terça-feira, 30 de junho de 2020

ALASDAIR MacINTYRE: AFTER VIRTUE


Num país como os EUA, mesmo corroído por sinais dos vírus da desigualdade e das contradições que conduzirão a civilização, na sua forma actual, ao abismo, conseguimos encontrar, em todas as áreas, o que de melhor se faz, pensa, cria, escreve. Até em ramos onde os norte-americanos foram sempre secundaríssimos, vemos universidades que investem, estudantes e professores que recebem bolsas, investigadores que contam com um apoio digno. Há traduções de obras que dificilmente são traduzidas na Europa, já para não referir Portugal em concreto. Há publicações novas, estudos recomendáveis e uma vitalidade surpreendente.

Na filosofia, assim é.  E meu primo, outra vez nos EUA, continua a ser o Virgílio que me guia, chamando-me a atenção para recentíssimas traduções de textos pouco lidos e pouco conhecidos de Nietzsche (sobre os pré-platónicos, não os pré-socráticos, como nos habituámos a designar), ou, por exemplo, o extraordinário "After Virtue", de MacIntyre, que leio com a lentidão que o inglês me exige e se torna, na verdade, o ritmo certo para a leitura da escrita filosófica. MacIntyre é um escocês cujos ensino, reflexão e publicação ganham, nos EUA, o investimento e a visibilidade que merecem.

Mesmo quando não concordamos (e as ideias são tão refrescantemente originais que, acerca da sua maioria, não sei ainda se concordo, se não) leio-o com a sensação de um funâmbulo que se move sem rede por baixo de si: interrogando-me, revendo-me, reavaliando quadros que dava por estanques.

Trata-se de uma obra sobre filosofia moral. A tese é que, desde as Luzes (e em grande medida, por causa do projecto das Luzes) os pensadores da moral e o cidadão comum perderam o que seria a base que sustentaria a possibilidade de um autêntico pensamento moral. Visando, por um lado, destronar qualquer fundamentação religiosa da ideia do bem e do mal, visando, por outro lado, renunciar a um "telos", a uma finalidade do humano que justificasse o bem como sendo o cumprimento desse fim, os filósofos dos séculos XVII e XVIII ficaram-se por uma linguagem moral que herdavam do passado, mas despojada do conteúdo que queriam rejeitar, e procurando oferecer-lhe a autonomia racional como único suporte.

Kierkegaard seria, na leitura de MacIntyre, o primeiro a compreender que não é possível justificar, pela razão,  o bem e o mal. Essa tentativa iluminista está votada ao fracasso: diferentes argumentos racionais podem fundamentar consistentemente diferentes e opostas posições morais. Ou seja: justifico racionalmente o bem por que optei, mas não posso justificar de início a minha escolha desse bem, ao invés de um outro, que poderia justificar de uma forma igualmente coerente.

Um elemento de arbitrariedade, um salto sem razão,  estaria, pois, na génese de qualquer moral. As consequências desse desfasamento são inúmeras, e a sociedade é hoje, nos seus choques e conflitos morais, a evidência dessa incapacidade para fundamentar uma escolha. O emotivismo, que alastrou como critério maior, e MacIntyre tão duramente critica, tem-se anunciado como uma das formas de colmatar essa falha, a sem-razão inicial de todo e qualquer ponto de vista moral.

A proposta do autor, nunca ligeira, sempre cuidadosa e rigorosamente fundamentada, ainda quando nos pareça errada, defende um retorno, de algum modo, a Aristóteles. Isto é,  à ideia de um enraizamento num contexto histórico e social (suportado por uma concepção da natureza humana) que delimite um "telos", um fim sobre cujo horizonte possamos dialogar, e discordar. O que é ser um bom humano, que fim nos completaria como seres humanos e em que medida os nossos actos nos dirigem para essa realização: tais as perguntas, segundo MacIntyre, sem pensar as quais qualquer moral será uma casca vazia, o uso de uma linguagem e de valores que herdámos, mas não podemos inteiramente justificar.