quinta-feira, 5 de novembro de 2020

CORTO MALTESE: AS CÉLTICAS

De facto, nem sempre gostei de Corto Maltese. Era um garoto de 13 ou 14 anos quando lhe fui apresentado, nas páginas do saudoso semanário Tintim, que formou tantos jovens portugueses na beleza clara da banda desenhada franco-belga. Abençoados sejam Vasco Granja e Dinis Machado, que conseguiram fazer-nos conviver com 3 personagens de 3 revistas diferentes (Tintim, do magazine belga "Tintim"; Lucky Luke, do belga "Spirou"; e Asterix, do francês "Pilote"). Aí me inspirei, para aí escrevi cartas em que dava conta do meu desejo de me tornar desenhador, aí vivi aventuras inesquecíveis e gloriosas, afoguei frustrações e esqueci amores dolorosos de uma adolescência vivida entre complexos e pouca confiança. Corto Maltese não veio logo. Apareceu nos últimos anos da revista. E não me rendi imediatamente. Havia explicações demasiado longas nas próprias pranchas, referências históricas e culturais que ainda me não despertavam, e um desenho a preto e branco, austero, esquemático, que não me atraía. Deixava Maltese para o fim. Lia todas as outras e, por fim, vá lá, entregava-me ao marinheiro-pirata. 

O que me foi conquistando? Sei perfeitamente. Primeiro, alguns diálogos, um certo sarcasmo de várias personagens, uma ironia constante de Corto Maltese. Depois, a história. Parecia-me confusa, labiríntica, perdia-me (como, mais tarde, em alguns romances russos), mas quando detectava o fio, e me agarrava a ele, como a uma melodia, era difícil não sentir que a minha curiosidade e a minha imaginação se viam preenchidas por uma matéria que as alargava, as esticava, rebentava com elas. Finalmente, devo dizer, o próprio desenho. Não era esquemático, mas deliberadamente reduzido ao essencial, a uma essência magnífica, por um trabalho genial sobre o claro e o escuro, o branco e o negro, a sombra e a luz. As figuras, os movimentos e as paisagens não se tornavam diminuídos, mas engrandecidos por essa concentração reveladora, esse dom de os tornar mais autênticos. 

Nesta fase de adulto sofisticado (hehe) confesso que as minhas predilectas são as mais complexas e fantásticas. Mas ando a reler os álbuns que a biblioteca da escola adquiriu, com o intuito de preparar uma actividade que desperte os alunos para esta personagem. E, neste caso, começo por "As Célticas". São mais simples, contêm um elemento de fantasia que desconcerta, mas, na verdade, algumas são brilhantes. Sempre com um traço de ambiguidade: o traidor que afinal o não é, o herói e mártir sob cuja imagem popular se oculta o verdadeiro traidor. 

Chamam a Corto Maltese um «anti-herói". Sei porquê. Hoje sei porquê. Em jovem, escapava-me o sentido do termo aplicado a quem, para mim, se tornava, paulatinamente, um herói. Mas o seu romantismo que nenhuma mulher preenche (as mulheres são aqui, por outro lado, de uma liberdade e de uma profundidade raras em histórias em quadrinhos), o seu gosto um tanto imoderado por riquezas (CM move-se frequentemente em busca de tesouros, por causa dos quais viaja e enfrenta perigos desmesurados), a sua humanidade excessivamente presente (ainda que se tratasse, em todos os casos, da humanidade no seu melhor), a sua fragilidade, mal disfarçada por uma ironia contínua, fazem de Maltese um ser com dúvidas, descrenças, corajoso, mas não poderoso de mais, eticamente íntegro, mas, pensando bem, imperfeito.