓS TODOS OU AINDA MENOS

 O título, pedido emprestado a um poema de Cesariny, é indicadíssimo para esta reunião de contos, e indicadíssimo em dois sentidos: porque o que se respira em cada um deles é o envelhecimento de um mundo que já foi o de um esplendor burguês; e - interpreto eu - como antecipação de, e resposta a, uma previsível crítica ao Autor: a de que ele tivesse trocado uma prosa de combate (que nunca o foi numa acepção panfletária, ou neo-realista, mas não deixou de o ser enquanto narrativa das várias formas de luta entre David e Golias), por breves episódios, sem conflitos nem desigualdades, nada senão o reencontro da memória com um presente que busca, impossível e ridiculamente, manter o passado, ou refazê-lo, ou imitá-lo. Burgueses somos, no fundo, todos. O que escreve e as suas personagens, os que o lêem e os que criticam. Ou ainda menos. Quase sempre "ainda menos", quando o Autor pretende dar-nos a ver aquilo em que tudo o que é burguês se torna. É a decadência. 




Começo por um ponto que não será consensual: numa língua de prosadores tão bons, seria um exercício arbitrário e medíocre procurar-se o primeiro; não sei dizer se Eça de Queirós é o melhor escritor em português. Mas na sua qualidade de descobridor do uso mais aguçado desta língua, para a composição de um olhar dolorosa e comicamente irónico sobre os portugueses, Eça de Queirós é imbatível. Inventou uma língua nova dentro da língua portuguesa, uma especificidade da ironia-em-português, que se reconhece à légua e tem, felizmente, herdeiros. Mário de Carvalho é um deles. Se fizerem o favor de seguir o trecho que transcrevo, dir-me-ão o que pensam do assunto:


O moço resistente, de fronte límpida e peito feito, solicitado pelas colegas, respeitado e estimado por todos, aqui jazia, de casacão de felpa azul de trazer por casa, com voltas e punhos de veludo vermelho, um corpo dobrado e flácido, palidíssimo, tremebundo, de olhar vazio, descaído, resignado contemplar de longe, duas farripas de lenço, retorcidas, descaindo dos bolsos das calças, adversos ao protocolo habitual dos lenços em salões burgueses.


O humor de Mário de Carvalho é terrível. Surge às vezes, quase sempre, da laboriosa edificação de uma derradeira ilusão, que parece aguentar-se de pé, até um pormenor final; uma estocada: a percepção da fralda da incontinência, assassina de uma última esperança romântica, num dos contos, como exemplo e símbolo do que quero apontar. A amargura da carne que se esboroa, da mente que se debilita e confunde, dos órgãos que nos tornam dependentes. Isto é apenas trágico, claro. O cómico destas extraordinárias tragicomédias está em um narrador que não reparou no hiato temporal, ou não o levou a sério, e que, de cada vez, se prepara para rever os e as que brilharam no seu passado. É a busca de uma eternidade na nossa condição finita. É muito triste. E é irresistivelmente cómico, que se há-de fazer?

quarta-feira, 3 de março de 2021

DEBORAH TANNEN: YOU JUST DON'T UNDERSTAND


 

Desde sempre que me lembro de folhear uns livros pouco volumosos, ilustrados com cartoons, acerca das pretensas diferenças (e consequentes dificuldades de compreensão mútua) entre mulheres e homens. Títulos como "Os Homens são de Marte, as Mulheres de Vénus", dizem-me alguma coisa.


Esta obra de divulgação baseia-se em centenas de observações e tem, subjacente, uma teoria científica. A de que, em última análise, homens e mulheres estão destinados a desentender-se porque, não só os seus objectivos na comunicação divergem, como o próprio significado das palavras ou dos gestos, quando falam, dependem inteiramente de contextos que não são lidos da mesma forma e de expectativas que não coincidem. Aparentemente, nada de original nesta tese; diria que ela nos é intuitivamente familiar. Anedotas acerca dessa incompreensão, desse "You just don't understand", abundam. O problema reside em que estas diferenças "subjazem" à comunicação, nunca são verbalizadas nem reconhecidas. Julgando, cada um, que a sua mensagem é clara e compreensível, ignoram ambos (a mulher e o homem) que o que dizem é sempre ouvido pelo outro através de uma espécie de refracção. 


Não sei até que ponto concordaria, mas também não sou um exemplo tradicional: criado entre mulheres, convivendo e apreciando a convivência com mulheres, terei desenvolvido outros radares e outros instrumentos de leitura da sua maneira de estar e de falar. Não me queixo de incompreensões dramáticas, ou de equívocos que não poderiam surgir igualmente entre mim e outro homem. O que não impede que, em geral, o trabalho de Deborah Tannen seja impressionante e muito convincente.

Impressionante porque os registos dos diálogos entre raparigas entre si, e de rapazes entre si, desde o jardim de infância, ou das primeiras classes e do secundário, e de mulheres entre si ou homens entre si, mostram padrões muito específicos: o género feminino procurando sempre o estabelecimento de uma "intimidade" a que o género masculino parece avesso, ou com que se sente desconfortável. A maneira de as meninas, e as mulheres, serem amigas vive e exprime-se na necessidade dessa esfera íntima, dessa comunicação e reconhecimento de sentimentos, essa partilha, que entre rapazes, (repito: desde pequeninos) ou homens, se realiza antes na brincadeira e no evitar de um excesso de exposição emocional e afectiva. Não apenas "no" que se diz, mas na posição, no olhar (as meninas recorrem aos olhos-nos-olhos, que, entre os meninos, indicia quase sempre o confronto), nos gestos.


A propósito de não me lembro já que tema deste livro, uma amiga a quem eu o expunha, entusiasmado, respondeu-me: "Que disparate!" - desmontando o argumento com casos práticos, referentes a si e a várias outras mulheres, suas amigas ou conhecidas.

É, seja como for, um livro interessantíssimo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

NABOKOV E DURAS: LOLITA E O AMANTE


 

Lolita é, por várias razões, um livro extraordinário.  O Amante também. Mas ambos são romances politicamente incorrectos, assumindo a pedofilia como centro e, portanto, ainda que a ponham em causa, ainda que os leiamos como a sua crítica moral - e nem sequer é líquido que seja essa a pretensão de qualquer um deles -, não o fazem nem podem fazê-lo sem entrar nos protagonistas, sem até certo ponto os compreender [empresa arriscadíssima do ponto de vista dos costumes: criar alguma forma de compreensão dos sujeitos, logo, dos actos, que queremos repudiar como absolutamente infames].


Mas há, entre os dois, uma diferença abismal. Essencial. Enquanto Lolita se desenvolve do ponto de vista de um narrador que é, simultaneamente, o sujeito do desejo, contando-nos, sem arrependimento, o seu amor indigno, adulto e masculino, por uma ninfeta, O Amante introduz um outro ponto de vista. A narradora será, agora, a vítima. Mas a vítima, de facto? 


A menina de quinze anos e meio que inicia a relação com um jovem de vinte e sete, desculpa a sua queda com diversas justificações, umas explícitas, outras subentendidas. Não se trata de amor. É a oposição à mãe, o ciúme antigo e dissolvente em relação ao amor dessa mãe pelos dois filhos-rapazes, é ainda, estranhamente, a necessidade de proteger, da pobreza envergonhada, esta família que se devora a si própria.

Mas cedo percebemos que estas justificações só podem ir até um certo ponto - daí em diante tornam-se má-fé, alibis de uma outra coisa, completamente diversa. E, aliás, essa "outra coisa, completamente diversa", nunca se nos esconde. Está lá.  Nominável, nomeada. É o desejo. O desejo da vítima, que em todos os actos se exibe, e seduz, não ainda inteiramente consciente de que o faz, mas apropriando-se dessa consciência e comprazendo-se nela.


Make no mistake: o culpado é sempre o adulto, e em nenhum momento quero que este post consinta ou alimente equívocos. Mas que, precisamente, a narradora conte a história do ponto de vista do seu próprio desejo, e nunca do da vitimização, apenas transforma uma obra publicada em 1984 num romance mais perturbador, porque se move na obscuridade onde todas as certezas claudicam e as respostas são respostas com o travo do pecado, as únicas possíveis a pessoas que o anjo para sempre expulsou do paraíso.