segunda-feira, 16 de março de 2015

ROBERT M. PIRSIG: ZEN E A ARTE DE MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS


     Um amigo meu com interesse e sentido de humor, biólogo que não desdenha visitas amorosas à filosofia, andava lendo, há algum tempo - na língua original - Zen and the Art of Mortorcycle Maintenance. Percebi o seu entusiasmo. Prometeu que mo emprestaria assim que o acabasse. Fê-lo.

Há uma antiga tradução para português, na Presença. Mas mesmo essa não é facilmente encontrável, a não ser em alguma biblioteca ou encomendando-a. Inicio a leitura e compreendo a euforia do meu amigo, ainda que não seja um livro feito para ele. Não o digo com arrogância. Não é provavelmente um livro feito senão para uma pessoa, e essa pessoa sou eu.

Cada leitor terá a sua própria experiência, até certo ponto intransmissível. Mas Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas baralha o maço das questões que mais importância têm ganhado para mim na complexa fase da vida por que passo; por um lado porque me identifica - e com que pormenor: sou mesmo eu! - como uma personagem: alguém que se distancia criticamente da tecnologia, infeliz sempre que tem de lidar com ela, evitando quaisquer novidades, resistindo aos progressos que melhorariam significativamente a comodidade do seu quotidiano; pessoalmente, preferi sempre que houvesse um mecânico, um técnico, um especialista ou uma amiga devotada para consertar as avarias e repor nos carris [frequentemente através de operações muito simples] o que, nas minhas patas, tende a descarrilar. Por outro lado, o autor que me interpela e interroga sobre a inépcia que a cada passo revelo, fá-lo a partir do meu território. O que é perturbador. Ou seja: a sua reflexão constitui-se na familiaridade com os filósofos, os antigos ou os modernos, Platão, Descartes, David Hume ou Kant [e devo dizer que, acerca dos Antigos, reformula em termos extraordinariamente inovadores e interessantes o derradeiro sentido da luta entre Sócrates - o mesmo seria dizer: Platão - e os sofistas, com o desenho final de Aristóteles, responsável pela nossa compreensão, porventura errada, dessa luta, e suas consequências para a História da filosofia.] : é à luz das ideias dos filósofos, que se analisa a inabilidade, para a tecnologia, de certos artistas e de certos intelectuais, mostrando que se trata de um divórcio imbecil, inútil, equívoco e empobrecedor.

Robert Pirsig foi um destrambelhado. Num certo ponto do seu passado, o professor de retórica seguiu tão radicalmente as próprias questões, que se afastou do mundo entendido como denominador comum, aquele em que nos encontramos e comunicamos uns com os outros, ou seja: «enlouqueceu». Chegou a ser internado. Entretanto, anos volvidos sobre essa crise, mudou: tornou-se um burguês envelhecido e mais gordo, que se desfez de quem já foi, e do que então pensou e criou. No ponto em que a narrativa tem o seu início, Pirsig (mais o seu filho e um casal de amigos) reconstitui o percurso do seu outro eu, como se perseguisse um fantasma, a que chama Fedro: o professor que se passeava pelas margens da loucura [até que enlouqueceu mesmo]; o homem que se não instalava na vida e não temia a incompreensão nem o opróbrio; o que procurava o sentido de tudo com a seriedade que só entrevemos em crianças que brincam. Chris, seu filho, e os Sutherland, que o acompanham em moto, não compreendem este refazer de um caminho por poisos que já visitou. O próprio Pirsig não se lembra bem: às vezes tudo o que lhe sobra são vislumbres, fragmentos de imagens da mente de alguém que já não é ele, memórias em que não habita confortavelmente, ou que o não habitam, como se lhe proviessem de um longínquo outrem.

Não há romance: trata-se de uma narração verídica; em vez de trama, um problematizar contínuo, em ensinamentos que aqueles que o circundam não entendem, e com os quais o leitor se sente muitas vezes incomodado. Atrever-me-ia a escrever "mudado", se não soasse tão hiperbólico; mas aí está: é na medida dessa mudança, minha, que me parece estar a falar de um livro que teve um impacto específico sobre mim, como se me visasse unicamente a mim mesmo.      

Antes de se ter tornado o "romance filosófico" mais lido e comentado de sempre, Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas foi rejeitado por cento e tal editoras. É um facto! Não sei se realmente me anteviu como futuro leitor - sei que certamente não encontrou, em nenhum de cento e tal senhores editores, o leitor que o merecia.

domingo, 8 de março de 2015

AFONSO REIS CABRAL: O MEU IRMÃO



     Tendemos a desconfiar do Prémio Leya. Mas deixem recordar que, nos últimos anos, o dito cujo revelou escritores como João Ricardo Pedro, Nuno Camarneiro ou Afonso Reis Cabral. Poderíamos interrogar-nos, portanto, sobre este primeiro preconceito.

     Suspeitamos de Afonso Reis Cabral. Que é demasiado jovem e que o primeiro romance de um garoto há-de ter falhas; que se a crítica o tem ultimamente elogiado é por complacência, ou por ser um descendente de Eça de Queirós. São um segundo e um terceiro preconceitos.

     O romance é, objectivamente, uma estreia, mas poderia não sê-lo, de tal forma nos espanta pela originalidade, está bem escrito, a história magistralmente concebida no seu todo e no desenvolvimento, testemunhando uma profundidade emocional incomum aos vinte e poucos anos. Ou incomum, ponto.

     Quando digo que está bem escrito, ao que me refiro é a uma linguagem muito bela e muito clara simultaneamente: aquilo que outros autores, nomeadamente eu próprio, nem sempre conseguem porque o excesso de preocupação estilística pode prejudicar a legibilidade: cria uma neblina artificial, que obriga a mais do que uma leitura e afugenta o leitor. É preciso ter-se realmente um grande nível como escritor para, sem abdicar do estilo, fazer com que este se não imponha e não ofusque, não seja um ademane ou um meio de amplificação, mas apenas o modo justo de exprimir, simples (mas enganadoramente simples, porventura), distinto, evidente: é de uma limpidez que eu invejo.

     A originalidade radica logo no tema. Esta estória sobre uma paixão trágica entre dois deficientes, que nunca resvala, nem por um instante, para a pieguice ou para o moralismo, nem se deixa confundir com uma tentativa [que seria também legítima] de compreeder a condição dos "portadores de deficiência", é assombrosa na sua intensidade e na sua crueza.

O narrador tem qualquer coisa de Humbert Humbert [o de Lolita]: distanciamo-nos do seu egoísmo, criticamos a sua perversão ética e psicológica, reprovamo-lo com todo o nosso ser, mas não vemos nele o vilão, o irredimível mau; só consigo apreender-lhe o amor pelo irmão - eu sei, um amor imperdoável na sua forma e nos seus motivos, desequilibrado, egoísta, perigoso, mas triste e desesperado; talvez por se tratar do narrador, em cuja mente entramos, cujo sofrimento conhecemos por dentro.

No seu desarmante despretensiosimo, Afonso Reis Cabral, em conversa [para espanto e quase indignação dos intelectuais que o entrevistavam] dizia que «foi escrevendo», «não tinha um esquema» ou um «plano prévio» do romance: bem, seja ou não sincero, o resultado é uma obra exigentemente organizada para um fim absolutamente inesperado - e olhai lá, que aqui fala o leitor treinado de policiais: um final cru, violento, tremendo, chocante, sublime.