quinta-feira, 28 de março de 2019

RUI LAGE: O INVISÍVEL



Principio já por dizer, evitando qualquer suspense, que O Invisível, de Rui Lage, acaba, ao fim de um certo tempo, por nos conquistar: ao fim de um certo tempo, repito, e contra nós próprios, acrescento. 
Três aspectos do seu romance têm a responsabilidade de um inicial torcer de nariz, uma resistência inevitável.
Um deles é puramente estilístico: alguma coisa na escrita de Rui Lage parece antiquada e forçada. Um excesso de requinte torna a leitura fastidiosa - por exemplo, a inexistência de um artigo, em frases como «exerciam intenso fascínio», «entrelaçados em teia impenetrável» ou «não era porque temesse reprimenda paterna»; isto e certas outras frases feitas, também desusadas (concretizemos: "O caudal cristalino não deixava entrever fundura que merecesse por ora inquietações"), indispõem o leitor; diga-se, entretanto, que no meio dessa rigidez de estilo, vão logo disparando e pedindo atenção algumas imagens e metáforas que são achados.
Outro é o início, propriamente dito: aquele abrir da narrativa com a evocação de um Pessoa adolescente, em Durban, perdido por florestas onde uma ama negra o iniciava na feitiçaria, parece-me desajustado e contraproducente.
A terceira reside na história, que, durante muitas páginas diríamos que se vai confrangedoramente definindo como uma aventura simplista, sem densidade, que usa Pessoa porque sim (um Pessoa detective do Oculto, fraudulento e manipulador, ainda que com remoques de consciência que o fazem enojar-se dos seus embustes).
Até à descrição da chegada dos dois viajantes à aldeia, todos os capítulos vêm confirmar esta análise.
Curiosamente, a partir daí, o narrador muda de casaco, ou de pele, ou de olhos. A apresentação dos encontros com as pessoas da terra, bêbedos e beatas, que nunca são apenas a rudeza brutal que nos dão a ver, sempre sob efeito de um medo ancestral do novo e do diferente, começa a ganhar-nos. Interessamo-nos. Mudámos de livro? O receio e a crueldade relativamente a Palmira, que a aldeia escorraça e trata como uma bruxa, traz uma profundidade que já não esperávamos. A entrada do pároco, com as suas contradições psicológicas e religiosas, que nem por isso o tornam um homem e um sacerdote menos interessante, tangem outras cordas. A sua generosidade, a sua compreensão das gentes e a sua cobardia, expõem-nos uma personagem cuja empatia e fraquezas aproximam - se não da nossa empatia, certamente das nossas fraquezas.

Certo que o desenvolvimento desagua em complicadas e pouco convincentes águas espíritas, com breve despertar de mortos e contacto com não sei que entidades de outras dimensões.

Se considero que o prémio atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores é merecido? Vou confessar tudo. Entre os três candidatos, o meu livro preferido era e é Os Fios, de Sandra Catarino, um romance absoluto. Fosse eu arrogante, e lamentaria que o Júri se não tivesse apercebido dessa secreta jóia que, na qualidade, não tem rival. Não o sendo, admitirei que o meu gosto possa não constituir lei. E, bem vista a coisa, O Invisível, de Rui Lage, acaba não fazendo fraca figura: é um bom romance.